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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Vale Cultura e a arrogância da nossa elite

Nossas 'elites' ainda se comportam como se na Idade Média vivessem!

Críticos da recém-criada Bolsa Cultura dizem que “povão vai torrar os 50 reais em besteira”. 
Mas debate vai além: é cultura sendo transformada em mercadoria a ser consumida passivamente

Por Leonardo Sakamoto, em seu blog

A Câmara dos Deputados aprovou, nesta quarta (21), o Vale Cultura, um benefício de R$ 50,00 mensais para trabalhadores que ganham até cinco salários mínimos. A ideia é subsidiar, através de renúncia fiscal, o acesso a cinemas, teatros, shows, exposições, enfim. O valor não é muito, ainda mais considerando os custos dos produtos culturais no Brasil, mas já é alguma coisa. O projeto estava travado desde 2009, quando o governo Lula prometeu colocá-lo em vigor dentro de um ano.

Na prática, a pessoa receberá R$ 45,00, uma vez que as empresas poderão descontar até 10% do valor do benefício da remuneração dos que optarem pelo programa. Além do mais, o custo será compartilhado, uma vez que os empregadores contam com a possibilidade de deduzir parte do valor gasto do seu imposto de renda.

Se o instrumento vai dar certo ou não, se vai ter adesão em massa das empresas e da indústria cultural, só o tempo dirá. Mas o Vale Cultura, na época de seu lancamento, levantou um debate na classe artística e entre alguns colegas de imprensa que precisa ser resgatado. Pois é raro discutir o acesso à cultura pelos mais pobres para além do que despeja a televisão.

Ouvi e li depoimentos reclamando que o “povão” iria torrar os 50 mangos em besteira, em livros de auto-ajuda, shows de brega ou forró, filmes blockbusters ou neochanchadas nacionais, enfim. Que deveria ser criada uma maneira do gasto ser feito apenas em produtos de “qualidade” ou da “cultura popular” dos estados. Ou seja, não deixar que se comprasse qualquer bobagem.

Tirando o lado elitista, preconceituoso e pseudo-paternalista desse tipo de declaração (já ouvi de muito empresário e fazendeiro, que faziam falcatruas trabalhistas, e de deputado federal que defendia os dois primeiros, que retenção de remuneração serve para evitar que o peão se afunde na cachaça com o salário…), ela também inclui uma visão um tanto quanto distorcida da realidade.

Poderíamos discutir horas a fio sobre os mecanismos da indústria cultural que levam a um produto de massa se sobrepor e esmagar manifestações tradicionais e as conseqüências disso. Contudo, a preservação do patrimônio cultural tradicional não se resolve forçando o povão a consumir um baião tradicional a um tecnobrega, um grupo de cateretê a uma dupla sertaneja, um samba de raiz a um funk proibidão.

Também ouvi coisas do tipo: “esse povo precisa de um banho de Chico Buarque”. Sinceramente acho que todo mundo precisa escutar o homem. Mas a frase, vinda da boca de um culto amigo, irritado com um carro que jorrava tecnobrega no último, gerou aquele arrepio na espinha. E, certamente, não foram os fantasmas de Theodor Adorno e Max Horkheimer passando por perto. Sua crítica não se relacionava ao tratoramento da arte pela estrutura capitalista de reprodução e distribuição de cultura, que a transforma em mercadoria a ser consumida passivamente. Pois, ele próprio é um desses consumidores, que bebe empacotados dito eruditos, vilamadalenizados, mas que tenta “curar” o outro.

Na opinião destes, de “cultura de qualidade”. A clivagem entre o popular e o erudito (e a ignorância de fundir o erudito com o bom) é apenas parte dessa discussão. Esse tipo de pensamento, com a reafirmação de símbolos para separar “nós” da plebe, expressa mais preconceito de classe do que qualquer outra coisa.

E, em um ímpeto quase jesuítico, a necessidade de catequisar vem à tona, para trazê-lo à nossa fé. Não que eles poderão entender tudo, mas poderão, pelo menos, deixar o estado de barbárie em que se encontram ao respirar o mesmo ar que nós.

Nos grandes centros, o consumo da chamada cultura regional tradicional ganhou espaço entre os mais ricos e formadores de opinião. Virou cult. É em cima dessa análise que muitos querem resgatar, forçosamente, um passado “menos selvagem” em que a população de determinado lugar consumia esse tipo de arte da qual também gostamos. Sem se atentar que as coisas mudam, ou que a indústria cultural tem seus processos – que fazem ricos empresários que, ironicamente, bancam esses mesmos formadores de opinião.

Defender, propagar, incentivar as manifestações tradicionais é fundamental porque elas fazem parte de nossa identidade e ajudam a definir o brasil como Brasil. Mas sem desconsiderar as outras manifestações que ganharam visibilidade, também têm o seu valor e são queridas por muita gente. Bem, a discussão é bem mais complexa e não cabe em um post.

Ampliar o leque, dando mais possibilidades de escolha para a sociedade é uma coisa. Guiar o consumo cultural para preservar uma imagem que uma elite intelectual dos grandes centros tem de como deveria ser a cultura brasileira é outra.


Comentário do Senhor C.:

- Meritória a discussão. Mas, na real, arte como mercadoria de consumo é, há tempos, a face cultural do capitalismo! Portanto, democratizar a cultura via 'vales' é uma proposta de ampliação de acesso, mas resgatar outras manifestações e interrogar os barões da mídia que diariamente despejam rios de lixo cultural e desprezam as manifestações expontâneas e comunitariamente alocadas também é ponto a ser transformado em pauta.

A TRAIÇÃO DO PT

Disse a esfinge ao PT: depura-te, ou te devorarão!

por Mino Carta, Carta Capital


Dizia um velho e caro amigo que a corrupção é igual à graxa das engrenagens: nas doses medidas põe o engenho a funcionar, quando é demais o emperra de vez. Falava com algum cinismo e muita ironia. Está claro que a corrupção é inaceitável in limine, mas, em matéria, no Brasil passamos da conta.

Permito-me outra comparação. A corrupção à brasileira é como o solo de Roma: basta cavar um pouco e descobrimos ruínas. No caso de Roma, antigos, gloriosos testemunhos de uma grande civilização. Infelizmente, o terreno da política nativa esconde outro gênero de ruínas, mostra as entranhas de uma forma de patrimonialismo elevado à enésima potência.

A deliberada confusão entre público e privado vem de longe na terra da casa-grande e da senzala e é doloroso verificar que, se o País cresce, o equívoco fatal se acentua. A corrupção cresce com ele. Mais doloroso ainda é que as provas da contaminação até os escalões inferiores da administração governamental confirmem o triste destino do PT. No poder, porta-se como os demais, nos quais a mazela é implacável tradição.

Assisti ao nascimento do Partido dos Trabalhadores ainda à sombra da ditadura. Vinha de uma ideia de Luiz Inácio da Silva, dito Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo até ser alvejado por uma chamada lei de segurança nacional. A segurança da casa-grande, obviamente.

Era o PT uma agremiação de nítida ideo­logia esquerdista. O tempo sugeriu retoques à plataforma inicial e a perspectiva do poder, enfim ao alcance, propôs cautelas e resguardos plausíveis. Mantinha-se, porém, a lisura dos comportamentos, a limpidez das ações. E isso tudo configurava um partido autêntico, ao contrário dos nossos habituais clubes recreativos.

O PT atual perdeu a linha, no sentido mais amplo. Demoliu seu passado honrado. Abandonou-se ao vírus da corrupção, agora a corroê-lo como se dá, desde sempre com absoluta naturalidade, com aqueles que partidos nunca foram. Seu maior líder, ao se tornar simplesmente Lula, fez um bom governo, e com justiça ganhou a condição de presidente mais popular da história do Brasil. Dilma segue-lhe os passos, com personalidade e firmeza. CartaCapital apoia a presidenta, bem como apoiou Lula. Entende, no entanto, que uma intervenção profunda e enérgica se faça necessária PT adentro.

Tempo perdido deitar esperança em relação a alguma mudança positiva em relação ao principal aliado da base governista, o PMDB de Michel Temer e José Sarney. E mesmo ao PDT de Miro Teixeira, o homem da Globo, a qual sempre há de ter um representante no governo, ou nas cercanias. Quanto ao PT, seria preciso recuperar a fé e os ideais perdidos.

Cabe dizer aqui que nunca me filiei ao PT como, de resto, a partido algum. Outro excelente amigo me define como anarcossocialista. De minha parte, considero-me combatente da igualdade, influenciado pelas lições de Antonio Gramsci, donde “meu ceticismo na inteligência e meu otimismo na ação”. Na minha visão, um partido de esquerda adequado ao presente, nosso e do mundo, seria de infinda serventia para este País, e não ouso afirmar social-democrático para que não pensem tucano.

O PT não é o que prometia ser. Foi envolvido antes por oportunistas audaciosos, depois por incompetentes covardes. Neste exato instante a exibição de velhacaria proporcionada pelo relator da CPI do Cachoeira, o deputado petista Odair Cunha, é algo magistral no seu gênero. Leiam nesta edição como se deu que ele entregasse a alma ao demônio da pusilanimidade. Ou ele não acredita mesmo no que faz, ou deveria fazer?

Há heróis indiscutíveis na trajetória da esquerda brasileira, poucos, a bem da sacrossanta verdade factual. No mais, há inúmeros fanfarrões exibicionistas, arrivistas hipócritas e radical-chiques enfatuados. Nem todos pareceram assim de saída, alguns enganaram crédulos e nem tanto. Na hora azada, mostraram a que vieram. E se prestaram a figurar no deprimente espetáculo que o PT proporciona hoje, igualado aos herdeiros traidores do partido do doutor Ulysses, ou do partido do engenheiro Leonel Brizola, ­obrigados, certamente, a não descansar em paz.

Seria preciso pôr ordem nesta orgia, como recomendaria o Marquês de Sade, sem descurar do fato que algo de sadomasoquista vibra no espetáculo. Não basta mandar para casa este ou aquele funcionário subalterno. Outros hão de ser o rigor, a determinação, a severidade. Para deixar, inclusive, de oferecer de graça munição tão preciosa aos predadores da casa-grande.


Um som para além dos limites de cor, raça e cultura





No pequeno país de Botswana, Cyril Ndolo já criou acordes que vão do Rastah ao Jazz, do Kalanga à Bora Ngana. Mas sua vontade de música não acaba

Por Flora Pereira e Natan de Aquino, do Projeto Afreaka

Sentado no sofá da recepção de um dos maiores jornais de Botswana está um homem de aproximadamente 40 anos, um pouco menos na identidade, um pouco mais na aparência. O seu look é o oposto ao de um rock star. Sapato de couro batido, calças amassadas e mãos e blusa manchadas com pingos de tinta branca, aparentemente fresca. Ao seu redor, um mundo está acontecendo e ele não parece estar presente, absorvido pelo som do violão que traz nos braços. Entram e saem jornalistas pela porta ao seu lado esquerdo, o telefone toca a cada cinco minutos, a recepcionista atende um casal de estrangeiros, o gerente da loja ao lado negocia preços de camisetas e o homem, que atende pelo nome Cyril Ndolo, continua a dedilhar as cordas com a concentração de quem está só no deserto.

Quase como todo mundo no país, Cyril cresceu em uma pequena vila e por causa dos estudos se mudou para a ‘cidade grande’, que no caso da pouco populosa Botswana significa algo em torno de 100 mil habitantes. Foi só então que, aos vinte e poucos anos, foi pego pela doença da música, arrumou um violão e decidiu aprender os pormenores da arte. Ele esclarece que começou sozinho sim, mas não aprendeu sozinho não, sabe? “Ninguém aprende sozinho. Você assiste aos outros tocando e vai imitando. Você aprende com os outros”, explica mostrando os primeiros sinais de modéstia enquanto ainda espera sentado ao sofá vermelho.

Chamado para a entrevista, ele termina a música que estava praticando ao mesmo tempo em que caminha para a sala de reuniões. E, assim que se ajeita na cadeira, volta a estudar o instrumento. Quando começa a contar sua história, a explicar o que toca e a descrever seu estilo, o quase anti-rock star parece tomar a forma de um Chico em um dia de descanso. Entre pausas musicais, o artista conta que começou a tocar violão ao estilo tradicional de Botswana com quatro cordas, mas depois mudou. Queria aprender o que não tinha por ali. Queria construir a ponte entre a música tradicional e o rock, mostrando que o estilo não é exclusivamente ocidental. Tocar violão não quer dizer não estar fazendo música africana, you see? Cyril é daqueles que fala com o instrumento e, com toda a calma e didática do mundo, segue explicando suas passagens: “Eu comecei assim, tuntunrun daí eu vou assim panrandan e passo para cádunrundun e mudo esse acorde para algo mais assim: tantan, entende?”.

Durante sua carreira, o artista perambulou por bandas, formou grupos, tocou com os melhores artistas do país, desenvolveu ritmos próprios e gravou alguns CDs, sempre no compasso underground. Passou do ritmo Rastah para o Jazz e do estilo Kalanga para a Bora Ngana. Sua vontade de música não acaba. Ele quer aprender, quer novas opiniões de todos para quem apresenta suas composições, quer toques, dicas, observações, detalhes. Ele tem fome de notas, de som, de ciência musical. E a modéstia chega a ser quase espirituosa quando alguém do calibre artístico de Cyril pergunta a quem vem e a quem vai se está fazendo do jeito certo.

Ainda com o violão no colo, ele conta que se inspira em músicos como Michael Jackson, Bob Marley, Jorge Benson e Jimmy Hendrix. Para ele, são pessoas que conseguiram produzir um som “além dos limites de cor, raça e cultura”. Em um tom que beira levemente o comovido, ele elucida: “Chineses escutam Bob Marley e gostam. Michael Jackson, não importa se você é branco ou negro, você vai gostar. São músicas que inspiram independente do seu background. A música tem que revolucionar. A música está no mundo para as pessoas e não para certos tipos de pessoa.”

O projeto de Cyril agora é viajar à Itália para mostrar sua melodia. Recentemente fez uma parceria com músicos italianos e em conjunto formaram o EqoAfrica, grupo dedicado a difundir a música africana pelo país mediterrâneo. O primeiro festival seria em outubro, mas, mesmo com o convite oficial dos artistas locais, o consulado italiano lhe negou o visto. O fato causou alvoroço nos jornais tswanas, que acusaram a instituição de racismo, mas o músico segue com sua inextricável calma e acredita que a burocracia não será novamente um problema para a sua ida ao próximo festival, em março.

Sua maior preocupação continua sendo o aprendizado – afinal, para o artista o melhor da música não está apenas no tocar, mas na criação em si. Cyril fala sobre estilos, como desenvolvê-los, defini-los e entendê-los: “Levei anos para aprender o que eu sei agora – distinguir escalas, dominar a teoria e colocar tudo isso junto do jeito certo, tentando desenvolver um som em que seja possível identificar a África melhor, tentando delinear a música africana como um todo e tracejar o conceito que as pessoas no estrangeiro têm de nós em África”, ilustra o músico cujas mãos de pingos brancos não pararam por um segundo de estudar as cordas e que, mesmo depois de duas horas de entrevista, ainda parece ter o deserto todo para si.

Para entrar em contato com Cyril Ndolo: eqoafricacyril@gmail.com
Cyril Ndolo from site AFREAKA on Vimeo.


quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O STF, os barões da imprensa e o veredicto do povo

O que vigia a deusa Têmis? Tem ouvidos para a voz das ruas?

João Quartim de Moraes *


ESTAMOS INCONTESTAVELMENTE DIANTE DE UM PROGRESSO DA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA: HABITUADA A CHEGAR AO PODER, UMA VEZ DERROTADA NAS URNAS, PELA RUDE TÉCNICA DO GOLPE DE ESTADO, A DIREITA APOSTA AGORA NO STF. DOS TANQUES NA RUA ÀS NUNCA INOCENTES CASUÍSTICAS E FILIGRANAS ELABORADAS PELAS EMINÊNCIAS TOGADAS QUE COMPÕEM O PRETÓRIO EXCELSO, O AVANÇO DOS MÉTODOS É INDISCUTÍVEL; PODE-SE COMPARÁ-LO AO QUE OCORREU COM A EXTRAÇÃO DE DENTES GRAÇAS À INVENÇÃO DA ANESTESIA.


A extrema direita cavernosa, a tucanagem e outros neoliberais vibraram com o empolgante espetáculo que lhes proporcionou Joaquim Barbosa, conduzindo com zelo de Grande Inquisidor a ação penal 470, dita do “mensalão”. 

Intelectuais de programa e pensadores de aluguel, a serviço dos barões da imprensa, tratam de herói o novo presidente do STF, graças ao qual veteranos da resistência clandestina à ditadura, fundadores do PT, que tinham sido, durante os anos de chumbo, presos, torturados, deportados, foram condenados a penas muito pesadas, no caso de alguns, nomeadamente de José Dirceu, sem qualquer prova documental.

Dir-se-á que um passado de militância corajosa e de alto risco não confere imunidade para atos delituosos. Sem dúvida. Mesmo porque dizem que a lei é igual para todos. Mas será mesmo? Vinte anos atrás, alegando falta de provas e outras chicanas, o pretório excelso absolveu Fernando Collor de um delito pelo qual ele fora condenado pelo Congresso.

 Para avaliar o tamanho da gentileza dos sabichões togados, basta lembrar que PC Farias, parceiro e cúmplice do presidente decaído, teria desviado para a quadrilha da “Casa da Dinda” mais de um bilhão de dólares, conforme apurou a polícia federal, que indiciou cerca de quatrocentas firmas suspeitas e mais de cem grandes capitalistas. 

Não obstante, os aparelhos judiciário e mediático enterraram um inquérito de cerca de 100.000 páginas. Tudo prescreveu, ninguém pagou. Salvo PC Farias, eliminado num motel em circunstâncias convenientemente misteriosas.

A tucanagem também se beneficiou muito da benevolência judiciária. A compra de votos no Congresso em 1997 para alterar a Constituição de modo a tornar possível a reeleição de FHC, a escandalosa privatização da Telebrás e outros assaltos ao dinheiro público, documentadamente denunciados pelo jornalista Amaury Ribeiro Jr. em "A Privataria Tucana" (livro ocultado pela censura dos barões da imprensa) não mobilizaram a indignação seletiva do pretório excelso.

 Fábio Comparato lembrou a propósito dessa ética versátil, que “alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal, ao votarem no processo do ‘mensalão’, declararam que os crimes aí denunciados eram “gravíssimos”.

 Ora, os mesmos Ministros que assim se pronunciaram, chamados a votar no processo da lei de anistia, não consideraram como dotados da mesma gravidade os crimes de terrorismo praticados pelos agentes da repressão, durante o regime empresarial-militar: a saber, a sistemática tortura de presos políticos, muitas vezes até à morte, ou a execução sumária de opositores ao regime, com o esquartejamento e a ocultação dos cadáveres [...]. O severíssimo relator do “mensalão”, alegando doença, não compareceu às duas sessões de julgamento.”

O nervo da questão está na eufemisticamente chamada “mudança de entendimento” do STF. A mesma “falta de provas” que garantiu impunidade a colloridos e tucanos (embora as provas documentais fossem muitas) não foi obstáculo para a condenação de José Dirceu. 
No afã de encontrar algum fundamento jurídico para sua sanha contra o ex-chefe da Casa Civil de Lula, Barbosa buscou apoio na doutrina dita do “domínio dos fatos”, que considera autor de um crime não só quem o executa, mas também quem tinha poder para tomar decisões numa hierarquia funcional formal ou informal. 

Entretanto, o jurista alemão Claus Roxin, formulador dessa doutrina, desmentiu o uso que Barbosa e colegas fizeram de suas ideias. “Quem ocupa posição de comando tem de ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado”, disse Roxin, reprovando a decisão do STF. 

Julgamento ainda mais severo foi o que povo exerceu por meio do sufrágio universal: a despeito da persistente campanha de intoxicação mental empreendida pelo punhado de “famiglie” que manda nos grandes meios de comunicação, a grande maioria do corpo eleitoral não se deixou impressionar. 

Votou como votaria se o STF não existisse.

* Professor universitário, pesquisador do marxismo e analista político.


Mapa da Violência 2012: a Cor dos Homicídios no Brasil



No âmbito das atividades do Mês da Consciência Negra e do Plano de Enfrentamento à Violência contra a Juventude Negra – Juventude Viva, o Centro Brasileiro de Estados Latino-Americanos - CEBELA e a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais - FLACSO em conjunto com a SEPPIR - Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, divulgam o Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil, de autoria de Julio Jacobo Waiselfisz.

O estudo focaliza a incidência da questão racial na violência letal do Brasil, tomando como base os registros de mortalidade do Ministério da Saúde entre os anos de 2002 e 2010. Verifica-se nesse período uma queda de 25,5% nos números e taxas de homicídios entre brancos, enquanto os homicídios de negros aumentaram 29,8%, ampliando ainda mais a brecha existente em 2002. O estudo analisa a incidência da vitimização da pessoa negra nos Estados, municípios e capitais brasileiras, tentando identificar os focos e os determinantes dessa violência.

Para fazer o download do Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil, e de outras edições do estudo, entre no sitehttp://www.mapadaviolencia.org.br/



Entrevista com Michael Löwy

Michel Lowy: “A revolução é um belo monstro com mil cabeças”. 

Ainda hoje, encontramos na esquerda esta visão idealista, neo-hegeliana, que faz do filósofo, ou da vanguarda, ou do partido, a “cabeça” da revolução, constata sociólogo.
Questionado a respeito dos principais limites do pensamento marxista e o que explica o fato de que o marxismo seja visto por muitos setores da academia como retrógrado, Michael Löwy, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, frisa que o marxismo é um pensamento em movimento, que trata de superar os limites que estão presentes na própria obra de Marx e Engels: “por exemplo, um tratamento muito insuficiente da questão ecológica”.
Para Löwy, alguns setores da academia confundem o marxismo com sua caricatura retrógrada, a ideologia do assim chamado “socialismo real”. E continua: “outros, identificados com a ideologia dominante, pretendem que o desenvolvimento capitalista represente o ‘progresso’, sendo o marxismo ‘arcaico’, por se opor à expansão do mercado e à acumulação do capital”.
Segundo o sociólogo marxista, tinha razão Jean Paul-Sartre ao dizer que o marxismo é o horizonte intelectual de nossa época. Para ele, as tentativas de “superá-lo” – pós-modernidade, pós-marxismo, etc. – acabam sendo regressões políticas e culturais. “Como já diziam Rosa Luxemburgo, Lukács e Gramsci, quando a humanidade suprimir o capitalismo, o marxismo poderá ser substituído por novas formas de pensamento...”.

Michael Löwy (foto) é sociólogo marxista e filósofo. É diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS, tendo sido homenageado em 1994 com a medalha de prata do CNRS em Ciências Sociais. É ainda um dos principais pensadores marxistas da atualidade. Recentemente publicou os livros Revoluções (Boitempo, 2009) e A teoria da revolução no jovem Marx (Boitempo, 2012). Além disso, é autor de livros sobre Karl Marx, Che Guevara, a Teologia da Libertação, György Lukács, Walter Benjamin, Lucien Goldmann e Franz Kafka.
Recentemente ele publicou o livro A teoria da revolução no jovem Marx. São Paulo: Boitempo, 2012.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as peculiaridades da revolução na obra do jovem Marx? Em que aspectos sua teoria se modifica em seus escritos posteriores?

Michael Löwy – Nas Teses sobre Feuerbach (1845) – o germe genial de uma nova concepção do mundo, segundoEngels – e na Ideologia alemä (1846), Marx inventa uma nova teoria, que se poderia definir como filosofia da práxis (o termo é de Gramsci). Superando dialeticamente o idealismo neo-hegeliano – para o qual a mudança da sociedade começa com a mudança das consciências – e o materialismo vulgar – para o qual é necessário primeiro mudar as “circunstâncias” materiais –, Marx afirma, na Tese n. III sobre Feuerbach: na práxis revolucionária, coincidem a mudança das circunstâncias e automodificação dos indivíduos.
Como ele explica pouco depois na Ideologia alemã: uma consciência comunista de massas só pode surgir da ação, da experiência, da luta revolucionária das massas; a revolução é não apenas necessária para derrubar a classe dominante, mas também para que a classe subversiva se liberte da ideologia dominante.
Em outras palavras: a única emancipação verdadeira é a autoemancipação revolucionária. Essa tese vai ser um fio vermelho, através de toda sua obra, mesmo que as formulações sejam mais diretamente políticas e menos filosóficas. Por exemplo, no célebre preâmbulo dos Estatutos da Primeira Internacional: “A emancipação dos trabalhadores será a obra dos próprios trabalhadores”. Mas isso vale também para o Manifesto comunista, para os escritos sobre a Comuna de Paris, etc.

IHU On-Line – Como pode ser compreendida a ditadura do proletariado face a democracia que emana da teoria da revolução comunista?

Michael Löwy – A expressão “ditadura do proletariado” foi pouco feliz. Mas como o demonstrou o socialista americano Hal Draper, o que Marx e Engels queriam dizer com isso era o poder democrático dos trabalhadores, tal como o conheceu a Comuna de Paris, que teve eleições democráticas, pluripartidarismo, liberdade de expressão, etc. No século XX, essa expressão serviu para justificar políticas autoritárias em nome do comunismo, que não correspondem ao pensamento de Marx.

IHU On-Line – O que mudou na esquerda desde o lançamento da primeira edição de A revolução comunista na obra do jovem Marx?
Michael Löwy – O título da primeira edição (não da tese de doutorado) era A teoria da revolução no jovem Marx,publicado pelas Editions Maspero, em 1971. Desde então muita água correu nas margens do Sena, e a versão estalinista da esquerda, que predominou durante boa parte do século XX, entrou em crise e praticamente desmoronou no mundo inteiro. Fica então confirmada, pela via negativa, a tese de Marx: a única revolução verdadeira é a autoemancipação dos oprimidos.

IHU On-Line – Em termos gerais, o senhor considera que a esquerda em suas diferentes experiências (União Soviética, Leste Europeu, América Latina, Europa e Brasil) compreendeu Marx de forma equivocada? Por quê?
Michael Löwy – Na URSS, em seus primeiros anos, existiu talvez uma compreensão equivocada do marxismo, uma leitura autoritária de certos textos. Mas a partir do stalinismo, em meados dos anos 1920, já não se trata de equívoco, mas de uma ideologia de Estado, pretensamente marxista-leninista, visando justificar o poder totalitário da burocracia e suas políticas oportunistas. Infelizmente, os partidos comunistas da Europa, América Latina e Brasil seguiram, durante muitos anos, a orientação stalinista. Mas já a partir de 1956 e, sobretudo, de 1968 (invasão da Tchecoslováquia), muitos comunistas começaram a questionar esta ideologia. Na América Latina foi a Revolução Cubana que provocou uma profunda crise no movimento comunista.

IHU On-Line – A revolução permanente de Trotsky é uma categoria adequada para se pensar a esquerda hoje? Por quê?
Michael Löwy – A teoria da revolução permanente de Trotsky – que havia sido formulada por José Carlos Mariategui, no contexto latino-americano, desde 1928 – é a única que dá conta da dinâmica das revoluções do século XX: revoluções russa de 1917, chinesa, iugoslava, vietnamita, cubana. Em todos estes países, uma revolução democrática, agrária e/ou anticolonial se transforma num processo ininterrupto – permanente – em revolução socialista. Infelizmente, em todos estes processos – com a exceção parcial de Cuba – acabou se dando uma degeneração burocrática. Isso não é uma fatalidade, mas o produto de circunstâncias históricas. O que vale ainda hoje é a visão estratégica: as revoluções na periferia do sistema serão revoluções socialistas, democráticas, agrárias e anti-imperialistas ao mesmo tempo; ou então serão “caricaturas de revolução”, como dizia Che Guevara. Dito isso, não se pode considerar a teoria de Trotsky como um dogma infalível: ele previa, nestas revoluções, um papel dirigente da classe operária, que só se deu no caso russo de 1917.

IHU On-Line – Como concilia a militância socialista e surrealista? Como essas vertentes se complementam e confluem para o trotskismo?
Michael Löwy – O surrealismo é um movimento romântico revolucionário, de reencantamento do mundo, que tem uma vocação eminentemente subversiva: é, portanto, perfeitamente compatível com a militância socialista. Aliás, muitos surrealistas, como o poeta Benjamin Péret – que esteve vários anos no Brasil – nunca deixou de militar, e combateu em 1936-37, nas fileiras antifascistas na guerra civil espanhola.
Em 1938, André Breton, o fundador do surrealismo, viajou ao México para encontrar Leon Trotsky, então exilado em Coyacan. Os dois redigiram juntos um manifesto, intitulado Por uma arte revolucionária independente, contra qualquer controle de partido ou Estado sobre atividade poética ou artística. Pouco depois, será fundada a Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente – FIARI, na qual participam surrealistas, trotskistas, e outros. Mas o surrealismo não se relacionou somente com o trotskismo: teve também vínculos com o anarquismo, em particular nos anos 1950, e chegou a se aproximar de Cuba revolucionária nos anos 1960. Suas simpatias vão a todo movimento autenticamente revolucionário.

IHU On-Line – Quais são os desafios da autoemancipação do proletariado numa sociedade “enfeitiçada” pelo consumo e, por conseguinte, por um trabalho que proporciona a alimentação dessa maquinaria capitalista?
Michael Löwy – O feitiço do consumo e o fetichismo da mercadoria exercem um poder considerável sobre a população, mas em certos momentos decisivos o feitiço se rompe, a magia negra do capitalismo deixa de funcionar e os proletários, a juventude, os oprimidos, se levantam contra o sistema. A história da América Latina das últimas décadas é uma ótima ilustração disso.

IHU On-Line – O filósofo como cabeça e o proletariado como coração da revolução. Até que ponto essa ideia de Marx inspira a esquerda do nosso tempo?
Michael Löwy – Essa ideia, de corte tipicamente neo-hegeliano, foi defendida por Marx no começo de 1844. Mas pouco depois, impactado pelo levante dos tecedores da Silésia (norte da Alemanha), de junho de 1844, ele descobre que o proletariado alemão é “filosófico”, não precisa esperar pelos neo-hegelianos para se sublevar. Ainda hoje, encontramos na esquerda essa visão idealista, neo-hegeliana, que faz do filósofo, ou da vanguarda, ou do partido, a “cabeça” da revolução. A revolução é um belo monstro com mil cabeças.

IHU On-Line – Qual é o significado dos movimentos dos indignados e da primavera árabe? Seriam sopros de uma nova política?
Michael Löwy – A Primavera Árabe foi um magnífico levante da juventude árabe contra ditaduras sanguinárias e anacrônicas. Infelizmente, a vitória dos revolucionários foi confiscada – provisoriamente, esperamos – por forças islamistas conservadoras.
No caso do Movimento dos Indignados, trata-se de outro contexto: a crise do capitalismo na Europa e Estados Unidos, com consequências dramáticas para a população: desemprego, arrocho salarial, redução das pensões, perda de domicílios, etc. Tendo à sua cabeça a juventude, este movimento traz reivindicações antineoliberais, democráticas, igualitárias, muitas vezes anticapitalistas. Seu denominador comum é a indignação, um sentimento essencial, ponto de partida necessário de toda luta e toda transformação social. Sem indignação não se faz nada de grande e de radical.

IHU On-Line – Quais são os principais limites do pensamento marxista? O que explica que o marxismo seja visto por muitos setores da academia como retrógrado?
Michael Löwy – O marxismo é um pensamento em movimento, que trata de superar os limites que estão presentes na própria obra de Marx e Engels: por exemplo, um tratamento muito insuficiente da questão ecológica. Alguns setores da academia confundem o marxismo com sua caricatura retrógrada, a ideologia do assim chamado “socialismo real”. Outros, identificados com a ideologia dominante, pretendem que o desenvolvimento capitalista represente o “progresso”, sendo o marxismo “arcaico”, por se opor à expansão do mercado e à acumulação do capital.
Penso que tinha razão Jean Paul-Sartre ao dizer que o marxismo é o horizonte intelectual de nossa época; as tentativas de “superá-lo” – pós-modernidade, pós-marxismo, etc. – acabam sendo regressões políticas e culturais. Como já diziam Rosa Luxemburgo, Lukács e Gramsci, quando a humanidade suprimir o capitalismo, o marxismo poderá ser substituído por novas formas de pensamento...



“O modelo da boa sociedade não é a meritocracia”

'Para que a avaliação seja justa, todos realizarão a mesma prova: subir na árvore!'

No livro “A sociedade dos iguais”, Pierre Rosanvallon traça a história das políticas em favor da igualdade que marcaram o século XIX e o século XX. Em entrevista à Carta Maior, Rosanvallon analisa a crise contemporânea marcada por uma perigosa dualidade: o avanço da democracia política, dos direitos, e a paulatina desaparição do laço social que cria e alimenta as sociedades democráticas. E critica as teorias da justiça promovidas por autores como John Rawls e suas ideias de igualdade de possibilidades e de meritocracia. 

A reportagem é de Eduardo Febbro, de Paris


Paris - De todas as reflexões e livros que apareceram nos últimos anos sobre a democracia e a crise, o ensaio do professor Pierre Rosanvallon é o mais vasto e profundo. Com seu livro “A sociedade dos iguais” (Edições Manantial), Rosanvallon traça a história fascinante das políticas em favor da igualdade que marcaram o século XIX e o século XX, ao mesmo em que moderniza o termo com reflexões substanciais.

Pierre Rosanvallon ocupa desde 2001 a cátedra de História de Política Moderna e Contemporânea no Collége de France e é também diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Próximo do Partido Socialista francês, Rosanvallon tem como horizonte intelectual a reflexão sobre a democracia, sua história, o papel do Estado e da justiça social nas sociedades contemporâneas.

Seus livros traçam um corpo de reflexões que vão muito mais além do já trilhado diagnóstico do mal. “A contrademocracia, a política na era da desconfiança”, “Por uma história conceitual do político”, “A legitimidade democrática” ou “O capitalismo utópico, história da ideia de mercado” aportam um caudal impressionante de reflexões sobre um sistema político do qual, apesar de tudo, desconhecemos seus impulsos. “A sociedade dos iguais” responde perfeitamente à crise contemporânea marcada por uma perigosa dualidade: o avanço da democracia política, dos direitos, e a paulatina desaparição do laço social que cria e alimenta as sociedades democráticas.

Com grande rigor, Rosanvallon esmiúça as teorias da justiça promovidas por autores como John Rawls e seu conseguinte ideal: a igualdade de possibilidades e sua aliada principal, a meritocracia. Rosanvallon destaca como entre a revolução conservadora encarnada pela ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher e pelo ex-presidente norte-americano Ronald Reagan e a posterior queda do comunismo surgiu um novo capitalismo que mudou a fase da história. 
Mas esse novo capitalismo destroçou a capacidade de os seres humanos viverem e construírem juntos como iguais e não apenas como consumidores ou forças majoritárias. Rosanvallon moderniza então o termo da igualdade entendida não já como uma questão de distribuição das riquezas mas sim como uma filosofia da relação social.

Em entrevista à Carta Maior, realizada em Paris, Pierre Rosanvallon aborda os conteúdos essenciais de seu livro.

Praticamente para qualquer lugar que se olhe, a democracia vive um processo de degradação potente. No caso concreto do Ocidente, a impressão é de que os valores democráticos mudaram de planeta.

Isso se deve a que, há 30 anos, nos países da Europa, nos Estados Unidos e em praticamente todo o mundo, houve um crescimento extraordinário das desigualdades. Podemos inclusive falar de uma mundialização das desigualdades. Trata-se de um fenômeno espetacular. Há cerca de 20 anos, as diferenças entre os países diminuíram. As rendas medidas na China, Brasil ou Argentina se aproximaram das da Europa. No entanto, em cada um desses países, as desigualdades aumentaram. Ao mesmo tempo em que a China se desenvolvia, as desigualdades se multiplicaram de forma vertiginosa. Esse problema concerne ao conjunto dos países. A Europa é o caso mais emblemático porque o aumento da desigualdade surge logo depois de um século de redução das desigualdades. Entre a Primeira Guerra Mundial e a primeira crise do petróleo, nos anos 70, na Europa e nos EUA houve uma redução espetacular das desigualdades. Podemos dizer que, para a Europa, o século 20 foi o século da redução da desigualdade. Agora estamos no século da multiplicação das desigualdades.

Neste sentido, você sustenta que ao mesmo tempo em que a democracia se afirma como regime ela morre como forma de sociedade sob o peso da desigualdade. O laço entre os cidadãos desaparece.

Como regime, a democracia tende a progredir em todo o mundo. Mas sabemos que ela se define também como uma forma de sociedade, uma sociedade na qual podemos viver juntos, uma sociedade da vida comum, uma sociedade com relações de igualdade. A democracia política do sufrágio universal e da liberdade progrediu ao mesmo tempo em que a democracia da sociedade dos iguais perdia vigência. Hoje vemos um divórcio completo entre o cidadão eleitor e o cidadão companheiro de trabalho. Na maioria dos países estão se multiplicando os guetos, as formas de secessão e de separatismo social.

A história da democracia nos mostra que ela tinha como objetivo a construção de um mundo comum entre os habitantes de um país. Hoje vemos a multiplicação dos mecanismos de encerramento em si mesmo, de isolamento. Isso é muito perigoso porque se a distância entre a democracia política e a democracia social segue aumentando é a própria democracia política que corre um grande perigo.

Você chama esse processo de “desgarramento democrático”. Em suma, o desgarramento da democracia é a desaparição do laço entre os componentes da sociedade.

O grande problema da sociedade moderna radica no fato de que é uma sociedade de indivíduos. Mas esses indivíduos devem formar uma sociedade todos juntos. os indivíduos querem ter êxito em sua vida individual, querem ser reconhecidos pelo que são, pelo que tem de específico. Mas isso implica saber compor com essas singularidades e oferecer um marco comum. E é precisamente esse marco comum que está faltando. Por conseguinte, essa demanda de singularidade só se expressa mediante um individualismo galopante. Esse problema do indivíduo está no coração da modernidade. Desde a revolução norteamericana e a revolução francesa, no final do século XIX, já estamos em uma sociedade de indivíduos.

O desenvolvimento do capitalismo criou o fenômeno da classe operária, do partido de classe. Era então uma sociedade de indivíduos que recompôs as formas de solidez coletiva. Hoje essas formas já não existem. Por quê?

Porque o que aproxima as pessoas não é o mero fato de compartilharem uma condição, mas sim, também, pelo fato de que compartilham trajetórias, situações. Hoje se requer outra forma para pensar o laço social.

Você redefine a noção de igualdade. Em sua análise, é preciso abordar a igualdade não como uma redistribuição das riquezas, mas sim como uma relação social em si.

Precisamos que na sociedade haja redistribuição e também solidariedade, mas para que haja solidariedade é preciso que antes se tenha o sentimento de que pertencemos a um mundo comum. Isso é o que ocorreu na Europa: se o Estado providência se tornou tão importante é porque houve a experiência das duas guerras mundiais, é porque houve o medo das revoluções. Se o Estado providência foi tão importante foi porque houve o sentimento de uma desgraça vivida em comum, de uma vida em comum que resultou decisiva.

Hoje o que falta a nossas sociedades é precisamente a possibilidade de refazer o laço social. A igualdade é uma forma de fazer isso. Um filósofo britânico, John Stuart Mill, tomava o exemplo da relação entre homens e mulheres. Mill dizia: a igualdade entre o homem e a mulher não consistem em que sejam os mesmo, em que se pareçam, mas sim em que vivam como iguais. O problema de nossas sociedades é esse: não vivemos como iguais.

E não vivemos como iguais porque há pessoas que vivem em seus bairros fechados, em suas mansões rodeadas de muros e alarmes enquanto outros vivem na pobreza. Não vivemos como iguais porque há cada vez menos espaços públicos, porque se multiplicam os subúrbios onde pessoas que têm as mesmas opiniões, a mesma religião, o mesmo nível de vida vivem entre si (e, neste sentido, os Estados Unidos são um exemplo extraordinário desse modo de vida).

Temos então sociedades fechadas em si mesmas e não sociedades onde haja um mundo comum. A igualdade é, antes de tudo, isso: consiste em fazer um mundo comum. Mas esse mundo comum não pode ser construído se as diferenças econômicas entre os indivíduos são muito importantes, não se pode fazer um mundo comum se não há respeito pelas diferenças, se todo mundo não joga as mesmas regras do jogo. Por isso tentei construir essa ideia da igualdade redefinida como uma relação social em torno de três princípios: singularidade (reconhecimento das diferenças), reciprocidade (que cada um jogue as mesmas regras do jogo) e comunalidade (a construção de espaços comuns).

Na história do mundo, se as cidades foram centros de liberdade foi porque criaram algo em comum entre os indivíduos. As cidades não foram somente lugares de produção econômica ou lugares de circulação. Não, elas estavam organizadas em torno do fórum, da praça pública, de espaços que permitiam a discussão entre as pessoas. É isso que está desaparecendo hoje.

Um dos capítulos mais profundos de seu livro é o que desenvolve uma crítica contra as teorias da justiça promovidas por autores como John Rawls. Essa teoria da justiça, que dá legitimidade à ideologia da igualdade de possibilidades, é para você uma pirâmide invertida: promove a igualdade, mas acrescenta a desigualdade.

A igualdade ocupou o centro de minha reflexão intelectual para pôr fim a uma visão de progresso social percebida unicamente a partir do tema da igualdade de possibilidades. Está claro que a igualdade de possibilidades não existe mais. A ideologia do mérito, da virtude, da igualdade de possibilidades, não pode servir para reconstruir sociedades. Por isso critiquei as chamadas teorias da justiça, Essas teorias, inclusive entre aqueles que apresentam sua versão mais progressista, como o prêmio Nobel de Economia Amartya Sem ou John Rawls, seguem inscritas em uma filosofia das desigualdades aceitáveis enquanto essas desigualdades estejam articuladas em torno do mérito, da ação do indivíduo.

Esse não é o modelo da boa sociedade. O modelo da boa sociedade não é a meritocracia. O bom modelo é o da sociedade dos iguais entendida no sentido de uma sociedade de relação entre os indivíduos, uma relação fundada sobre a igualdade. Temos a impressão de que a noção de igualdade de possibilidades, sobretudo se a definimos de forma radical, pode ser uma visão de esquerda. Todo o combate político se joga entre a definição mínima e a definição radical da ideia de igualdade de possibilidades. Eu digo que é preciso desconfiar dessa ideia de igualdade de possibilidades porque se vamos até suas últimas consequências terminamos por justificar as desigualdades e também justificar a falta de reação contra as desigualdades na medida em que estas foram legitimadas.

O grande sociólogo britânico Michael Young foi o primeiro a falar nos anos 60 da meritocracia, que é um velho ideal dos séculos XVIII e XIX. Young definia como um pesadelo todo país que fosse governador pela meritocracia. E é um pesadelo porque, neste caso, ninguém teria direito a protestar contra as diferenças. Se todas as diferenças estão fundadas sobre o mérito, aquele tem uma condição inferior a tem por culpa própria. Trata-se então de uma sociedade onde a crítica social não teria mais lugar.

É preciso ter consciência do limite do ideal meritocrático, do limite das teorias da justiça, do limite das políticas sobre a igualdade das possibilidades. Mesmo que essas políticas tenham seu espaço de validade, elas não representam a bússola que deve orientar uma sociedade para sua transformação.

Os socialistas utópicos dos séculos XVIII, XIX e XX também faziam da igualdade sua aspiração maior. No entanto, você moderniza a ideia de igualdade quando assinala que não se trata de que todo mundo seja igual, mas sim de viver como iguais partindo de nossa própria singularidade.

Se observamos as utopias escritas nos séculos XVIII e XIX, toda a visão da igualdade está fundada sobre a ideia de uma homogeneidade, ou seja, todo o mundo tem que se parecer. Para esses utópicos, a ideia comunista, no sentido comunitário que plasma a igualdade, era uma ideia fundada sobre o fato de que todo o mundo se parecia, de que todos trabalhavam em um mesmo marco. Foi o que se chamou, em uma determinada época, de uma espécie de igualdade de posição ou igualdade da uniformidade. Essa visão correspondeu a uma idade da humanidade, mas hoje quem gostaria de uma igualdade desse tipo, de uma igualdade que negasse a diferença entre os indivíduos? Esses utópicos não queriam as diferenças entre os indivíduos. Queriam que todo mundo vivesse no mesmo ritmo, que todos fossem, de alguma maneira, o duplo dos demais.

Mas não é assim. Creio que a emancipação humana passa hoje pela condição de que cada pessoa seja reconhecida pelo que tem de específico. Por conseguinte, a igualdade não pode ser mais a uniformidade, nem a uniformidade de posição, mas sim uma igualdade da singularidade. É preciso voltar aos fundamentos do que foi a revolução democrática moderna e reviver em um sentido autêntico a noção de igualdade, que não é a noção de igualitarismo. O igualitarismo é a visão aritmética da igualdade. Mas o que eu tento definir é uma relação da sociedade, uma ideia da igualdade como relação.

Para você, a ruptura com a filosofia política da igualdade é uma crise moral e antropológica, algo que vai muito mais além dos aspectos econômicos ou sociais. Você chama essa situação de “desnacionalização” da democracia.

Há duas definições de nação: por um lado, pode–se conceber a nação como um bloco definido por uma identidade, pela homogeneidade. É a definição nacionalista de nação, para a qual só é bom o mundo homogêneo e a solidariedade só existe se se forma um bloco homogêneo. Para mim, essa é uma definição arcaica da democracia. A definição democrática de nação consiste em compreendê-la como um espaço de redistribuição aceito, um espaço no qual as diferenças se compõem, um espaço de aprendizagem do universalismo. Quando os Estados nacionais nasceram foi porque houve uma impossibilidade de realizar o universalismo em sua acepção máxima. Tratou-se então de fazê-lo a partir do pequeno. A grande ideia democrática da nação consiste em ser um espaço de experimentação do universalismo a partir do pequeno. E quem diz experimentação do universalismo está falando de experimentação da solidariedade, da redistribuição, da organização das diferenças para viver em comum.

A modernidade parece encerrada em outro paradoxo: por exemplo, o mercado é bom e mau, aceito e criticado, desejado e temido. Isso conduz à inação.

Se a ideia de mercado se impôs foi porque se aliou com a ideia das preferências individuais. E os indivíduos têm relações ambíguas com o mercado. Se o mercado é definido como a ditadura do dinheiro contra a vida pessoal e social, a crítica do mercado, das bolhas especulativas, é aceita por todos. No entanto, se o mercado se apresenta como o campo dos consumidores, como o que vai permitir que se pague menos por determinados produtos, neste caso a atitude frente aos mercados será menos negativa. Se o mercado aparece como o portador de valores como a individualidade será aceito mais facilmente.

Daí provém a grande contradição do mundo moderno. Podemos dizer que o mercado é aceito e rechaçado secretamente. Há duas dimensões: é aceito porque veicula valores ligados ao indivíduo e à valorização do consumidor, mas, ao mesmo tempo, é rechaçado como sistema global de dominação que instala uma potência da abstração sobre a vida concreta dos indivíduos. Ninguém põe em questão o fato de que devemos viver em economias der mercado porque essa é uma forma de adequar a riqueza, de organizar as trocas: não há como objetar isso. Mas, de certo modo, o mercado se torna uma tirania quando deixa de ser um instrumento e se torna um senhor dominador.

Estar alienado ou dominado significa ter as ideias do inimigo na cabeça. Eu diria que se o poder das oligarquias é tão forte, isso se deve a que uma parte de suas ideias está na cabeça das pessoas. O terreno da batalha das ideias é absolutamente essencial. As oligarquias jamais teriam o poder que têm no mundo contemporâneo se a ideia do mercado não tivesse penetrado a sociedade por meio de alguns de seus aspectos positivos. A ideia penetrou a sociedade com postulados como a defesa do consumidor ou o sentido do indivíduo e, de alguma maneira, o mercado ganhou também uma forma de adesão das pessoas por seus aspectos maus: fez crer que seu lado mau era inseparável do lado que parece positivo para a população.

O capitalismo teve várias etapas. Você traça uma fronteira entre o modo do sistema funcionar até os anos 70, que você chama de capitalismo de organização, e a mudança que se produz com o capitalismo de inovação. Quais são as particularidades de ambos?

O capitalismo de organização é o que triunfou desde a Segunda Guerra Mundial e perdurou durante 30 anos. A força desse capitalismo de organização reside em sua capacidade de dominação do mercado por parte das empresas e em sua capacidade para organizar as empresas. A partir dos anos 70, vamos passar do capitalismo de organização para o capitalismo de inovação. No primeiro, o valor agregado não era o indivíduo, nem sequer o diretor geral. Mas, no capitalismo de inovação, o que vai contar é o trabalho dos indivíduos. Não se pode imaginar a Microsoft sem seu chefe ou a Apple sem Steve Jobs, ou a Oracle sem Alison.

Neste novo capitalismo há então uma nova relação entre a contribuição dos indivíduos e o êxito das empresas. Isso acarreta um paradoxo: há uma tendência a considerar legítimas as desigualdades de renda se se aceita que elas estão ligadas à capacidade diferencial de inovação e à contribuição que isso representa para as empresas.

No capitalismo de inovação, o trabalhador não é só um degrau, como ocorria com os trabalhadores das fábricas. Não. Esse trabalhador deve mobilizar-se pessoalmente e permanentemente para avaliar os problemas ou solucionar as dificuldades. Entramos em uma economia que fez da criatividade e da mobilização sua principal força produtiva. E se isso é assim então se produz um excesso que consiste em classificar os indivíduos segundo sua criatividade e sua suposta mobilização. E digo suposta porque é muito difícil explicar por que um diretor ganha 500 vezes mais que um trabalhador. O diretor não contribui 500 vezes mais. Em uma equipe de futebol é fácil identificar quem faz os gols. Em uma empresa, mesmo se entramos em uma economia de inovação, o fenômeno segue sendo coletivo.

Sua obra e sua vida foram dedicadas à democracia. Você não tem a impressão de que já ultrapassamos o estado de perigo e que estamos chegando a uma fase de eliminação da democracia?

Creio que ainda não chegamos ao estado da eliminação democrática porque a sociedade espera algo. Vemos muito bem como as sociedades que conheceram uma multiplicação considerável das desigualdades são sociedades instáveis, que se tornam mais perigosas. A desigualdade tem um custo para todo mundo. Isso é muito importante: uma sociedade desigual não tem somente um custo para os pobres. Estes, é claro, são os primeiros concernidos, mas o custo não recai unicamente nos excluídos, mas no conjunto da sociedade. É a segurança de todos que é afetada, é a possibilidade de uma convivência que está em questão.

Para você, a democracia ainda é um regime insuperável.

A democracia é o regime natural do moderno. Vivemos em sociedades que não podem mais ser reguladas pela tradição. Não se pode dizer que estamos regulados mediante o poder dos nossos ancestrais. Estamos em sociedades que não podem ser reguladas também recorrendo a uma lei divina. Por conseguinte, estamos em sociedades onde devemos organizar o mundo comum a partir da discussão pública. E se isso é tão decisivo é porque se trata de uma experiência que sempre é difícil. Aqueles que olham a história da democracia como a história de um progresso que vai da tirania à democracia realizada se equivocam. A história da democracia é uma história de êxitos e traições.

No século XX, a Europa foi, por um lado, o continente da invenção da democracia e, por outro, o continente que viu as piores patologias da democracia. Os totalitarismos foram, em primeiro lugar, uma história europeia. O que me fascina na história da democracia é que ela é a história de uma experiência frágil e não uma espécie de progresso acumulativo. É a história de uma experiência, de uma indeterminação, de um combate que nunca acaba, de uma luta contra seus fantasmas que não termina de tornar mais clara a deliberação entre os cidadãos para que encontrem o caminho de uma vida comum. No fundo, a democracia é isso: organizar a vida comum sobre a deliberação de regras que se fixam e não sobre algo que teria nos sido dado como uma herança.

Esse é, para você, o ponto essencial.

Sim, é o ponto essencial: a democracia é uma experiência sempre frágil. Não podemos nos tornar democratas crédulos: temos que ser democratas atentos, vigilantes. Não há democracia sem vigilância de suas debilidades e dos riscos de manipulação. O cidadão não é simplesmente um eleitor. Ele deve exercer esta função de vigilância individual e coletiva.

Tradução: Katarina Peixoto
by Carta Maior



A estranha lógica da compra da Webjet pela Gol - 2

 

Anteriormente mostrei os argumentos do CADE (Conselho Administrativo de Direito Econômico) justificando a autorização para a compra da Webjet pela Gol. (leia aqui).
Segundo o parecer do relator, havia 100 linhas superpostas entre as duas companhias, a maior parte delas podendo ser atendidas pelos demais competidores - TAM, Azul, Trip e Avianca.
A única exigência do órgão foi para que a Gol passasse a ter um índice de utilização não inferior a 82% especificamente nos vôos de Santos Dumont - o único aeroporto congestionado.

***
É hora do CADE rever seus conceitos de competição.
Tinham-se duas companhias com competição já definida em 100 rotas. Ao adquirir a Webjet (para depois fechá-la) a Gol conquistou o direito aos slots da companhia. Slots são autorizações para decolar/aterrisar nos aeroportos.
Um modelo aeronáutico eficiente seria aquele que estendesse a malha para um número cada vez maior de localidades. A flexibilização da legislação, na década de 90, e o posterior engessamento, na década de 2000, fez com que a competição só ocorresse.
Ocorre que a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) permite a flexibilização das rotas. A companhia preserva o slot, mas pode alocar a rota para onde bem entender.
O que a decisão do CADE permitiu foi que a Gol alijasse do mercado uma concorrente em pelo menos 100 vôos e, a partir de agora, aumente os preços das passagens. Diz o relator que, dada a facilidade de outras empresas em conseguir novas linhas, qualquer abuso da Gol nessas rotas será combatido pela concorrência.
É falso. A abertura de uma nova linha implica em custos, remanejamento de equipamentos e equipes, montagem de estratégias comerciais etc. E quem quiser entrar saberá que bastará a Gol voltar a reduzir os preços para inviabilizar a entrada de novos concorrentes.

***
A prova do pudim, para o CADE, consiste em analisar, daqui a alguns meses, o que ocorreu com os vôos e com os preços de passagens para essas 100 rotas onde havia superposição da Gol e da Webjet. Mas e aí se a Gol eliminou vôos ou aumentou o preço das passagens? O único compromisso que firmou foi o de manter em 82% a ocupação dos vôos do Santos Dumont - independentemente do destino a ser atingido.

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Tem mais. O slot é um ativo público, que a Anac distribui entre as companhias dentro da lógica de entregar a quem utiliza. Não utilizando, o slot é retomado.
Acontece que, na maioria dos aeroportos, os portãos de embarque têm donos. Companhias menores têm enormes dificuldades em competir com as maiores porque, mesmo tendo melhor serviços no interior do avião, sofrem a competição desigual dos passageiros serem deslocados para ônibus ou, como no caso de Guarulhos, para salões de embarque secundários.

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Tem que se rever esse modelo aeronáutico brasileiro, abrindo espaço para uma competição virtuosa. Hoje em dia, nem Anac, nem CADE, nem Infraero parecem pensar nisso. A crise atual das companhias aéreas cria limites a uma competição mais acirrada.
Mas há que se pensar no longo prazo, em um modelo que faça o transporte aéreo estar à altura de um país de dimensões continentais e com um público consumidor crescente.

Luis Nassif
No Advivo


Comentário do Senhor C.:

- Neste capitalismo às avessas - em que a prática de gestão estatal se coaduna com os interesses mais restritos e restritivos - soa lógica posição como a da colonista Danuza Leão, que num artigo recente reclamou da perda de exclusividade como um despropósito ou sintoma da degradação de ser rico, pois afinal se rico pode ir a Nova Iorque, que graça isso tem agora que o porteiro do seu prédio também pode.
É isto. Cabeças como a de Danuza parecem estar incrustradas nos vários níveis e dimensões da gestão das coisas e do cotidiano. No caso, cabeças centradas na garantia de que capitalismo bom é aquele que reserva certas coisas para poucos. Luís Nassif decerto concordaria que são o que ele já denominara de 'cabeças de planilha'.



A estranha lógica da compra da Webjet pela Gol

 

Há algo que não bate na compra da Webjet pela Gol. Ou o CADE (Conselho Administrativo de Direito Econômico) está muito errado ou a Gol deu um tiro no pé.
O setor aéreo atravessa uma fase complicada. Há um duopólio – TAM e Gol – e três entrantes disputando mercado – Avianca, Azul e Trip – praticamente nas mesmas rotas.
Nos últimos anos, houve uma corrida insana de Gol e TAM pela conquista do mercado. Saíram na frente ampliando a oferta antes do aumento da demanda.
A estratégia funcionou enquanto o mercado cresceu. Com o base de 2008 e, agora, com a queda em 2011 – somada ao aumento dos combustíveis (reflexo da alta do dólar) – as duas empresas passaram a acumular prejuízos gigantescos. Seu nível de ociosidade bateu nos 30%, algo incompatível com o modelo de aviação de baixo custo adotado pela Gol e, agora, seguido pela TAM.

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Nesse contexto, a Webjet entra em crise, há um leilão e é arrematada pela Gol. Em seguida, a Gol fecha a empresa e absorve suas rotas. A ideia inicial é que a operação se constituiu em uma prática anti-concorrencial, de redução da oferta, que acabou aceita pelo CADE.
No entanto, as explicações do CADE sobre o acordo fechado com a Gol induzem a pensar que a companhia aumentou a oferta sem garantia de aumento da demanda.

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De acordo com as explicações de Ricardo Machado Muniz, conselheiro do CADE que deu o parecer pró-aquisição, foram analisados os seguintes aspectos concorrenciais:
1. Havia 100 rotas superpostas da Gol e da Webjet, todas elas expostas à competição com as quatro companhias de alcance nacional – TAM, Azul, Trip e Avianca.
2. Constatou-se que os concorrentes dispõem de capacidade técnica, organizacional e escala para ocupar qualquer espaço aberto pela Gol.
3. Consultada, a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) respondeu que, em média, a autorização para novas rotas leva 30 dias; no máximo, 60 dias.
4. Pontos mais delicada: a infraestrutura portuária. A Anac informou que em 19 aeroportos existiam slots (espaço e hora para aterrisagem) disponíveis no montante idêntico àquele controlado pela Webjet pelo prazo de uma hora (tempo máximo para embarque e desembarque de passageiros).
Em dois, não havia essa possibilidade: Congonhas e Santos Dumont, com restrições graves de oferta, com mais de 95% de ocupação – contra 60% dos demais.

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No caso de Congonhas, a Webjet controlava slots apenas no sábado e domingo, dias de boa ociosidade. Assim, o problema maior era no Santos Dumont.
Pelo acordo firmado com o CADE, a Gol se comprometerá a operar em Santos Dumont com 82% da sua oferta de assentos. Caso contrário, terá que devolver os slots da Webjet para a Anac.
Para operar sem prejuízo, ou aumenta a demanda ou terá que colocar avião no ar praticamente sem passageiros.

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Ocorre que, ao acabar com a Webjet, a Gol deixou os clientes livres para escolher entre as cinco companhias remanescentes.
Portanto, a não ser que esteja apostando em uma recuperação rápida do mercado, a Gol pode ter dado um tiro no pé, algo surpreendente depois das trombadas dos últimos anos.
Faltam mais elementos para entender a lógica dessa operação.

Luis Nassif
No Advivo


quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Posse de Joaquim nasceu da coragem de Lula

E então... alguém ainda duvida do que está em jogo neste país?
Queremos ser uma sociedade justa ou uma sociedade hipócrita como a descrita acima?

por Marcelo Semer*

Quando o ex-presidente Lula sinalizou que pretendia indicar um negro para compor o Supremo Tribunal Federal em 2003, a grande imprensa chiou e a comunidade jurídica torceu o nariz.

Supremo não é lugar para cotas, não se pode mensurar capacidade de ministro pela cor da pele. Essas e tantas outras objeções foram ouvidas a granel à época.

Nove anos depois, Joaquim Barbosa é saudado com pompa e circunstância como o primeiro negro a presidir o STF –mas uma coisa não existiu sem a outra.

Deu-se o mesmo, é verdade, com o ex-presidente Fernando Henrique ao nomear, também com enorme e inexplicável atraso, a primeira mulher para nossa Suprema Corte.

Como Barbosa, Ellen Gracie também tinha competências de sobra para ocupar o lugar que ocupou –mas eles teriam chegado lá com a inércia e a força da tradição que vinham marcando o poder há décadas?

Que proporção de mulheres em cargos de liderança ou de negros na Justiça temos, até os dias de hoje, para poder considerar isso “normal”?

Em muitas situações, o preconceito é sutil demais para nos darmos conta. Rompê-lo exige mais esforço do que parece à primeira vista, mais coragem do que os engenheiros de obra feita tinham para confrontá-lo.

Na democracia, não pode haver uma luta mais importante do que a da igualdade –não há sentido em um poder que se orgulha de emanar do povo, se parte considerável do povo permanece alijado e estranho a ele.

O caminho da igualdade, no entanto, está longe de ser suave. Cada passo provoca uma intensa reação.

A classe média, que está acostumada a ir de carro para o trabalho e de avião para as férias, já constatou a aspereza da ascensão social. Há muito mais trânsito nas ruas e aeroportos lotam como rodoviárias.

O Brasil, enfim, se dá conta que ainda não é um país preparado para todos.

A “high society” que se alimenta, sobretudo, da exclusividade, não suporta o mais remoto traço de semelhança. Como lembrou Danuza Leão, em recente artigo, “Qual a graça de viajar para os Estados Unidos se por cinquenta reais mensais o porteiro do prédio também pode ir?”

Quanto mais os privilégios vão sendo rompidos, mais a indignação de quem se acostumou com o legado da zona de conforto se aprofunda.

Disputar o ingresso na faculdade com os filhos da empregada jamais passou pela cabeça de uma geração tão bem nascida.

Pode-se criticar a baixa rotação da redução de desigualdades e apontar um certo ufanismo no discurso que supõe reeditar o “milagre brasileiro”. Mas que isso não sirva apenas de pretexto para estancar um processo que se espera irreversível.

A economia ganha com o mercado consumidor forte, a indústria lucra com a capacitação da mão-de-obra e ainda abrimos um leque de instrumentos mais eficazes que a prisão para lidar com a criminalidade.

Reduzir desigualdades é o que o país pode fazer de melhor para si mesmo.

Mas é preciso tomar iniciativas -a mão do mercado já mostrou que não faz isso por conta própria.


*Juiz de direito em SP e escritor. Ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia. Autor do romance Certas Canções (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.


terça-feira, 27 de novembro de 2012

Carta aberta de um jornalista ao STF

Um carta aberta a cidadania

J. Carlos de Assis (*)

Passei as duas décadas da ditadura sem ter sido vítima de tortura física, sem enfrentar mais que dois interrogatórios militares, sem ter sido condenado. Conheci, porém, pessoalmente, a justiça da ditadura. Em 1983, incriminado nos termos da Lei de Segurança Nacional por ter denunciado na “Folha de S. Paulo” as entranhas do escândalo da Capemi, enfrentei um processo pela antiga Lei de Segurança Nacional no qual a denúncia se baseava em dedução. Foi com base em deduções que Vossas Excelências, em plena democracia, condenaram figuras proeminentes do PT, pela culpa de serem proeminentes. Quanto a mim, tive melhor sorte: fui absolvido por um juiz militar que já não acreditava mais na ditadura, Helmo Sussekind.

Não traço paralelo entre o crime a mim imputado e aquele por que foram condenados Dirceu e outros senão pela absoluta falta de prova, num caso, e a declarada desnecessidade dela, noutro. Meu crime teria sido, na letra do Art. 14 da LSN de 68, “divulgar, por qualquer meio de comunicação social, notícia falsa, tendenciosa ou fato verdadeiro truncado ou deturpado, de modo a indispor ou tentar indispor o povo com as autoridades constituídas”. Pena, de seis meses a dois anos de reclusão. Nota-se que não se falava de provas. Poderia ter sido condenado, pois tudo ficava ao arbítrio do juiz: sob pressão do sistema sua tendência era condenar.

Sussekind, contra a letra e o espírito da lei, para me absolver me permitiu a exceção da verdade. Vossas Excelências, inventando lei, fizeram a exceção da mentira para condenar.

Não disseram mais de um de seus pares que não era possível acreditar que Dirceu não soubesse dos fatos, fatos esses que só existiram na imaginação fértil de dois procuradores e de um ministro relator com ganas de promotor, decididos todos a inventá-los para compor um “caso”? É assim que julga um ministro deste Tribunal, pensando o que os réus teriam sido obrigados a pensar seguindo o figurino da acusação? Dêem-me uma evidência, uma apenas, de relação entre pagamentos de despesas de campanha e votações no Congresso: suas estatísticas estão simplesmente furadas; elas não comportam uma análise científica de correlação, mesmo porque o critério que o procurador usou para estabelecê-la estava viciado pelo resultado que ele queria encontrar.

Não sou jurista. Mas na ciência política que tenho estudado junto a pensadores eminentes como Max Weber e Norberto Bobbio as doutrinas jurídicas têm uma posição singular. Weber, sobretudo, fala em justiça no cádi em casos de grande comoção social. Entretanto, nosso país está em calma. O pouco que aprendi de direito de cidadania me leva a concluir que Vossas Excelências cometeram uma monstruosidade jurídica ao fundar seu veredito contra Dirceu, de forma arbitrária, no princípio alemão do domínio funcional do fato.

Não me estenderei sobre isso para não repetir o que já disse alhures, embora me alegra o fato de que outros jornalistas e principalmente juristas, consultando um dos formuladores originais do princípio, passaram a expor com evidência cristalina sua inaplicabilidade ao caso Dirceu. Sim, Excelências, para condenar é preciso ter provas. Vossas Excelências condenaram sem provas.

Fiquei estupefato ao ouvir o discurso patético de seu novo Presidente com o elogio da independência política do Judiciário. É que suas excelências se comportaram como servos de uma parte da opinião pública manipulada pela mídia de escândalos. Creio que, absorvidos em sua função, Vossas Excelências não têm se apercebido do que está acontecendo com a mídia brasileira. Acossada pela internet, ela já não encontra meios de atrair leitores e anunciantes senão pela denúncia de escândalos reais ou forjados. Haja vista o imenso caudal de ações contra denúncias infundadas que se amontoa no próprio Judiciário. Com o propósito de explorar mais um grande escândalo, desta vez dentro do Governo e do PT, criaram o chamado “mensalão” e o venderam à opinião pública como fato consumado.

Nunca houve evidência de pagamentos regulares, mensais, a parlamentares, mas tornou-se impossível esclarecer os pagamentos como acertos de campanha. Criou-se, dessa forma, no seio da opinião pública uma sensação de grande escândalo, não de caixa dois de campanha, exacerbada quando o procurador, num assomo de retórica, recorreu à expressão, totalmente falsa, de quadrilha.

Finalmente, agora na condição de especialista em Ciência Política, quero propor a Vossas Excelências que não atropelem a linha que os separa dos demais poderes. Sobretudo, que não interfiram na organização política do Brasil condenando arbitrariamente alianças partidárias. Sem alianças não há governo no Brasil. É possível que Vossas Excelências prefiram o sistema americano, ou algum sistema europeu com dois partidos hegemônicos, mas nós não estamos nem nos Estados Unidos nem na Europa. O Supremo não tem competência para alterar isso. Não há democracia sem política, não há política sem partido, e não há partido sem liberdade de organização. O ódio de Vossas Excelências por alianças partidárias nasce de um vício idealista de quem chega ao poder sem ter que passar pelo voto da cidadania. Caveat. É essencial para a ordem pública confiar na Justiça, mas para que isso aconteça não basta condenar os grandes: é preciso simplesmente condenar os culpados, segundo as provas.

(*) Economista, professor de Economia Internacional e chefe do Departamento de Relações Internacionais da UEPB, autor do recém-lançado “A Razão de Deus”. Esta coluna sai também nos sites Rumos do Brasil e Brasilianas, e, às terças, no jornal carioca “Monitor Mercantil”.