A respeito deste filme que ainda se pode assistir, escrevi há algum tempo esta crônica.
Uma família disfuncional – é com esse termo politicamente correto que definiríamos, inicialmente, a família do filme “Pequena Miss Sunshine”. Reunindo um avô viciado em heroína; um marido fracassado como vendedor de métodos de auto-ajuda, mas um verdadeiro chato em sua obsessão pelo sucesso; um casal de filhos meio-irmãos – ele, oriundo do primeiro casamento da sua mãe, imerso num autismo existencial voluntário que é expressão exacerbada e caricata dos ‘autismos existenciais’ em que mergulham os adolescentes típicos da atualidade; ela, uma criaturinha tão meiga e sonhadora quanto distante dos estereótipos da beleza americana, mas embalada pelo estímulo do avô em julgar-se miss, enquanto ensaia uma coreografia para se apresentar num concurso de beleza infantil, do tipo que prolifera feito praga em vários estados dos EUA. A estes tipos quase comuns de tão incomuns, vem se juntar o irmão da mãe, um professor universitário gay e deprimido que tenta suicídio motivado por uma desilusão amorosa. Ah, e não nos esqueçamos da mãe, mulher jovem, oprimida pela solidão afetiva, angustiada pelo transtorno obsessivo do marido, e astutamente hábil em dissimular tais afetos, mas um tipo de mãe bastante comum e encontradiço na cena atual: dividida entre o dever e o querer, entre o desejo e a necessidade.
Para quem vai ao cinema esperando um
pacote que reúne entretenimento, momentos de humor nonsense e, ao mesmo tempo, crítica inteligente e sutil ao american way of life, “Pequena Miss
Sunshine” é um prato feito de encomenda. Em meio a uma salada de tipos tão
divertidos quanto estranhos, consegue dar um tratamento simultaneamente sensível
e delicado a temas como homossexualidade, escatologia senil, bizarrice
adolescente, obesidade infantil e conservadorismo do tipo médio presente na
sociedade estadunidense. E o faz sem descambar para o apelativo, para o
pieguismo, e para os clichês facilmente encontráveis nos roteiros “mexicanos”
ou “globais” com que somos bombardeados.
O filme é, tecnicamente falando, um road movie que vai revelando o modo como
a família se lança numa “descoberta” de si mesma, enquanto persegue atender a
um sonho infantil da menina que deseja ganhar um concurso de miss. Durante a
longa jornada rumo à ensolarada Califórnia, onde tenta chegar a tempo para a
final do concurso, cada um dos personagens vai vivenciando uma catarse
reveladora na forma de “incidentes” pessoais que os coloca diante de si mesmos,
dos seus limites e da aceitação dos seus opostos e de cada um dos seus pequenos
desvios da norma. Cada um a sua maneira, e de modo muito doloroso e, talvez por
isso mesmo, humano, vai enfrentar justamente o que mais evita: a dura realidade
dos seus limites, e dos limites dos seus sonhos; seja porque ignora este
limite, como é o caso do jovem daltônico; seja porque sonha demasiado a ponto
de julgar realidade o que sonha, como é o caso do vendedor de autoajuda; ou
porque já se lançara em busca de um fim, pelas atitudes que racionalmente toma,
como parece ser o caso do avô. Quem ocupa o papel de guia neste tour existencial parece ser a mãe: única
que retornará da viagem menos modificada no seu íntimo, mais profundamente
alterada pelas mudanças em torno dos seus entes queridos.
A estória segue intensamente humana
e pungente até o desfecho final que, longe de melodramático, é uma saída bastante
coerente com todo o começo. Seu roteiro é socialmente oposto ao movimento em
que a sociedade é empurrada rumo ao conformismo, ao quietismo e ao
comportamento massivamente copiado que anula a identidade. Ou seja, é bálsamo
para as dores do momento em que a “diferença” é até saudada nos textos e teoria
como a ‘atitude’ da modernidade, mas é maltratada nas ruas e nas relações
sociais e pessoais que parecem caminhar, feito náufragas, rumo ao abraço dos
afogados.
A “mensagem” de Pequena Miss Sunshine sugere, ainda, alguns alentos: o de que podemos
contar conosco é um deles, como diz a máxima ‘ajuda-te que te ajudarás’! Mas,
acima de tudo, o de saber que as relações afetivas e familiares ainda são um
belo custeio para quando parecemos apenas peças frágeis diante do inexorável
jogo da vida e quando vemos nossos sonhos escaparem pelos dedos. Tudo o que
precisamos, nestas e em todas as horas, é nos importarmos uns com os outros e
nos aceitarmos com nossos sonhos, desejos, fraquezas e desvios. Exatamente como
uma pequena centelha de sol, penetrando pela fresta do telhado, enche de vida e
luz a escuridão e nos convida a olhar lá fora! Talvez seja essa a melhor imagem
para definir esta pequena miss! Sunshine! Evoé!
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