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domingo, 27 de novembro de 2016

A pequena miss é Sunshine!


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A respeito deste filme que ainda se pode assistir, escrevi há algum tempo esta crônica.

Uma família disfuncional – é com esse termo politicamente correto que definiríamos, inicialmente, a família do filme “Pequena Miss Sunshine”. Reunindo um avô viciado em heroína; um marido fracassado como vendedor de métodos de auto-ajuda, mas um verdadeiro chato em sua obsessão pelo sucesso; um casal de filhos meio-irmãos – ele, oriundo do primeiro casamento da sua mãe, imerso num autismo existencial voluntário que é expressão exacerbada e caricata dos ‘autismos existenciais’ em que mergulham os adolescentes típicos da atualidade; ela, uma criaturinha tão meiga e sonhadora quanto distante dos estereótipos da beleza americana, mas embalada pelo estímulo do avô em julgar-se miss, enquanto ensaia uma coreografia para se apresentar num concurso de beleza infantil, do tipo que prolifera feito praga em vários estados dos EUA. A estes tipos quase comuns de tão incomuns, vem se juntar o irmão da mãe, um professor universitário gay e deprimido que tenta suicídio motivado por uma desilusão amorosa. Ah, e não nos esqueçamos da mãe, mulher jovem, oprimida pela solidão afetiva, angustiada pelo transtorno obsessivo do marido, e astutamente hábil em dissimular tais afetos, mas um tipo de mãe bastante comum e encontradiço na cena atual: dividida entre o dever e o querer, entre o desejo e a necessidade.
            Para quem vai ao cinema esperando um pacote que reúne entretenimento, momentos de humor nonsense e, ao mesmo tempo, crítica inteligente e sutil ao american way of life, “Pequena Miss Sunshine” é um prato feito de encomenda. Em meio a uma salada de tipos tão divertidos quanto estranhos, consegue dar um tratamento simultaneamente sensível e delicado a temas como homossexualidade, escatologia senil, bizarrice adolescente, obesidade infantil e conservadorismo do tipo médio presente na sociedade estadunidense. E o faz sem descambar para o apelativo, para o pieguismo, e para os clichês facilmente encontráveis nos roteiros “mexicanos” ou “globais” com que somos bombardeados.
            O filme é, tecnicamente falando, um road movie que vai revelando o modo como a família se lança numa “descoberta” de si mesma, enquanto persegue atender a um sonho infantil da menina que deseja ganhar um concurso de miss. Durante a longa jornada rumo à ensolarada Califórnia, onde tenta chegar a tempo para a final do concurso, cada um dos personagens vai vivenciando uma catarse reveladora na forma de “incidentes” pessoais que os coloca diante de si mesmos, dos seus limites e da aceitação dos seus opostos e de cada um dos seus pequenos desvios da norma. Cada um a sua maneira, e de modo muito doloroso e, talvez por isso mesmo, humano, vai enfrentar justamente o que mais evita: a dura realidade dos seus limites, e dos limites dos seus sonhos; seja porque ignora este limite, como é o caso do jovem daltônico; seja porque sonha demasiado a ponto de julgar realidade o que sonha, como é o caso do vendedor de autoajuda; ou porque já se lançara em busca de um fim, pelas atitudes que racionalmente toma, como parece ser o caso do avô. Quem ocupa o papel de guia neste tour existencial parece ser a mãe: única que retornará da viagem menos modificada no seu íntimo, mais profundamente alterada pelas mudanças em torno dos seus entes queridos.
            A estória segue intensamente humana e pungente até o desfecho final que, longe de melodramático, é uma saída bastante coerente com todo o começo. Seu roteiro é socialmente oposto ao movimento em que a sociedade é empurrada rumo ao conformismo, ao quietismo e ao comportamento massivamente copiado que anula a identidade. Ou seja, é bálsamo para as dores do momento em que a “diferença” é até saudada nos textos e teoria como a ‘atitude’ da modernidade, mas é maltratada nas ruas e nas relações sociais e pessoais que parecem caminhar, feito náufragas, rumo ao abraço dos afogados.

            A “mensagem” de Pequena Miss Sunshine sugere, ainda, alguns alentos: o de que podemos contar conosco é um deles, como diz a máxima ‘ajuda-te que te ajudarás’! Mas, acima de tudo, o de saber que as relações afetivas e familiares ainda são um belo custeio para quando parecemos apenas peças frágeis diante do inexorável jogo da vida e quando vemos nossos sonhos escaparem pelos dedos. Tudo o que precisamos, nestas e em todas as horas, é nos importarmos uns com os outros e nos aceitarmos com nossos sonhos, desejos, fraquezas e desvios. Exatamente como uma pequena centelha de sol, penetrando pela fresta do telhado, enche de vida e luz a escuridão e nos convida a olhar lá fora! Talvez seja essa a melhor imagem para definir esta pequena miss! Sunshine! Evoé!
E voltamos!

Depois de um longo tempo dedicado a práticas sabáticas, vamos retomar a atividade neste blog.

terça-feira, 6 de maio de 2014

A silenciosa sovietização dos Estados Unidos

do: Diario do Centro do Mundo





O artigo abaixo foi publicado no site Outras Palavras. O autor, Paul Craig Roberts, foi secretário assistente do Tesouro dos EUA e editor associado do Wall Street Journal. Seu último livro é “Como os Estados Unidos se perderam”.

A propaganda americana no período da Guerra Fria teve pouco, ou nada, a ver com o colapso da União Soviética. No entanto, ao dramatizar as mentiras soviéticas o mundo ficou cego com as de Washington.

Quando as autoridades soviéticas recusaram-se a publicar Doutor Jivago, obra do destacado escritor soviético Boris Pasternak, a CIA transformou o gesto num golpe midiático. Um jornalista italiano e membro do Partido Comunista soube do manuscrito censurado e se ofereceu para levá-lo a um editor de Milão, próximo dos comunistas: Giangiacomo Feltrinelli, que publicou o livro em italiano em 1957, apesar das objeções soviéticas. Feltrinelli acreditava que o Doutor Jivago era uma obra-prima e que o governo da União Soviética era tolo, ao não capitalizar em seu favor a obra de um grande escritor. Em vez disso, o Kremlin, dogmático e inflexível, caiu na arapuca da CIA.

Os soviéticos fizeram tanta sujeira com o livro, que a controvérsia elevou o perfil da obra. De acordo com documentos recentemente revelados pela CIA, o órgão de espionagem norte-americano vislumbrou uma oportunidade para os cidadãos soviéticos se perguntarem por que o romance de um proeminente escritor russo só estava disponível no exterior.

A CIA organizou uma edição na língua russa, publicada e distribuída aos cidadãos soviéticos na Feira Mundial de Bruxelas, em 1958. O golpe midiático foi consumado quando Pasternak recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em outubro de 1958.

O uso do romance de Pasternak para minar a confiança dos cidadãos soviéticos em seu governo continuou até 1961. Naquele ano eu era um membro do programa de intercâmbio de estudantes EUA / URSS. Fomos encorajados a levar conosco cópias de Doutor Jivago.

Disseram-nos que era improvável algum inspetor aduaneiro soviético saber inglês, e ser capaz de reconhecer o título dos livros. Se perguntassem algo, fomos instruídos a responder que se tratava de “leitura de viagem”. Se as cópias forem reconhecidas e confiscadas, não devíamos nos preocupar. Elas eram muito valiosas para serem destruídas. Os funcionários iriam lê-las primeiro, e vendê-las em seguida no mercado negro — uma forma eficiente para espalhar a distribuição.

O que me impressiona sobre os memorandos da CIA é como o governo dos Estados Unidos de hoje se assemelha com o governo soviético de 1958. A chefe da Divisão Soviética da CIA descreve, numa análise de julho de 1958, por que Doutor Jivago era uma ameaça para o governo soviético. A ameaça residia na “mensagem humanista de Pasternak”, segundo a qual “cada pessoa tem o direito a uma vida privada e merece respeito como ser humano”.

Diga isso para a Agência de Segurança Nacional (NSA), para os detidos em Guantánamo, para os torturados nas prisões pela CIA. Nos Estados Unidos, a privacidade individual não existe mais. A NSA coleta e armazena cada e-mail, cada compra com cartão de crédito, cada conversa telefônica, todas as pesquisas de internet, cada uso das mídias sociais de todos os cidadãos. Pasternak tinha muito mais privacidade do que qualquer norte-americano hoje. Os viajantes soviéticos jamais foram submetidos a tateamento genital ou a porno-scanners. As penalidades impostas aos cidadãos soviéticos, por dizerem verdades inconvenientes ao governo, não eram mais graves do que as sanções impostas a Bradley Manning, Julian Assange e Edward Snowden.

E hoje, os cidadãos russos são mais livres em sua vida privada do que os norte-americanos. A imprensa russa é mais vívida e crítica ao governo do que a imprensa norte-americana…

Escrevi em uma das minhas colunas que, quando o comunismo alemão se dissolveu, a Stasi [temida polícia secreta da Alemanha Oriental] mudou-se para Washington…




sábado, 3 de maio de 2014

A miragem mexicana

O livre comércio é só comércio.


José Luís Fiori


Na última década, o modelo mexicano de abertura liberal, integração com os EUA, e livre comércio teve um desempenho extraordinariamente pior do que o do Brasil.

Poucas pessoas inteligentes – fora da Inglaterra - ainda prestam atenção nas notícias da monarquia inglesa e da sua família real, em pleno século XXI. Mas o mesmo não se pode dizer da City, centro financeiro de Londres, e dos seus dois principais órgãos de imprensa e divulgação – o Financial Times, e o The Economist – que seguem tendo importância decisiva na formação das opiniões e dos consensos ideológicos dentro das elites liberais e conservadoras do mundo.

A escolha dos seus temas e o uso de sua linguagem nunca é casual. Como no caso recente do seu entusiasmo pelo México e seu modelo de desenvolvimento liberal e seu ataque cada vez mais estridente, ao “intervencionismo” da economia brasileira. Uma tomada de posição compreensível do ponto de vista ideológico, mas que não vem sendo confirmado pelos fatos.

Em 1994, o México assinou o Tratado de Livre Comercio da América do Norte/ NAFTA, junto com os EUA e Canadá, e nos últimos 20 anos tem sido absolutamente fiel ao livre-cambismo, incluindo sua adesão a Aliança do Pacífico, e à inciativa norte-americana do TPP. Por outro lado, nesse mesmo período, o México praticou uma política macroeconômica e financeira rigorosamente ortodoxa - em particular na última década - mantendo inflação baixa, cambio flexível, taxas de juros moderadas e amplo acesso ao crédito.

Mesmo assim, depois de duas décadas, o balanço dessa experiência ultraliberal deixa muito a desejar [1]. Como era de se prever o comercio exterior do país cresceu significativamente no período e passou – em termos absolutos - de U$ 60 bilhões em 1994, para U$ 400 bi em 2013. Mas nesse mesmo período, a economia mexicana teve um crescimento médio anual pífio, de 2,6%, sendo o crescimento per capita, de apenas 1,2%. O emprego industrial cresceu de forma setorial e vegetativa, e mesmo nas “maquiladoras”, foi de apenas 20%, algo em torno de 700 mil novos postos de trabalho. A participação dos salários na renda permaneceu em trono de 29% da renda nacional, e a pobreza absoluta da população mexicana aumentou significativamente.

Por fim, ao contrário do que havia sido previsto, a economia mexicana não se integrou nas “cadeias globais de produção”, a produtividade média da economia praticamente só cresceu de forma segmentada e vegetativa, e o “investimento direto estrangeiro” (o principal “prêmio” anunciado em troca da abertura da economia) não teve nenhuma alteração significativa.

Esse balanço fica ainda mais decepcionante quando se compara o desempenho do “modelo mexicano”, com o “modelo intervencionista” da economia brasileira, no período entre 2003 e 2012. Segundo dados publicados pelo Banco Mundial [2], e pelos Ministérios do Trabalho dos dois países, os números e as diferenças são realmente chocantes. Nesse período, a crescimento médio anual do PIB brasileiro, foi de 4,21%, o do México de 2,92%. O crescimento total a economia brasileira foi de 42,17%, o do México, de 29,29 %. As exportações brasileiras cresceram, a uma taxa anual de 6,59%, as do México, a uma taxa de 5,35%. O crescimento total das exportações brasileiras foi de 65.95%, o do México, foi de 53,35%. As importações brasileiras cresceram a uma taxa média anual de 17,33%, e as do México, a uma taxa de 6,75%. O crescimento total das importações no Brasil foi de 173,32%, e no México de apenas 67,54%.

Por outro lado, a renda per capita brasileira cresceu a uma taxa anual de 2,84%, e a do México, 1,42%; o crescimento total da renda no Brasil foi de 28,4%, e no México foi de 14,26%; e a participação dos salários na renda chegou a 45 % , no Brasil, e no México, a 29%. Nesse mesmo período, o Brasil criou 16 milhões de novos empregos formais, e o México 3,5 milhões; e a pobreza absoluta foi reduzida a 15,9%, no Brasil, e aumentou para 51,3%, no México.

Por fim, (pasme-se), entre 2002 e 2012, o “investimento direto estrangeiro” no Brasil, cresceu de U$ 16.590 milhões, para U$ 76.110 milhões de dólares, e no México, caiu de U$ 23. 932 milhões, em 2002, para U$ 15.4553 milhões, em 2012 ! Só para encerrar a comparação, em 2103 a economia brasileira cresceu 2,3%, em ( uma das maiores taxas entre as grandes economias do mundo) enquanto a economia mexicana cresceu 1,1%.



Foreign direct investment, net inflows (BoP, current US$)

Fonte: International Monetary Fund, Balance of Payments database, supplemented by data from the United Nations Conference on Trade and Development and official national sources.Catalog Sources World Development Indicators. Disponível em: http://data.worldbank.org/indicator/BX.KLT.DINV.CD.WD/countries/BR-MX?display=graph em 27/04/2014

Isto posto, o elogio do México deve ser considerado um caso de má fé, fundamentalismo ideológico, ou estratégia internacional ? As três coisas ao mesmo tempo. Mas o que importa é o que dizem os números, e a conclusão é uma só: na última década, o “modelo mexicano” de abertura liberal, integração com os EUA, e livre comércio teve um desempenho extraordinariamente pior do que o “modelo intervencionista”, “heterodoxo” e “fechado”(apud FT e TE) da economia brasileira, junto com seu projeto de integração do Mercosul.

Notas
[1] Vide artigo do ex-ministro de Relações Exteriores do México, Jorge Castañeda: “NAFTA´s mixed record”, publicado no numero da Revista Foreign Affairs,. de janeiro/fevereiro de 2014.

[2] www.data.worldbank.org