Na década de 80, quando eu era uma criança, era muito comum as casas e apartamentos da classe média serem dotadas de “dependências de empregada”. Um lugar dentro da casa, mas fora da casa. Geralmente muito pequeno, ao lado da lavanderia, depois da cozinha, com um banheiro mínimo, apartado da casa, na área de serviço. Na ala dos serviçais. Apar(th)ada da família. Você obviamente não se surpreenderá ao saber que grande parte dessas funcionárias eram mulheres. Negras.
Às sete ou oito da noite, depois de lavar toda a louça e deixar tudo pronto para as tarefas do dia seguinte, ela se recolhia, geralmente para assistir uma pequena televisão em sua minúscula “dependência” – sua quase única diversão. As mulheres e famílias tinham por hábito perguntar, à pretendente ao cargo, se ela era “para dormir”, o que significava saber se ela poderia dormir no emprego. Gostavam de ouvir resposta afirmativa. Mas faziam questão de enfatizar que teriam folga para ver a família apenas uma vez por semana – ou a cada quinze dias, nos casos dos mais rigorosos.
Muitas dessas mulheres eram mães. E deixavam seus filhos pequenos com a própria mãe, com a sogra, com outros filhos maiores ou com amigos para poder encarar a jornada. E assim passavam-se dias, meses, anos. Vivendo em um 2 x 1, com uma diversão televisiva.
Em toda minha vida, conheci apenas uma pessoa responsável pelos serviços domésticos e de organização de uma família, contratada (não familiar), que tinha seu próprio quarto junto aos demais membros de sua família – sim, ela era realmente da família. Um quarto confortável, bonito, como deve ser o quarto de um membro da família. Amada e cuidada com um membro da família, porque era o que ela era, é o que ela é.
Hoje, a coisa é muito diferente. As profissionais domésticas são mais reconhecidas, possuem direitos trabalhistas, valorizam-se por saberem disso e devem ser valorizadas como todo e qualquer profissional.
Muitos não se sentem à vontade com isso. Colocam a culpa do “empobrecimento da classe média”, que antes podia pagar uma empregada doméstica e hoje não pode mais, no governo. Muito claramente se percebe o que podiam pagar antes: um sistema quase escravocrata de trabalho, humilhante e ultrajante, de pouca ou nada valorização profissional. Muito claramente se percebe porque não podem pagar hoje: porque um profissional desse custa caro, tão caro quanto o seu próprio serviço – e quem,
mentalidade classemediana, quer ter o seu próprio serviço comparado ao serviço de uma doméstica? Lavar banheiro não é para si. É para os outros. Enxergam um “empobrecimento da classe média” mas não a redistribuição da renda – coisa para o qual ainda estamos engatinhando...
Essas pessoas são totalmente contrárias à PEC (Proposta de Emenda Constitucional) das Domésticas. Um projeto de lei que prevê que funcionários que executam tarefas domésticas sejam remunerados como quaisquer outros: empregada doméstica, babá, motorista, etc. A PEC das Domésticas prevê, a esses funcionários, indenização em caso de ser mandado embora sem justa causa, seguro-desemprego, FGTS, salário mínimo garantido, adicional noturno, proteção ao salário, salário-família, jornada de trabalho de 8 h/dia e 44 h/semana, hora-extra, normas de segurança no trabalho, auxílio creche e pré-escola para filhos e dependentes até 5 anos, entre outros direitos básicos. Coisas que eu quero, você quer, todo mundo quer. Mas que o empregado ou a empregada doméstica não tinha direito de querer. E as pessoas de mentalidade classemediana são contra.
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Quando eu era criança, até mesmo adolescente, não tive amigos negros nas escolas de classe média que frequentei. Fui tê-los como colegas apenas quando meu pai foi mandando embora da multinacional que o empregava e minha família classe média perdeu quase tudo e virou classe média baixa, mais pra baixa que pra média. Passei por um choque de realidade extremamente benéfico para mim (embora tenha sofrido muito na época), e que considero o grande divisor de águas entre o que eu poderia ter sido e o que sou hoje. Da escola de classe média de garotos que se divertiam praticando bullying e garotas que falavam apenas sobre marcas caras de roupas, além de compararem seus tamanhos de seios e casas de praia, fui para uma escola estadual, período noturno. Lá conheci pessoas que viviam a vida como ela é. E tive colegas negros. Gente que trabalhava durante o dia e tentava estudar à noite.
Estimulada positivamente por essa realidade e pela que eu própria vivia, comecei a trabalhar. Trabalhávamos durante o dia e estudávamos à noite. Tentávamos estudar, porque quase não tínhamos professores e quando os tínhamos, era como se não os tivéssemos, com exceção de dois: um cara muito dedicado, professor de filosofia, e uma professora de português. A maioria dos meus colegas de colégio público não tinham pretensões de ir a uma boa faculdade. Para que eu pudesse concorrer a uma vaga em uma universidade pública, precisei fazer um cursinho pré-vestibular, pago com muita dificuldade por minha mãe. Lá, meus colegas negros também eram a extrema minoria: de uma turma com 40, 3 negros.
Focada que estava em ser aprovada em uma universidade pública, em função da impossibilidade da minha família de pagar por uma particular e porque era esse o meu objetivo, estudei todos os dias durante um ano das 6 da manhã à meia noite, obcecadamente. Quase sem vida social. Jamais desejarei isso a um filho, com a mentalidade que tenho hoje. Obviamente, para isso, parei de trabalhar e foquei nos estudos. Isso ainda era uma possibilidade na realidade que eu vivia, ainda que minha família estivesse passando por dificuldades. Fui aprovada em todas que prestei. E lá, no seio da universidade pública, o novo choque: apenas duas colegas negras na minha turma. Sendo uma de Angola.
Onde estavam os negros?
Pouquíssimos estavam nas universidades públicas como alunos de graduação, quando comparados com a maioria esmagadora branca.
Fiz mestrado em uma grande universidade.
Sem negros no laboratório de pesquisa onde trabalhei.
Três, no total, entre os três grupos de pesquisa dos quais fiz parte por lá. Três entre cerca de 30 alunos.
Fiz doutorado em uma universidade federal. Uma colega negra em um laboratório onde passaram mais de 15 pessoas durante os quatro anos em que estive lá. Poucos em todo o departamento.
Sou professora desde 2002. Lecionei em quatro universidades particulares diferentes de São Paulo e Grande São Paulo. Dei aula durante dois anos na Universidade Federal de Santa Catarina, para cursos como enfermagem, medicina, odontologia, farmácia, biologia, fonoaudiologia, e outros. Dou aula esporadicamente para as primeiras fases de alguns cursos da área da saúde. O número de negros? Aumentando exponencialmente. Resultado da política de cotas raciais no Brasil.
Logo que a cota para negros foi divulgada, vi nisso uma forma de discriminação ao próprio negro. Eu pensava: “Se eu fosse negra, não aceitaria! Eu gostaria de entrar por meu mérito, em igualdade de competição com os brancos! Isso me diminui!”. Mas acontece que se eu fosse negra, por mais mérito que eu tivesse, seria muito provável que eu não estivesse em igualdade de competição. Não por minha incapacidade, mas por uma desigualdade histórica que marcaria minha vida sim. Hoje, sou uma defensora das cotas para negros. Isso deu certo no Brasil e mudou a vida de muitas pessoas. Emociono-me de lembrar da minha aluna que foi oradora na formatura e que não conseguiu falar porque só chorava. Ao fim, disse apenas: “Obrigada pelas cotas...”. Foi dela um prêmio por melhor trabalho de iniciação científica em um congresso de sua área. Não lhe faltava mérito, talvez apenas faltaria oportunidade de acesso.
Mas muitas pessoas não pensam assim. Muitas pessoas são contra as cotas. Não por questões como a que mencionei, de suposta redução do mérito do negro. Mas por questão de preconceito e de discriminação racial (não gosto do termo racial). Claro que isso nem sempre é dito com todas as letras. Mas torna-se claramente identificável pela fragilidade de seus argumentos.
Muita gente de mentalidade classemediana é contra as cotas porque não enxerga qualquer desigualdade entre negros e brancos. Não porque não exista. Mas talvez porque nem enxergue verdadeiramente o negro... Usa-se do argumento de que isso é ruim inclusive para o negro, porque não o ensina a pescar, oferece logo o peixe.
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Gente de mentalidade classemediana também não gosta do Bolsa Família, já reparou? E geralmente usa o mesmo argumento do “Não dê o peixe, ensine a pescar”.
O Bolsa Família é um programa de transferência de renda, uma busca muito distante ainda pela tal redistribuição da renda, algo voltado a combater a pobreza e a extrema pobreza, voltado para mais de 15 milhões de brasileiros que tem renda familiar per capita menor que R$ 70,00/mês. E que não podem morrer de fome enquanto se aprende a pescar... Você acha que entre esses 15 milhões de brasileiros existem muitos, muitos negros? Sim ou com certeza?
Mas gente de mentalidade classemediana é contra o Bolsa Família... Gosta da Bolsa Reuni, da Bolsa CNPq, da Bolsa CAPES, tem tara pela Bolsa Fapesp, sonha com a Bolsa do Ciência Sem Fronteiras... Mas Bolsa Família? Que é isso? Tá de brincadeira? “Isso aí estimula o ócio”. Algo como “Na teta do governo só mamo eu”.
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Então essa semana começaram a chegar os médicos cubanos, você deve estar sabendo. A chegada deles faz parte do Programa Mais Médicos Para o Brasil, que não prevê somente a vinda dos médicos cubanos, mas a abertura de mais vagas de residência em medicina da família, o aumento da bolsa aos estudantes (ah, essa pode!), a abertura de cursos de medicina em áreas brasileiras que precisam disso. Mas só se fala na chegada dos cubanos...
Eles não precisam revalidar seus diplomas porque não ficarão aqui, apenas estão vindo em situação emergencial, para ajudar a oferecer assistência à saúde onde médicos brasileiros não foram – seja por falta de estrutura ou de interesse. E isso oferece uma forma de segurança ao médico brasileiro que está se sentindo incomodado pela vinda delas utilizando o falso argumento de “vão roubas as nossas vagas”, porque justamente por não terem diploma revalidado, só poderão prestar serviços nesta tarefa relacionada à Organização Pan-americana de Saúde. O fato é que, independentemente de não ter estrutura, não faltou interesse a esses médicos estrangeiros. Mas só se fala na chegada dos cubanos...
Falta muito médico no Brasil. Temos hoje no Brasil cerca de 1,8 médico por mil habitantes. Uma defasagem de quase 170 mil novos médicos para chegar a números como o da Alemanha (3,5/mil habitantes). Se você mora em São Paulo, Rio, Florianópolis, Porto Alegre, nem sabe disso, porque nesses lugares o número de médicos por mil habitantes, se não é, já se aproxima do ideal. Mas você está esquecendo de incluir em sua análise quase 80% da população... Pelo menos 13 estados brasileiros têm menos de um médico por mil habitantes... Mas só se fala na chegada dos cubanos...
Recomendo a leitura
deste que é, em minha opinião, um dos melhores textos sobre a vinda dos médicos cubanos ao Brasil, de autoria de um dos maiores conhecedores da saúde pública brasileira e que é, também, médico: professor Marco Aurélio da Ros, que foi professor do programa de pós-graduação à qual estou atualmente vinculada e com quem tive a grande oportunidade de aprender algumas coisas. Leia antes de fazer qualquer comentário. Provavelmente sua dúvida também está contemplada neste texto.
E mesmo que a vinda dos médicos cubanos (e de outros países – mas só se fala nos cubanos!!) vá representar alívio para brasileiros pobres de mais de 700 municípios que não têm médicos suficientes, muita gente de mentalidade classemediana é contra. Mesmo que eles não representem concorrência profissional por não terem o diploma revalidado (a despeito da medicina cubana ser considerada a melhor das Américas, palavras do grande Marcão). Mesmo que eles não estejam se dirigindo aos grandes centros urbanos brasileiros, onde se concentram os médicos – e onde não sobram vagas.
O que é então que está incomodando?
O que há de diferente nos médicos cubanos que os fazem alvo da mentalidade classemediana e não os demais médicos, vindos de outros países?
Não vai me dizer que você acha que é uma coincidência o fato de toda essa violência, ira, ódio estar sendo destinada a um grupo composto, em grande parte, por negros?!
Não vai me dizer que você acha que é coincidência o fato de toda essa violência, ira, ódio estar sendo originada de gente que tem mentalidade classemediana?
Em um país que viveu mais de 300 anos sob regime de escravidão (com negros livres há apenas pouco mais de 120 anos), cuja classe média possuía até bem pouco tempo dependências para suas empregadas, muitas delas negras, cuja presença de alunos negros e indígenas nos cursos de graduação era escassa até que surgissem as ações afirmativas, onde famílias de gente branca de classe média (ainda que miscigenada) se comprazem em fazer piadas utilizando palavras como “negrinhos”, “de cor”, “escurinhos”, livremente, em um almoço de família, e riem juntos disso, você quer realmente que se acredite que não se trata de discriminação e preconceito contra o cubano?
Acorda, Pollyana!
Não é coincidência.
Somos um país de colonizados que pensam como colonizadores.
Somos um país de cidadãos miscigenados, muitos descendentes de africanos que foram aqui escravizados e que continuam a sofrer as consequências da violência e da escravidão. Somos um país de descendentes de indígenas, que tiveram suas terras griladas e viram seus conterrâneos exterminados em massa, e que continuam a ser, até que se extingam completamente, sob os olhos passivos da sociedade. Somos um país de descendentes de imigrantes que vieram lutar pela sobrevivência e deixaram para trás suas famílias e suas terras de origem. Somos um país de gente que já sofreu muito, inclusive nas filas à espera de médicos.
Somos tudo isso.
E somos também uma terra onde vive gente sofrida, no meio do qual saltam pessoas de mentalidade classemediana, bradando “ESCRAVOS! ESCRAVOS! ESCRAVOS!” para profissionais cubanos. Sem se darem conta da pequenez de seu gesto, do caráter xenofóbico de suas ações e de sua própria escravidão.
Uma escravidão voluntária.
A escravidão da mediocridade.
Eles querem os cubanos! Dentro de suas dependências de empregadas.
Desculpem, senhores de branco que se intitulam doutores sem o ser, eles não estão disponíveis. Estarão muito ocupados em atender cidadãos que precisam de assistência à saúde. Lá, onde não há estrutura e onde professores dão aula embaixo de árvores.
Sejam bem vindos, companheiros cubanos! Que vocês possam ajudar quem está precisando, há muito tempo, de atenção médica. E que a prática de vocês possa inspirar o próprio governo brasileiro a valorizar os nossos bons médicos cidadãos. Que não são representados por tantas manifestações de preconceito, ódio e discriminação.
Somos muitas coisas. Mas não somos xenofóbicos.
Uma minoria não nos representa.
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...
E existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no seu pranto...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Trechos de “Navio Negreiro”, de Castro Alves, como cantado por
Caetano Veloso e Maria Bethânia
Ligia Moreiras Sena
Bióloga, mestre em psicobiologia, doutora e com pós-doutorado em farmacologia, área que deixei após me tornar mãe. Estimulada pela maternidade, mudei de área, de foco e de vida, e hoje faço um novo doutorado, agora em Saúde Coletiva. Sou pesquisadora da assistência ao parto no Brasil, da violência obstétrica e da medicalização da infância e do corpo feminino. Sou mãe da Clara e esse é o mais relevante dos meus títulos. Ela me inspira, todos os dias, a olhar a vida e os seres humanos por outro prisma, a lutar pelos direitos das mulheres e a conectar pessoas que buscam criar seus filhos de maneira afetuosa e não violenta.
Comentário do Senhor C.:
- Reproduzo este texto como forma de compartilhar com os amigos e com os leitores deste blog uma mensagem que me emocionou do começo ao fim. Um depoimento quase irretorquível de tão denso, profundo e, mais do que isso, transbordante de afeição pelo que somos, sem máscaras, sem pinturas e sem deslealdades.
Tudo isso me tocou profundamente, a ponto de querer declarar ter muito orgulho, muita honra e muita alegria por sermos como somos: eu e meus amigos e companheiros, camaradas que compartilham uma mesma visão de mundo: ter uma vida digna e igual em oportunidades e direitos para todos, SEM DISTINÇÃO ALGUMA!