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segunda-feira, 11 de abril de 2011

Para os partisans da integralidade!



Contribuição à reflexão sobre uma imagem-objetivo

(Rascunhos de uma idéia em elaboração)

Trata-se de interrogar criticamente o forte consenso em torno da idéia de integralidade, que vem a ser uma das consignas mais incensadas no contexto atual da Saúde Coletiva brasileira, e se apresenta como uma premissa inexpugnável para todo aquele que quiser ser inscrito no rol dos partisans do SUS.

Comecemos, nossa crítica, pela reiteração de algumas afirmações a respeito do tema ‘integralidade’ que caminha como relativo consenso no campo da Saúde Pública brasileira, a que vamos aduzindo comentários quase heréticos:

a) Como Rubem Matos já o disse, a integralidade é a nossa ‘imagem-objetivo’. Porém, mais do que essa imagem, quero convidar meus leitores a pensarem na integralidade como o nosso Santo Graal. A idéia de Santo Graal precisa ser rapidamente lembrada para aqueles que porventura desconheçam a lenda ou mito tal qual é contada que aqui vou recuperar de uma forma inteiramente livre. O Santo Graal seria o cálice em que Jesus Cristo teria rezado a primeira missa com seus apóstolos, na famosa cena em que bebe vinho e celebra a idéia de sangue derramado como elemento de transubstanciação. Mitologia cristã a parte (oportuna apenas pelo feriado que se aproxima), o que se sabe é que este mito impregnou a mitologia em torno das cruzadas e ao longo do tempo, o cálice de Cristo - o Santo Graal- se tornou um objeto jamais encontrado, tendo sido incorporado a contos como os da Távola Redonda do Rei Artur e até mesmo mencionado em best-sellers mais recentes como o Código Da Vinci. Pois bem, é com este idéia de ‘imagem-objetivo’, desprovida de seu aspecto lendário ou mitológico, que gostaria de considerar como imagem para que examinemos a idéia de integralidade. Creio que ela é hoje o Santo Graal da Saúde Pública, ou Coletiva se preferirem.

b) alguns indícios temos todavia para considerar este ‘santo graal’ como um objeto concreto. Podemos obtê-los a partir dos elementos históricos que nos permitem reconhecer os desafios colocados pela Reforma Sanitária, por exemplo, quanto almeja alcançar a integralidade preventivo-curativa das práticas de saúde, ou quanto planeja a integralidade institucional entre os três níveis de governo.

c) Também é digna de menção a enunciação de Kenneth Rochel Camargo Jr. quando alude que a integralidade é uma palavra que não pode ser chamada de conceito, mas é antes um conjunto de tendências cognitivas e políticas imbricadas de algum modo entre si.

d) Integralidade pode ainda, ser vista como um discurso propagado por organismos internacionais, e está ligada profundamente às idéias de atenção primária e de promoção da saúde, práticas com as quais nos identificamos; ao mesmo tempo, é também parte de um discurso ‘oficial’ dos documentos e práticas das organizações públicas e já começa a ser incorporada também pelo chamado setor privado - que eu, como um estudioso das relações entre os dois sistemas e tendo realizado já há alguns anos investigações para a ANS dou testemunho da existência, inclusive em livro editado pela agência. Mas o que vale ser dito sobre este discurso é que ele é genérico, vago, impreciso, sobretudo se nos fizermos a pergunta ’o que é integralidade?”

Todos falamos sobre ela, mas talvez experimentemos enorme dificuldade em defini-la. Algo equivalente ao nosso Santo Graal do começo: todos ouviram falar dele, mas ninguém que conheçamos jamais o viu, isto é, ninguém parece capaz de dizer exatamente como ele é, mas apenas fazer apenas uma pálida imagem a seu respeito, assim como foi visto nas telas do cinema naquele filme de arqueólogo-aventureiro tão ao gosto dos pensamentos pueris que freqüentam matinês ou imaginam sagas cavalheirescas de heróis quase humanos .

Ao mesmo tempo, e de novo concordando com Camargo Jr., esta ’genericidade’ ou vaga imprecisão conceitual do termo constitui, o que não deixa de ser contraditório, sua fragilidade e sua força. Passemos a alguns argumentos de sua força, para depois fazermos uma pequena reflexão sobre a fragilidade e seus potenciais, ou melhor, sobre os esforços a que nos convida.

É claro que falar da integralidade carrega muito fortemente a idéia de cuidado - aliás como já mencionaram outros pensadores. Falar de cuidado integral, especialmente situado num contexto de intervenção social e ação higienizadora sobre as mazelas sociais que nos diferenciam, ou mesmo no que se refere a buscar enfrentar as abordagens fragmentárias que só nos desumanizam é mesmo uma questão muito reveladora da força de tal conceito - ainda que assim vago, genérico, imprecisamente definido. Basta, talvez, que nos recordemos de duas questões agudíssimas que habitam a agenda social e política de nossos dias: a hegemonia do discurso da globalização e seus arranjos com o sacrifício de recursos e valores num esforço de ajuste que jamais se completa, mas tem nos obrigado a viver com os cintos apertados e a justificar a retenção de verbas públicas para pagamento monetário em detrimento da atenção as mazelas sociais como desemprego, violência e condições desiguais de vida e saúde que nos rodeiam. Pensar um cuidado integral num contexto como esse é, sem dúvida, desafio que carrega muita força real e imaginária para o conceito que ora examinamos.

Da mesma forma, a associação de integralidade ao cuidado também carrega uma necessária ruptura ou enfrentamento do conceito de saúde em sua essência e cuja ampliação vai de encontro aos anseios da ótica mercantilista e utilitária da vida social que, de um lado vende a idéia de saúde como produtora de corpos saudáveis e sarados - e tome procedimentos estéticos, diria pouco éticos, ao mesmo tempo que gera um mal estar difuso - visto pelo fato de que explode o consumo de ansiolíticos e o consumo de poções de felicidade distribuídas nos consultórios e congêneres aos milhões.

Vista desta perspectiva a idéia de ‘integralidade’ e de ‘cuidado integral à saúde’ revelam toda a sua fortaleza, creio eu!

Um outro aspecto desta força, reside no modo como Rubem Mattos a aborda, dando a ela a noção de ‘valor’ a ser defendido e de valor que agrega toda a diferença qualitativa às propostas que inspiraram o arcabouço jurídico-institucional de montagem de um sistema nacional de saúde. Afinal, a dimensão de universalidade do acesso aos serviços de saúde - vista como uma condição integral de cidadania - tem um claro contraste com o viés economicista que alimentou as políticas difundidas pelo Banco Mundial na mesma época e que propunham a adoção de medidas focais ou políticas públicas restritivas. É deste autor a idéia de ‘imagem-objetivo’ que já mencionei antes e que cai como uma luva para pensarmos a necessária integração de práticas profissionais, arranjos organizacionais e saberes com que haveremos de desempenhar a nobre tarefa da atender a saúde de todos. Sem sombra de dúvida, podemos atravessar a barreira de confusões midiáticas que insistem em apenas mostrar o lado ‘ruim’ das coisas relativas ao SUS, para recolhermos fecundas demonstrações da força que impregna as estratégias variadas da atenção à saúde e das transformações já atingidas no universo de situações problemáticas, das quais destacaria os alcançados em cobertura vacinal, combate às endemias, melhora das condições de saneamento básico, altos índices de internações, absoluto predomínio na oferta de cuidados à patologias crônicas como doença renal crônica, sem falar das DST/AIDs e dos transplantes, como demonstro com números oficiais no meu livro, por exemplo. Claro que não quero com isso, refutar que ainda temos vários problemas a enfrentar, mas neste território estamos sozinhos: não há país no mundo e com a nossa complexidade que persiga atingir um objetivo de tamanha envergadura como o de ofertar assistência integral à saúde em caráter universal.

Neste quesito, o Santo Graal é inteiramente nosso! Mas não estamos indecisos, como na cena do filme, entre qual a forma que devemos escolher, sabendo que podemos apenar beber do veneno de nossa própria soberba e arrogância? Pena que nem mesmo a simplicidade possa ser valiosa neste caso, pois projeta apenas uma sombra recortada na parede, e seus objetos reais são muito semelhantes entre si.

Assim, perseguimos talvez uma idéia de integralidade que não passa de um simulacro do real?

Questões a continuar respondendo.



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