Por do Sol em Apodi/RN |
Por Gabriela Moncau, na Caros Amigos
Foram 24 horas de ação feminista. Marcando o dia internacional dos direitos humanos, em 10 de dezembro, a Marcha Mundial de Mulheres no Brasil voltou o tema de seus atos pelo país para a situação de Apodi, no Rio Grande de Norte, uma pequena cidade quase na ponta do Brasil.
Nas ruas de Apodi foi realizado o maior dos atos, com a presença de trabalhadores rurais, sindicatos urbanos, estudantes, Movimento dos Trabalhadores sem Terra e milhares de mulheres da Marcha Mundial.
A manifestação denunciou um projeto, capitaneado pelo Ministério da Integração Nacional por meio do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, e com verbas vindas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que pretende implementar um programa de fruticultura irrigada.
Para isso, cerca de 800 famílias, divididas em aproximadamente 30 comunidades rurais, terão de ser despejadas de suas terras e casas onde habitam já há gerações.
Em nenhum momento as comunidades locais, referência nacional em produção agroecológica e familiar, foram consultadas a respeito do Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi, cujo custo ultrapassa os R$240 milhões.
Apenas foram informadas que o projeto seria implementado ali, naqueles 14 hectares da Chapada do Apodi, e que teriam algumas ações indenizatórias – obviamente irrisórias perto do prejuízo social, ambiental, material, cultural e pessoal da desapropriação.
“Identificamos que a qualquer momento o projeto deve ser embargado, uma vez que é tecnicamente inviável e inexequível. Aceitar sua continuidade, nos moldes até agora propostos, é assumir o risco do dispêndio de milhões de reais dos cofres públicos sem nenhuma perspectiva de resultado econômico e social além de servir como propulsor de uma das maiores tragédias do sertão nordestino dos últimos cem anos”, constata um dossiê a respeito do projeto, elaborado por diversas organizações sociais, entre as quais o Fórum da Agricultura Familiar de Apodi, Associação dos Pequenos Produtores da Agrovila Palmares, Pastoral Operária RN, Grito dos excluídos e o Centro de Referência em Direitos Humanos UFRN.
Conceição Dantas tem 40 anos e duas filhas. Começou sua militância durante os anos 1980 e logo ingressou no movimento feminista. Militante da Marcha Mundial de Mulheres (MMM), ela coordena uma organização chamada Centro Feminista 8 de Março e atua em Apodi, “na luta que questiona o atual modelo de desenvolvimento pautado no agronegócio e na monocultura”.
“Nossa atuação na cidade começou em 2000 no início da construção da MMM e na campanha contra a ALCA [Área de Livre Comércio das Américas]. Fazíamos trabalho de educação popular e organização política”, conta. Em entrevista, Conceição conta quais os impactos desse que ficou conhecido como o “projeto da morte”, quem se beneficiará com ele, e como o movimento está se organizando para a resistência.
Como se desenvolve a agricultura atualmente na Chapada do Apodi?
O município de Apodi se destaca pelo seu potencial agropecuário. É um município de 35 mil habitantes onde 50% se encontram no campo.
Segundo dados do Censo Agropecuário do IBGE, o município tem o 3º PIB agropecuário do Rio Grande do Norte. Vale lembrar que toda essa produção agropecuária está nas pequenas propriedades. É produzida pela agricultura familiar camponesa.
Na região do vale existe uma grande produção de arroz vermelho e frutas da região. Na chapada existe uma grande produção de mel, a segunda maior do país, uma das maiores produções de caprinovinocultura do Brasil, algodão, milho, feijão, etc.
Há uns dez anos atrás as agricultoras e agricultores iniciaram no município um processo de conversão agroecológica. Hoje várias comunidades, sobretudo os assentamentos, produzem de forma agroecológica.
Até mesmo na produção de arroz no vale que tradicionalmente se produz de forma convencional utilizando agrotóxicos, há várias famílias trabalhando a conversão para agroecologia.
Esse processo vem fazendo do município de Apodi uma referência nacional na produção de alimentos agroecológicos.
O que é o Projeto de Irrigação Santa Cruz de Apodi, coordenado pelo Departamento Nacional de Obras contra a Seca (DNOCS)? Por que ele foi apelidado de projeto da morte?
Esse projeto é uma cópia de todos os projetos mal sucedidos que o DNOCS já implantou no Nordeste.
São vários os exemplos que mostram que desastre para as comunidades representa esse projeto. Caso seja implantado, ele irá entregar as terras da chapada do Apodi e as águas da Barragem de Santa Cruz para cinco grandes empresas do agronegócio.
É uma estupidez. Irá expropriar famílias de pequenos agricultores e agricultoras para entregar às grandes empresas com o objetivo de produzir frutas para exportação como o cacau, banana, uva, mamão.
Tudo isso dentro de uma lógica que usa grande quantidade de veneno. Para isso, todas as comunidades da chapada têm que desaparecer. Não à toa as agricultoras e os agricultores o apelidaram de “projeto da morte”.
Quais os impactos do desvio das águas da Barragem de Santa Cruz do Apodi para a irrigação?
Há dados técnicos que asseguram que a barragem não tem capacidade hídrica para irrigar a quantidade de hectares prevista no projeto.
A barragem tem capacidade máxima de 600 milhões de metros cúbicos. O projeto prevê irrigar 5200 hectares na primeira fase. Por outro lado, na região do vale há uma grande produção de arroz vermelho que demanda de muita água.
Há também duas grandes adutoras sendo executadas a partir da barragem para abastecimento de dezenas de cidades, entre elas Mossoró, que tem aproximadamente 160 mil habitantes. Tudo isso poderá ser comprometido por este projeto.
Queremos que seja levada água sim para as comunidades da Chapada, mas para as famílias que lá se encontram para que possam aumentar a sua produção.
O que não é aceitável é a construção de um Perímetro Irrigado onde chega a água e as famílias tem que perder as suas casas e terras para ser entregues às grandes empresas do agronegócio.
Quem se beneficiará com esse projeto?
Claramente o projeto irá beneficiar cinco empresas do agronegócio para a produção de frutas destinadas a exportação. Mas sabemos que há outros interesses por trás desse projeto. Interesses das construtoras com a construção do canal, de políticos que se beneficiam com o financiamento dessas empresas.
Tudo isso em prejuízo de centenas de famílias de pequenos agricultores e agricultoras que há 50, 60 anos que vivem em suas comunidades.
Caso haja o despejo das 157 casas para o projeto de irrigação, as pessoas têm para onde ir? Existe alguma data prevista para a desapropriação?
Nessas pequenas propriedades que serão expulsas para a construção do Perímetro Irrigado moram mais de uma família. Em algumas moram 30 famílias, como é o caso da agrovila Palmares.
O DNOCS fala em 157 como uma forma de diminuir o impacto da expulsão. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras de Apodi, aproximadamente 800 famílias serão removidas caso o projeto seja executado.
O destino dessas famílias provavelmente será para a periferia da cidade de Apodi, gerando graves problemas sociais como vemos em outros municípios que tem perímetros irrigados a exemplo de Limoeiro do Norte (Ceará) e Ipanguassú (Rio Grande do Norte).
Em relação a desapropriação ela já vem sendo executada. Nesse momento estão sendo executadas as pequenas propriedades atingidas pela construção do canal. Depois serão todas para a implantação dos lotes irrigados.
Há quanto tempo essas famílias vivem em Apodi? A propriedade da terra já não se tornou dos moradores por usucapião?
Há famílias que moram nas comunidades há mais de 70 anos.
São pessoas idosas que já nasceram lá. Herdaram essas terras de seus pais, avós. Elas já têm a propriedade da terra.
Estão ameaçadas de perdê-las por força do decreto de desapropriação assinado pela Presidenta Dilma com o intuito de beneficiar as empresas do agronegócio.
Como foi a ação realizada dia 10 de dezembro?
Dia 10 de dezembro, nas 24 horas de ação feminista pelo mundo organizada pela Marcha Mundial das Mulheres, milhares de mulheres estiveram nas ruas de 33 países.
No Brasil, o dia foi marcado pela luta, resistência e solidariedade às mulheres da chapada do Apodi, no Rio Grande do Norte.
O lema foi a defesa da autonomia das mulheres e da soberania alimentar como parte da nossa luta por outro modelo de (re)produção e consumo, para o bem estar de todas e todos e em harmonia com a natureza.
Em 15 cidades de 10 estados pintamos as ruas de lilás, ecoamos nossas vozes ao som da batucada para exigir que a terra em Apodi continue fortalecendo um projeto de mudança e rechaçamos o projeto de desapropriação dessas terras.
O ato de Apodi foi a principal atividade, no Brasil, das 24 horas de ação organizada pela MMM. Essa manifestação foi parte de um processo de luta de mais de um ano contra esse projeto.
Lá estavam cerca de 3 mil mulheres de vários municípios do Rio Grande do Norte. Logo em seguida, a marcha seguiu até o sindicato e depois para a chapada onde foi colocada uma placa que diz: “A Chapada do Apodi é território da agricultura familiar e camponesa. Aqui, já fazemos desenvolvimento” como contraponto ao discurso do DNOCS que anuncia a chegada do desenvolvimento na cidade.
No momento do hasteamento das bandeiras, que demarcou a reapropriação popular, esse território desapropriado pelo decreto federal, foi lido o estatuto das mulheres do Apodi.
O documento determina que o governo federal deve considerar a chapada do Apodi como território da agricultura familiar camponesa, estabelece que a luta em defesa desse território é uma bandeira de todos aqueles e aquelas que defendem uma sociedade de igualdade. E que a Chapada continuará com sua beleza, com sua gente e com sua alegria.
Quais os próximos passos que o movimento planeja?
Estamos trabalhando em várias frentes. A mobilização local das comunidades, debatendo com as famílias; dialogando com a sociedade, nas escolas, nas mobilizações de ruas; judicializando o processo, denunciando na Justiça a aberração que é esse projeto; forçando para abrir o diálogo com o governo no sentido de escutar as agricultoras e agricultores atingidos.
Outro passo é a busca por solidariedade dos movimentos sociais de todo o país, e isso estamos conseguindo.
Hoje a luta de resistência das famílias de agricultoras e agricultores da Chapada do Apodi está na pauta de todos os movimentos sociais do Brasil.
*Gabriela Moncau é jornalista.
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