Pesquisar este blog

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O hoje e o jamais (Bertold Brecht)

Estes versos do poeta alemão caem como uma luva para os dias de hoje, apesar de escritos há mais de um século. Quem dera escrever versos como ele!


"A injusstiça passeia pelas ruas com passos seguros
Os dominadores se estabelecem por dez mil anos
Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores
Nos mercados de exploração se diz em voz alta
- Agora acaba de começar!
E entre os oprimidos muitos dizem:
-Não se realizará jamais o que queremos!
O que ainda vive não diga 'jamais'!
O seguro não é seguro, como está não ficará
Quando os dominadores falarem
Falarão também os dominados
Quem se atreve a dizer jamais?
De quem depende a continuação deste domínio? De nós!
De quem depende a destruição? Igualmente de nós!
Os caídos que se levantem
Os que estão perdidos que lutem!
Quem reconhece a situação como pode calar-se?
Os vencidos agora serão os vencedores de amanhã
E o 'hoje' nascerá do jamais!




Comentários do Senhor C.:


Acaso estamos melhores do que quando foram escritas estas palavras? 
A quem queremos enganar? A nós mesmos!
Pois ainda não chegou a hora em que o 'hoje' nascerá
Seu tempo tarda e impaciente os que, impenitentes,
se entregaram ao dulce farniente de se imaginarem chegados.
A luta ainda não é finda, 
E mais duros são os tempos,
Em que o diabo se pregou na cruz e quer se fazer salvador.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Fragmentos dos diários perdidos do Senhor C.




"Um homem precisa ser a essência de suas experiências passadas. Precisa ser a soma de seus próprios erros e dos erros dos outros que lhe cercam. Um homem é uma força dinâmica. Precisa como tal não ter medo de investir nos seus próprios sonhos!"





Provavelmente escrito no primeiro dia do outono do primeiro ano sabático da vida do Senhor C., quando contemplava absorto as árvores quase sem folhas curvarem-se ao vento.




Cinema: imagem-tempo, imagem-movimento? Conversações!

Dezoito quadros por segundo!



Este é o padrão do movimento-tempo do cinema exibido na tela. Imagens em movimento! No preciso limite de apreensão do olho humano. Ao mesmo tempo uma ilusão gerada na mente pela sequência ritmíca e constante de fotografias exibidas em série, capturadas por esta máquina fantástica que é a câmera guiada pelo cineasta. Fotografias que, por se acumularem num continuo, produzem nos espectadores a sensação de que o que se captura, o que se mostra, o que se vê, é movimento puro. Jogo de idéias, fluxo de imagens que sacodem simultaneamente com nossa sensação de tempo, de imagem, de imagens-tempo, de imagem-movimento. A descrição de um ponto de vista estritamente fisico, de fotografias exibidas numa tela dezoito vezes por segundo, decerto não descreve nem um milésimo o que é o cinema, quando pensado/sentido como manifestação artística (e por isso mesmo tecnicamente definida em planos, recortes, montagens, decupagens etc.) tanto quanto é uma expressão estética, ética, política e filosófica do engenho humano.


Talvez seja esta dimensão polissêmica que Gilles Deleuze tenta capturar na sua análise/elaboração/filosofia sobre o cinema, tomando-o em termos de tempo e de movimento, de imagem e de movimento, e do interessante, por que não, jogo de palavras com que se manifesta nas entrevistas publicadas no livro Conversações. Escolhemos, numa sequência inexata – isto é, extraída conforme nosso interesse de leitor que percorre a conversa deleuziana; portanto, diferente do modo com que aparecem nos textos originais.


O primeiro deles, que conclui a segunda de suas entrevistas, transcrevemos a seguir:


El cerebro es un volumen espaciotemporal: corresponde al arte trazar en él nuevas vías de actualización. Puede hablarse de sinapsis, conexiones y desconexiones cerebrales: no hay las mismas conexiones, ni se trata de los mismos circuitos, por ejemplo, en Godard y en Resnais. Pienso que la importancia o el alcance colectivo del cine depende de este tipo de problemas.”

IN: Cinema, n.º 334, 18 de Diciembre de 1985, entrevista con Gilbert Cabasso y Fabrice Revault d’Allones. Extraído de Conversaciones, p. 87


      De fato, nessa primeira expressão, expõe pensamentos que remetem ao fato de que o cinema é uma técnica – trata-se de dezoito quadros se sucedendo por segundo e afetando o cérebro, pela retina, de modo a produzir neste a sensação de movimento e de fluxo, isto é, de tempo. A arte do cinema, por isso mesmo, tem a capacidade, como nenhuma outra, de trazer àquele novas atualizações. Novas sensações, simultâneas sensações. Mas esta capacidade de fazê-lo guarda estreita relação com o fato de que o cérebro seja um volume, um recipiente, espacio-temporal.

Nisto, nosso filósofo tem expressa razão. E além disso, segue tendo quando explica que não se trata somente de estimular novas sinapses, conexões, redes de circuitos, novas elaborações estruturantes. Tanto quanto é uma manifestação artística, é uma linguagem que permite que esta manifestação seja feita de formas igualmente plásticas, pela criação estética que a câmera em movimento na mão (e no circuito que liga esta ao cérebro do cineasta) de um diretor, como os que ele cita, permite alargar os planos espaciais em que a linguagem é tradicionalmente vista. Isto é, como se não mais se movimentasse num plano de coordenadas cartesianas precisas.

O cinema, como arte, e especialmente o cinema da pós-modernidade, ou mais exatamente um certo tipo de cinema que se produz a partir do pós-guerra, apropria-se de inúmeras e inovadoras possibilidades de articular planos espaciais e outros ângulos, que estilhaçam o conforto transcendental de um plano cartesiano pensado em termos de horizontais e verticais, e abraça um fractal de outras angulações.


Não bastasse esta fratura abissal com o plano de coordenadas espaciais, no cinema também se faz possível uma transformação do tempo, que pode passar de uma tênue linha reta de processos ou fatos que se sucedem, para uma reorganização em que a sucessão pode ser posta em termos de trás pra frente, frente pra trás, ou uma combinação de modos de contar a história e que encontra espaço e eco no tempo e no espaço mental de cada espectador.

Mas aí reside igualmente o problema dos curto-circuitos. Dado que o cinema é uma arte com valores políticos e conteúdos políticos, há a tensão dos resultados, do que pode ser feito com cada uma destas características. O cérebro é uma potencial rede de sinapses e relações, mas é também uma estrutura de circuitos prévios, reflexos condicionados e outras cristalizações. Criar novos circuitos é uma possibilidade dada ao cérebro e a arte. Dessa dupla tensão, do em si do cinema e do cérebro, e da constituição de ambos em relação, Deleuze extrai a conclusão de que nelas reside a força, a importância e o alcance coletivo que pode o cinema, como arte e como política, alcançar. Está seguro, todavia, de que a arte pode conduzir a uma espécie de cretinização, como parece pensar ao se referir ao clip, este cinema em short-cut que, segundo ele, de campo fecundo passou ao lugar-comum organizado e formalista de um produto pastiche.

      Mas ele já preparara este mesmo terreno, isto é, a das possibilidades e alcance do cinema como arte, num outro momento de suas conversações quando respondeu a seus entrevistadores dizendo que, cinema e filosofia teriam também algo em comum que lhes chamaria para um encontro.


Es cierto que los filósofos se han ocupado muy poco del cine, y esolos que han llegado a hacerlo. Sin embargo, se da una coincidencia. em el mismo momento de aparición del cine, la filosofía se esfuerza em pensar el movimiento. Pero puede que esta misma sea la causa de que la filosofía no reconozca la importancia del cine: está demasiado ocupada en realizar por cuenta propia una labor análoga a la del cine, quiere introducir el movimiento en el pensamiento, como el cine lo introduce en la imagen. Más que de una posibilidad de encuentro, se trata de dos investigaciones independientes.

IN: Cinema, n.º 334, 18 de Diciembre de 1985, entrevista con Gilbert Cabasso y Fabrice Revault d’Allones. Extraído de Conversaciones, p. 81

     Filosofia e cinema, qual relação imaginar? A da aproximação da Filosofia com a temática do movimento, esta categoria tão fundamental para o cinema. Afinal, ninguém pensaria em assistir um filme que consistisse numa exposição estática de fotografias. Esta, quanto acontece, recebe outro nome, que sequer se confunde. Quer dizer, o nascimento do cinema como arte e expressão acontece no mesmo momento histórico em que a filosofia se volta para estudar o movimento, isto é, o tempo, e mais precisamente, a sensação que dele temos, pois parafraseando Kant, tempo é intuição a priori, ou seja, antecede a experiência.

     Cinema é pura experiência, sensação. Não consigo imaginar o cinema-especulação! Aquele que resulta de uma entrega metafísica à razão. Se esta aproximação tem raízes tão próximas, há algo que os distancia além do fato de que os filósofos e os cineastas caminharam por vias paralelas nesta perseguição ao tempo? Trata-se, segundo Deleuze, de uma atitude mais divergente que hostil: os filósofos tentaram introduzir o movimento no pensamento, enquanto os cineastas introduziram o movimento na imagem.

Eu, leitor. intuo que ele tenha querido dizer mais do isso. Movimento de pensamento se dá por quase que exclusiva ação metafísica (é quase um paradoxo a expressão!!), isto é, por um movimento racional do pensamento fluindo nas sinapses e conexões do telencéfalo altamente desenvolvido dos humanos filosofantes. Imagens em movimento é coisa própria de uma invenção dos Irmãos Lumiére: coisa de entregar-se ao entretenimento de montar um máquina nunca antes vista, capaz de encantar os olhos dos espectadores e neles produzir a ilusão alquímica de imagens que se fundem no movimento real que agora se transpõe a uma tela branca.

Dito assim, em pura alegoria, são dois movimentos que se dão em dois planos realmente distintos. Um físico, outro metafísico. Cinema é imagem em movimento (e isto descreve exatamente o que é um filme exibido na tela). Pensamento é fluxo de idéias que se movimento num circuito rizomático de axônios e seus ramos (esta descrição também é exata para descrever sumariamente o que é o filosofar). Dito isto, eis uma analogia que não convidaria a um encontro. Afinal, é lei da física que as paralelas só se encontram no infinito! O que é inaugural em Deleuze é que ele se convidou a ser este infinito e, enquanto filósofo, se entregou a tarefa de pensar o cinema. E pensa este encontro justamente pela adoção de um dos princípios de sua filosofia, qual seja, aquele que diz que filosofar é criar conceitos.

     Talvez seja por isso, que ele advogue que os críticos de cinema tenham como tarefa criar conceitos para o cinema, mais do que avaliar tecnicamente se um filme merece ou não ser visto. Neste sentido, aproxima os críticos dos filósofos, e diz que aqueles precisam se tornar como estes. Por isso mesmo, não podem ficar presos á técnica, ou a seus detalhes. Travelling, continuísmo, decupagem, montagem, planos, são meios de se chegar aos fins; expressam este fim, mas não o explicam, nem podem, por isso mesmo , se justificarem assim. Desta maneira, cutuca os críticos par que abandonem qualquer intenção crítica e se debrucem sobre os conceitos do cinema. Estes, são os verdadeiros fins do cinema.

     E aqui, nós, talvez estejamos nos perguntado o que faz do cinema esta maravilha máquina de filosofia em movimento? Deleuze, que parece antecipar qualquer pergunta, diz-nos que:


“El cine realiza un auto–movimiento de la imagen, incluso una auto– temporalización: esta es su base, y este es el aspecto que yo he intentado estudiar. Pero, ¿qué puede revelarnos el cine acerca del espacio y del tiempo que no revelen las demás artes? Un travelling y una panorámica no presentan el mismo espacio. Es más, puede suceder que el travelling deje de trazar un espacio para sumirse en el tiempo (en Visconti, por ejemplo).”

IN: Cinema, n.º 334, 18 de Diciembre de 1985, entrevista con Gilbert Cabasso y Fabrice Revault d’Allones. Extraído de Conversaciones, p. 82

Claro que para um filósofo do fluxo, do movimento, do devir, a idéia de que o cinema realiza um movimento automático da imagem, só poderia mesmo ser-lhe muito querida. Típica identidade de objeto e de sujeito, diria eu! O pensador do movimento e a manifestação por excelência de uma forma de arte que se move, é pensada, produzida e consumida enquanto movimento, fluxo, distribuição de imagens numa sequência-tempo.

     Cinema é, portanto, também auto-temporalização! E aqui Deleuze deve estar se referindo a uma idéia mais profunda do que a singela analogia de dezoito quadros, ou fotogramas para usar uma linguagem cinematográfica, que se sucedem na tela do tempo. De fato, numa outra entrevista, em que aborda a noção de cinema como imagem-movimento, ele manifesta o seguinte:

Los grandes géneros (western, cine policiaco, cine histórico, comedia, etc.) no dicen nada de los tipos de imágenes ni de sus caracteres intrínsecos. Por otra parte, los planos –primer plano, plano general, etc– sí definen tipos distintos. Pero intervienen muchos otros factores (luminosos, sonoros, temporales). Si he considerado el dominio Del cine en su conjunto es porque se ha constituido apoyado en la imagen–movimiento. Em consecuencia, tiene una aptitud para crear o revelar un máximo de imágenes distintas, y sobre todo para componerlas entre sí mediante el montaje. Hay imágenes–acción, imágenes–percepción, imágenes–afección y muchas otras. En cada caso, estas imágenes se caracterizan por signos internos, tanto desde el punto de vista de su génesis como desde el de su composición.”
IN: Cahiers du Cinema, n.º 352, Octubre de 1983, entrevista com Pascal Bonitzer y Jean Narboni realizada el 13 de Septiembre, completada y redactada por los participantes (os grifos são nossos).


     Propõe, assim, uma outra categorização para as imagens, que vai além da tradicional categoria taxonômica de tipos-padrão ou nomenclatura oficial de gêneros. É uma classificação baseada na natureza das imagens, não numa visão a partir de seus agrupamentos temáticos, em drama, comédia, ação etc. Pensar assim, talvez seja uma esforço de pensar o cinema para além das tecnicalidades em que este parece ter caído, ou reduzido a técnica de filmar, reduzido a objeto de uma crítica formalista e, portanto, estéril. Pensar em imagens afeto, imagens-ação, imagens-percepção, também pode ser visto como um convite a tornar o espectador um protagonista do cinema: recortado, deste modo, em novos, ou outros, tempos e movimentos.

Enfim, sob este prisma, o cinema pode revelar-nos algo acerca do tempo e do movimento – enquanto modos pelos quais a imagem se liga para, duplamente, contar uma história – mais do que as demais artes, pelo menos as mais estáticas como a fotografia, a pintura e a escultura.

* X * X * X * X * X * X *

EXCURSO IMTEMPESTIVO;

                    Não saberia o que dizer, todavia, em relação ao teatro. Parece ser alguma coisa que escapa pela plasticidade que a câmera possui e que reúne maior capacidade de movimentos que o olho humano. Cinema também é montagem, e aqui mais do que técnica, montagem é também uma estratégia de traduzir conceitos. A montagem afinal define diretores, aponta tendências e fluxos, com que uma certa historiografia do cinema pode indicar fases, escolas, linhas: neo-realismos, cinema-novo, nouvelle vague. Não se trata de apontar qualidades ou déficits ao teatro, mas este tem um limite claro: seu acting se dá num plano bidimensional; sua imagem é a do olho do espectador; sua relação é direta, linear, do caminho que leva do palco a ribalta. Não há recursos ocultos além da ribalta e do camarim. O teatro é caminho fixo! O cinema, neste sentido, é mais trãnsfuga, mais aberto a viagens fora do tempo?


Civilização e Mal-estar: criaturas da necessidade humana. Uma conversa filosófica.

A “civilização” parece garantir um estado de coisas que nos parece cada vez mais indispensável. De fato, é só pensamos nas vitórias da raça humana perante os constantes desafios da natureza, entre os quais escalaríamos a vitória contra os micróbios, a adaptação a ambientes físicos tão diversos como savanas, desertos e florestas, a melhoria das condições de vida cotidiana com o sem número de invenções e artefatos que dotam de conforto e comodidade as tarefas do dia-a-dia para brotar um sentimento de satisfação por fazermos parte desta cultura e do modus vivendi que ela propicia. No entanto, também paira no cotidiano uma espécie de mal-estar, uma sensação desagradável invade cada um de nós, e a pergunta mais geral é em que a sociedade atual tem contribuído para este desassossego, esta inquietude, essa angústia geral que se espalha e contamina, ou está presente, em todas as relações pessoais e individuais.
Esta questão já ocorrera aos pensadores e físicos sociais dos séculos anteriores, e várias tentativas de responder a ela fizeram com que várias concepções e respostas fossem tentadas. Os que mais parecem ter se entregado a esta lide são os chamados filósofos políticos, sempre inquietos em responder ou decifrar os modos pelos quais a sociedade humana se organiza, distribui o poder e inter-relaciona as várias tarefas envolvidas na construção da vida humana. Podemos mencionar, sem dúvida, as contribuições de Locke e de Hobbes, a este respeito, e esta citação não será acidental como esperamos demonstrar mais adiante.
            Neste trabalho filosófico, o século XX se deparou com as respostas elaboradas por Sigmund Freud,  definindo o preço que a cultura ou a civilização cobram ao homem justamente por dotá-lo de mais segurança, conforto e progresso. É importante ressalvar que não estamos incluindo Freud entre os filósofos políticos por isso, mas o exame do seu texto revela que estamos aqui muito além de um mero trabalho psicanalítico ou sociológico, como, aliás, considera o próprio apresentador da edição brasileira.
            Nos capítulos iniciais de sua obra, O Mal Estar na Civilização, Freud se dedica a nos introduzir, na questão que medeia a relação existente entre civilização e individualidade, que ora examinaremos. Ele delineia uma argumentação em torno do aparelho libidinal do homem e das conseqüências que sobre este vai exercer a civilização na luta que trava contra estes impulsos libidinais dos indivíduos, e que são as estratégias de segurança e de pertencimento coletivo. 
           
A sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é ela que torna possível as atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada” (p. 103).

            À primeira vista, trata-se de uma afirmativa que resumiria a sublimação à um vicissitude imposta aos instintos, de forma total pela civilização. Mas o autor nos convida a refletir um pouco mais sobre isso. Trata-se, continua ele, de não desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia aos instintos, verdadeira “frustração cultural” que domina o campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos.

“Mas se quisermos saber qual o valor que pode ser atribuído a nossa opinião de que o desenvolvimento da civilização constitui um processo especial, comparável à maturação normal do indivíduo, temos, claramente, de atacar o problema. Devemos perguntar-nos a que influência o desenvolvimento da civilização deve sua origem, como ela surgiu e o que determina o seu curso” (p. 104).

            A partir desta questão, vai reunir argumentos e/ou conjecturas, segundo suas próprias palavras, com os quais vai introduzir raciocínios, oriundos talvez dos estudos antropológicos então em voga, em que se especula sobre os fatores envolvidos; introdução em que ganha força argumentativa a existência de pelo menos dois grandes gigantes: o amor e a necessidade, ou para usar as palavras de Schelling, que ele cita: a fome e o amor. Ou seja, lança mão de raciocínios especulativos sobre a motivação inerente ao fato de que os homens resolveram literalmente descer das árvores e constituir agrupamentos, organizados em torno do cruzamento dos dois sexos como família, de que resulta a construção civilizacional em voga.

“A vida comunitária dos seres humanos teve, portanto, um fundamento duplo: a compulsão para o trabalho, criada pela necessidade externa (fome, abrigo e proteção), e o poder do amor, que fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual – a mulher – e a mulher, em privar-se daquela parte de si própria que lhe fora separada – seu filho. Eros e Ananke (Amor e necessidade) se tornam os pais também da civilização humana. O primeiro resultado da civilização foi que mesmo um número bastante grande de pessoas podia agora viver reunido numa comunidade. E, como esses dois grandes poderes cooperaram para isso, poder-se-ia esperar que o desenvolvimento ulterior da civilização progredisse sem percalços no sentido de um controle ainda melhor sobre o mundo externo e no de uma ampliação de pessoas incluídas na comunidade. É difícil compreender como essa civilização pode agir sobre os seus participantes de outro modo senão o de torná-los felizes”. (p. 106).
           
Essa dificuldade pode ser até, menor se incluirmos outras forças motrizes para a solução do atendimento às necessidades que nos dividiram em classes e colocaram mecanismos semeadores de desigualdade no modo, no domínio e no acesso ao compartilhamento dos bens e produtos do trabalho humano, pelos próprios humanos.
            Introduzidos os dois grandes gigantes construtores da civilização, Freud vai tecer comentários sobre a questão da relação entre amor e civilização, deixando um pouco de lado a exploração dos mecanismos relacionais entre necessidades e civilização, e em torno do amor e civilização. Para Freud, o amor assume formas diferenciadas à medida que, basicamente, consolida-se a renúncia ao prazer sexual – finalidade precípua do amor- e este conhece a possibilidade de se manifestar no que ele chama de “afeição inibida em sua finalidade”. No decurso do desenvolvimento, a relação do amor com a civilização vai perder esta ausência de ambigüidade, ou seja, “Por um lado, o amor se coloca em oposição aos interesses da civilização; por outro, esta ameaça o amor com restrições substanciais”.
            Aqui, interrogamos sobre que interesses seriam os da civilização que se chocam com os interesses do amor? Se o amor, como ele argumenta, está na raiz dos nossos instintos gregários, de constituir parelhas e famílias, ou de estabelecer amizades, no que a civilização poderia agir contrariando estes interesses, que nos parecem serem também seus? Sua resposta, apesar de exata, não é todavia,  muito clara.

“A tendência por parte da civilização em restringir a vida sexual não é menos clara que sua outra tendência em ampliar a unidade cultural.(...) Os tabus, as leis e os costumes impõem novas restrições , que influenciam tanto homens como mulheres. Nem todas as civilizações vão igualmente longe nisso, e a estrutura econômica da sociedade também influencia a quantidade de liberdade sexual remanescente. Aqui como já sabemos, a civilização está obedecendo às leis da necessidade econômica, visto que uma grande quantidade da energia psíquica que ela utiliza para seus próprios fins tem que ser retirada da sexualidade. Com relação a isso, a civilização se comporta diante da sexualidade da mesma maneira que um povo, ou uma de suas camadas sociais, procede diante de outros que estão submetidos á sua exploração” (p.109).
           
Abre-se aqui uma passagem pelo menos contraditória para nós. Até então, Freud empregara o termo civilização, no singular, como se se referisse a uma civilização humana, genérica. Agora, ele a usou no plural, o que abre a possibilidade de pensarmos que esteja se referindo a situações particulares, no sentido do particular mais dialético. Do mesmo modo, a alusão a estrutura econômica diversa para cada civilização permite pensar ou nos remete ao olhar daquele outro pensador do social, que é Marx, quando advoga, por exemplo, a sua concepção de que a civilização é engendrada em momentos particulares, contextos específicos e à luz da capacidade intrínseca ao desenvolvimento das suas forças produtivas e dos seus meios de produção. Afinal, é algo neste sentido precisamente, que afirma “um ponto culminante nesse desenvolvimento foi atingido em nossa civilização cultural européia". Ou seja, justamente a civilização  recém-saída de um conflito bélico que assolou praticamente todo o continente e cujos ecos ainda se faziam ouvir na instabilidade política e social daquele tempo, em que emergiam reivindicações como extensão de voto às mulheres, conflitos econômicos e rufar de tambores de guerras e ocupações que apenas uma década depois dão início a outro conflito mundial. Como não pretende discutir este contexto, nosso autor se volta imediatamente para o como a civilização influencia ou interfere na estrutura dos instintos naturais do homem, a saber, os instintos da sexualidade e, mais adiante, da agressividade.

“A civilização atual deixa claro que só permite os relacionamentos sexuais na base de um vínculo único e indissolúvel entre um só homem e uma só mulher, e que não é de seu agrado a sexualidade como fonte de prazer por si própria, só se achando preparada para tolerá-la porque, até o presente, para ela não existe substituto como meio de propagação da raça humana” (p. 110).

            Claro que este parece ser um quadro extremado, mas quão próximo da realidade, no entanto. De todo modo, fica aí delineado, precisamente, de que maneira o amor – sempre voltado obsessivamente para a satisfação de sua pulsão constitutiva vai colidir com os interesses de uma civilização que, por ser propriamente uma consolidação de interesses econômicos cada vez mais desiguais, terá que estabelecer restrições e freios àquele. Freud vai tecer considerações sobre as dificuldades e desafios colocados pela, digamos, tarefa, de viver o amor em suas formas e na sua plenitude, dadas, em resumo, pela tripla dificuldade: primeiro, pela nossa tendência em idealizar este amor; segundo, pelo fato de que nem todos os homens merecem igualmente ser amados, e o terceiro, apenas implícito, dada nossa natureza ‘selvagem’ de agressividade e disputa. Além do mais, diz-nos ele, ainda que este estado ideal de indivíduos plenamente satisfeitos sexualmente e ainda assim libidinalmente implicados em manter movimentos gregários para outros objetos que não o de seu amor, nunca existiu realmente.
             Com base nisso, nosso autor envereda por uma discussão das exigências feitas de maneira idealizada ao amor, demonstrando as dificuldades inerentes a se vivenciar a máxima posta, por exemplo, no mandamento “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, para arrematar da seguinte maneira:

“O elemento de verdade por trás disto tudo, elemento que as pessoas não estão dispostas a repudiar é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas: pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo – homo homini lúpus” (p. 116).

           De fato, a realidade se apresenta recheada de exemplos que parecem corroborar esta tese – o homem é o lobo do homem. Tese, aliás, também encontrada e defendida por filósofos políticos como Locke e Hobbes. E aqui um diálogo imaginário pode ser pensado entre as diatribes especulativas de Freud a respeito da ação castradora da civilização, e um Hobbes quando se debruça sobre os arrranjos organizacionais necessários para a vida em comum, e saúda o Estado como a organização diabólica, o grande Leviatã, este mal necessário que, por surgir, realiza, podemos dizer assim, uma castração das liberdades individuais; isto é, a liberdade que coloca todos contra todos, como também quer Locke. De todo modo, reconhecer como Freud a existência de tais atos, não passaria de recolher os fenômenos apenas aparentes de um mecanismo que, antes, se oculta do que se revela aos nossos olhos, qual seja de que há mecanismos externos que estão na raiz deste tipo de comportamento dos homens? Em outras palavras, atribuir tais pulsões à natureza própria do homem não configura uma impossibilidade, em termos, à realização de uma civilização humana? Se o homem é o lobo do homem, estamos fadados a co-existir sob o jugo de uma força extra-humana? E neste caso porque esta força não pode ser localizada na existência de um Deus que tudo fez e tudo governa? Ou ainda, em que sentido a idéia de uma civilização que opera como um mecanismo disciplinador e castrador das vontades e agressividade humana não reside igualmente na idéia de uma ontologização desta mesma noção de civilização, ou seja, isto não equivaleria a estabelecer para a civilização um lugar além e acima da própria condição humana? Como pensar isso, reconhecendo na própria civilização uma ação perene dos homens?
            A seqüência de fatos não parece ser outra senão a que nosso autor estabelece: porque existem instintos agressivos, ou inclinações inatas para a agressão, em nós, e, portanto, no outro das nossas relações, a civilização se vê forçada a dispender energia, e elevada carga de energia, no controle e disciplinamento dos relacionamentos sociais e humanos, sob pena de, não o fazendo, assistir a sua própria desintegração. O interesse pelo trabalho conjunto é mais fraco que as paixões instintivas, e estas precisam ser ‘civilizadas’.

“A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de energia]. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração. O interesse pelo trabalho comum não a manteria unida; as paixões instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis.A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar o próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de que nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem” (p. 117).

            Natureza original tão pregressa que decerto acompanha o homem desde que este vagava nômade ou habitava a copa das árvores. E que, mesmo tendo descido ao solo, mesmo tendo construído grupos e comunidades e desenvolvido um conjunto de coisas e realizações incontáveis, ainda lhe habita a alma como uma sombra. Mas nem mesmo esta perspectiva é de fácil abandono. Por se tratar de energias psíquicas inatas – sexualidade a agressividade – também cobrariam seu preço se deixadas livres. À sexualidade livre não é fácil visualizar ou mesmo imaginar que caminho seguiria. Quanto à agressão, os homens não se sentiriam confortáveis sem ela. Portanto, se a civilização impõe tantos e tão grandes sacrifícios, não apenas à sexualidade do homem, mas também a sua agressividade, Freud nos interroga se podemos compreender melhor porque é difícil ao homem (diríamos quase impossível) ser feliz na mesma. De fato, ele identifica pelo menos uma grande compensação: o homem civilizado trocaria parte de sua sexualidade por uma parcela de segurança. Troca bastante razoável, principalmente se considerarmos o contexto de luta de todos contra todos.
            Contudo, a civilização não se contenta com estas ligações existentes, ela mesma deseja manter uma ligação libidinal entre os homens, para além daquelas que o amor oferece. Talvez tenha faltado ele esclarecer que a civilização tentar oferecer ligações libidinais a partir do outro pólo, o da necessidade. Voltemos as suas palavras:
           
“A realidade nos mostra que a civilização não se contenta com as ligações que até agora lhe concedemos. Visa a unir entre si os membros da comunidade também de maneira libidinal e, para tanto, emprega todos os meios. Favorece todos os caminhos pelos quais identificações fortes possam ser estabelecidas entre os membros da comunidade e, na mais ampla escala, convoca a libido inibida em sua finalidade, de modo a fortalecer o vínculo comunal através das relações de amizade. Para que estes objetivos sejam realizados, faz-se inevitável uma restrição à vida sexual. Não conseguimos, porém, entender qual necessidade força a civilização a tomar este caminho, necessidade que provoca o seu antagonismo à sexualidade. Deve haver algum fator de perturbação que ainda não descobrimos”(p.118).

            Este problema decerto foi perseguido por outros pensadores e a escola da filosofia política tem trazido várias contribuições a respeito. Certamente, aqui, Marx ocupa um lugar central na elaboração de teorias explicativas e modos de compreensão dos mecanismos inerentes à ação, digamos castradora, da civilização perante a sexualidade.
A conclusão que se segue é mais ou menos óbvia. Decorrente dos sacrifícios que a civilização impõe aos instintos humanos mais básicos – sexualidade e agressividade – pode-se compreender como felicidade (no seu sentido de realização satisfatória das necessidades) e civilização são incompatíveis, ou melhor, como é difícil ser feliz nessa civilização.
            Feito este percurso, Freud vai se deter no exame das contribuições e avanços da teoria psicanalítica que, nos parece, vem sendo desenvolvida como um instrumento de análise e intervenção frente a este estado de infelicidade a que parecemos condenados justamente por vivermos em comunidade, isto é, por vivermos civilizadamente. Ele inicia reconhecendo o fato, por meio da alusão a Schiller, de que são a fome e o amor que movimentam o mundo.

“A fome podia ser vista como representando os instintos que visam a preservar o indivíduo, ao passo que o amor se esforça na busca de objetos, e sua principal função, favorecida de todos os modos pela natureza, é a preservação da espécie. (....) Foi para denotar a energia destes últimos, e somente deles, que introduzi o termo libido. Assim, a antítese se verificou entre os instintos do ego e os instintos libidinais do amor (em seu sentido mais amplo) que eram dirigidos a um objeto” (p. 121).
           
Aqui, suscitados pela menção ao amor, fomos em busca de uma retomada da noção encontrada em Platão, mais especificamente em O Banquete, a fim de melhor delinear e compreender a noção de amor que vai ser desenvolvida por Freud no restante desta passagem de sua obra. O Banquete, como sabemos, é um exercício da filosofia platônica que se desenvolve num diálogo. O enredo é o do encontro de vários amigos, filósofos e poetas, reunidos na casa de um deles, para festejar o prêmio de um jovem, Agatão, com um banquete. Na ocasião, os presentes, Sócrates, Alcebíades, Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e o anfitrião põem-se a discutir o amor, ou melhor, proferir discursos com que buscam definir o amor. De todas as descrições, a tão bela quanto instigante é, sem dúvida, a de Sócrates que narra um encontro com tivera com Diotima, em que esta conta o mito do nascimento de Eros, filho de Poros, o estratagema, com Penia, a deusa da penúria. É assim que o amor, Eros, é ao mesmo tempo sagacidade e angústia: como a mãe, vive maltrapilho, sem lar, sem abrigo, dormindo pelas ruas e espreitando nos umbrais das portas, sempre carente e faminto; como o pai, é audaz, astuto, engenhoso, ardiloso, hábil sofista e feiticeiro, capaz de maquinar vários estratagemas, deseja tudo quanto seja belo e aspira conhecer a tudo. No mesmo dia, floresce e vive, morre e renasce, nunca opulento, nem completamente desvalido, segundo as palavras com que o descreve Diotima, pela boca de Sócrates.
            Assim, parece-nos marcante a menção de que Freud tenha se utilizado de tal concepção. E que, por esse ângulo, não deixe de revelar também que dos dois grandes construtores da civilização, a fome e o amor, este último também carregue em si a penúria, a carência, a falta, a sofreguidão com que se atira e aspira a tudo que deseja. Se o amor é também carência, não poderia ser visto, aqui também, como apenas uma forma, ainda que sublime, de necessidade? Acho que o próprio Freud acolhe esta tese, esta visão, o que acaba por reduzir a paternidade da cultura a um só gigante, o das necessidades humanas, entre as quais destacaríamos uma forma elaborada, a necessidade de amor. Mas mesmo este, pulsante de vida, carrega junto consigo, como força igualmente constituinte, a pulsão de morte.

“Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos, concluí que, ao lado do instinto para preservar a substância viva e para reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver outro instinto, contrário àquele, buscando dissolver estas unidades e conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico. Isto equivale a dizer que, assim como Eros, existia também um instinto de morte. Os fenômenos da vida podiam ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente oposta, desses dois instintos” (p. 122)

“O nome libido pode mais uma vez ser utilizado para denotar as manifestações do poder de Eros, a fim de distingui-las da energia do instinto de morte” (p. 123).


            A decorrência da identificação da existência deste outro instinto – uma espécie de sombra do instinto do amor, parece ser consequência da reunião – a um tempo conceitual e operativa – dos instintos sexuais e da agressividade instintiva, operando dentro do universo da estrutura biológica humana, cuja expressão mais visível é a do sadismo. Nas palavras de Freud,

“é no sadismo – onde o instinto de morte deforma o objetivo erótico em seu próprio sentido, embora, ao mesmo tempo, satisfaça integralmente o impulso erótico – que conseguimos obter a mais clara compreensão interna (insight) de seu grau extraordinariamente alto de fruição narcísica, devido ao fato de presentear o ego com a realização de antigos desejos de onipotência deste último” (p. 125).
“Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-suficiente, e retorno à minha opinião de que ela é o maior impedimento à civilização” (idem).

Neste processo de argumentação, cremos que Freud fecha um círculo. Os instintos naturais do homem são basicamente de duas naturezas – sexual e agressiva, ou ainda, uma voltada para o objeto que é, a um só tempo, satisfação dos desejos internos com um outro, o objeto sexual; e uma voltada para a destruição deste mesmo outro, por diversas formas e maneiras, que podem ir do aniquilamento pura e simples, até a transformação do outro pela submissão, controle ou seviciamento. Em casos como o último, trata-se de manifestações, como o sadismo, em que parecem operar as duas energias simultaneamente. Como estas necessitam de freios e controles, são forças que se opõem à civilização, na medida em este estabelece outras formas de ligações libidinais entre os homens e deseja ‘disciplinar’ o uso daquelas energias. Neste preciso movimento, se opõem, e, portanto, são conflitantes. No entanto, como conclui Freud este é precisamente um processo vital para a espécie humana:

“(...) a civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única e grande unidade, a unidade da humanidade. Porque isso tem de acontecer, não sabemos: o trabalho de Eros é precisamente este. Estas reuniões de homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas. Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse programa da civilização. Este instinto agressivo é o derivado e principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros, e com este divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o significado de evolução da civilização não nos é mais obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte (Eros e Tanatos), entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nesta luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que nossas babás tentam apaziguar com suas cantigas de ninar sobre o Céu” (p. ‘125-126).

Para finalizar, apontemos alguns problemas, ou melhor, inquietações, decorrentes dos argumentos que Freud utiliza. Um primeiro elemento argumentativo é que Freud estabelece, ou retoma a noção de agressividade inata ao homem. Sem este argumento se enfraqueceria sua noção de luta ou de enfrentamento entre este e a civilização. Afinal, não sendo necessária ou exclusivamente agressivo, o homem tenderia a entrar em espírito de cooperação e colaboração e as sociedades humanas poderiam passar a ser vistas como uma realização da razão humana. Este, por acaso, não é o debate candente entre as diversas correntes da filosofia política? Outro argumento em que se sustenta a argumentação do nosso psicanalista é, a nosso ver, algo problemático, pois recorre a um conceito de homem que reputaríamos como a do homem abstrato. É possível, ou suficiente, falar de homem nestes termos? Admitindo para este, ora uma estrutura libidinal que, por inata, é quase da ‘natureza’ do homem, e ao mesmo tempo, admitindo que este mesmo homem é capaz de se modificar a si mesmo na modificação que imprime à natureza das coisas? Tudo não se passa como se se operasse uma cisão: há o homem operador de transformações na natureza, ou seja, o homem quase macaco que desceu das árvores para construir o mundo tal qual se nos apresenta? E há natureza interna deste mesmo homem, cujo padrão de aprimoramento só o leva até certa organização corporal das funções e prazeres, mas não parece capaz de outras transformações mais profundas, salvo aquelas operadas por forças externas que lhe são hostis? E curiosamente, estas forças externas são produto da própria ação humana! Civilização e mal-estar cohabitam no coração humano e lhe parecem inseparáveis!

 SUGESTÕES DE LEITURA:

 FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização. IN: FREUD, S. OBRAS PSICOLÓGICAS COMPLETAS DE FREUD, EDIÇÃO STANDARD BRASILEIRA. Comentários e notas de James Strachey, em colaboração com Anna Freud. Tradução do alemão e do inglês sob a direção de Jayme Salomão. 2 Ed. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 73- 150.

PLATÃO. O Banquete. IN: O BANQUETE/APOLOGIA DE SÓCRATES. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 2 Ed. [revista]. Belém: EDUFPA, 2001

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A díficil definição da primeira mensagem

Pois é, os dias passaram e nada de me definir acerca de que assunto, tema, reflexão ou comentário postaria como minha primeira mensagem depois daquela, digamos, 'inaugural'. Decidi, por fim, não esperar mais.
Por estes dias, ando recolhido a leitura de livros interessantes e à maturação de projetos de escrita que delimitam compromissos para todo o ano. Espero poder cumpri-los. Para tanto, quero deixar aqui registradas as idéias chave do que pretendo desenvolver como textos para possível publicação:
1) Um dos 'projetos' é o de escrever um livro reunindo um conjunto de reflexões em torno da clínica, seus conceitos, suas categorias e a crítica aos modos como vem sendo difundida suas adjetivações: clínica médica, clínica ampliada, clínica centrada no indivíduo etc. Considero todas, em boa medida, leituras ou compreensões parciais de um objeto complexo e, por isso mesmo, tributário de uma análise crítica mais profunda.
2) Outro projeto, também ligado à saúde (campo em que atuo, pessoal e profissionalmente), tenciona percorrer os caminhos teóricos da chamada 'saúde coletiva' brasileira, revisitando seus principais teóricos ou formuladores. Neste percurso, que chamaria de crítico analítico, identificar elementos com que realizar uma análise crítica do momento atual da Saúde Brasileira: seus impasses, seus limites, suas posssibilidades, seus equívocos, seus acertos.
3) Por fim, um trabalho de criação que reúna textos em torno da gestão da clínica.
Fica o registro. Vamos ver como a ele chegamos quando findar o ano em curso.
Abraços!

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Inaugurando minha vida de blogueiro

Caros amigos, leitores e visitantes.
resolvi por mãos a obra e abrir novos canais de comunicação. Quero, sobretudo, exercitar a escrita, liberar o verbo, emitir opiniões, ampliar a troca de opiniões, pensamentos, análises e reflexões.
Vamos ver se consigo manter uma regularidade.
Até o próximo post.