Matheus Pichonelli
Num seminário sobre a ascensão do conservadorismo em São Paulo realizado na USP no final de agosto, a filósofa Marilena Chauí provocou risos na plateia ao contar o estranhamento de uma amiga sobre o comportamento de parte dos habitantes da maior cidade do País. A amiga dizia custar a entender como pessoas tão hospitaleiras e civilizadas na vida doméstica se transformavam em “feras indomáveis” quando entravam em espaços compartilhados, como o trânsito ou as filas do banco.
É fato. Quem já acompanhou os bate-bocas diários protagonizados em disputas fratricidas pelas faixas preferenciais, barbeiragens no trânsito ou um simples carrinho de supermercado sabe do que a filósofa está falando. Nessas pequenas disputas pelos espaços públicos, brigamos, ofendemos, damos cotoveladas, estacionamos em vagas proibidas, ofendemos os garçons, o manobrista, o vendedor, o atendente, o empregado, o motoboy, a vizinha do terceiro andar…e tudo parece natural, pacífico até segunda ordem.
Como se ganhar no grito fosse esporte popular. Não é. Como explicou Chauí no mesmo evento, essa deterioração das relações interpessoais possui raízes históricas. Tem base numa violência historicamente cristalizada que opera com base na discriminação e preconceito de classe, sexo, religião, profissão e raça. Que naturaliza as diferenças. Que não reconhece a humanidade do outro. Que confunde o exercício da consciência, da liberdade e da responsabilidade com um conjunto de regulamento típico das empresas e suas horas marcadas e regras de comportamento. E se assenta sobre as “características mais alarmantes” do neoliberalismo: o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço da vida privada.
O resultado é que sabemos tudo da intimidade da celebridade mas não somos capazes de conviver de forma civilizada nos espaços comum – espaços que, muitas vezes, se restringem à fila de banco ou ao trânsito. Ali o outro é sempre uma ameaça.
Por isso corremos para nos abrigar em escolas, escoltas ou sistema de saúde privados: para nos “proteger” e nos diferenciar.
A violência é, assim, uma reação de quem vê o acesso a esses espaços antes impenetráveis como a invasão de um espaço cativo. Como se a proteção fosse violada e prestígio, ameaçado, pela presença das “gentes diferenciadas”.
Em tempos de eleição, essa violência latente ganha amplificação pelos discursos. O desafio é puxar meia hora de conversa em qualquer grupo de qualquer lugar e passar menos de cinco minutos sem ouvir velhos absurdos. Discursos que, mais do que ignorância política, atestam a manifestação impune dos mais elementares preconceitos sociais.
Daí a mesmice, ouso dizer, dos questionamentos em tempos de campanha (“O senhor é a favor do aborto?”. “Vai permitir casamento entre gays?”. “Acredita em Deus?”) e posições dos candidatos (“sou a favor da ética”, como quem se posiciona a favor do sol, da saúde e da alegria). Tanto a mídia como os candidatos sabem exatamente o terreno perigoso em que estão pisando. Por isso todos resolvem, a cada dois anos, querer saber o que pensam os líderes religiosos sobre tal e qual candidato. O referendo para as urnas passa pela benção dos homens de fé.
É como se, dotado dos padrões de comportamento religiosos exigidos, o candidato fosse incapaz de mexer nas duas obsessões das classes conservadoras, base do eleitorado, e também citadas pela filósofa: a ordem e a segurança.
Esse comportamento foi, em parte, retratado na pesquisa Datafolha divulgada no domingo 23 sobre o perfil do eleitor paulistano. O levantamento mostrou que nada menos do que 79% dos eleitores acham que acreditar em Deus torna as pessoas melhores. Com perguntas como esta (dez no total), o instituto mostrou haver em São Paulo nada menos do que 34% de eleitores identificados como conservadores – enquanto apenas 27% se dizem liberais. O restante se diz neutro.
E o que é ser conservador em São Paulo, além do já citado talento em se estapear pela faixa de trânsito ou pelo carrinho de supermercado (afinal, paga-se para se ter razão)? Pela pesquisa, descobrimos exatamente quem confunde as atribuições do Estado com uma cerca elétrica aos medos mais inexplicáveis. Na metrópole, mostrou o Datafolha, duas em cada dez pessoas acreditam que a homossexualidade deve ser desencorajada pela sociedade. Mais: três em cada dez eleitores acham que pobres migrantes trazem problemas para a cidade; e 60% veem na “maldade das pessoas” a causa principal da violência.
É a divisão clara de quem vê o mundo por uma ótima simplista afora do próprio umbigo. E que, como consequência, cobra soluções fáceis para lidar com problemas que não consegue explicar. É o que leva uma parcela assustadora do eleitorado (41%) a considerar a pena de morte como a “melhor punição para indivíduos que cometeram crimes graves”.
Um paulista típico
O cálculo parece claro. Esse eleitor quer soluções agressivas contra tudo o que o ameace (da prisão de adolescentes infratores à proibição total das drogas) e, ao mesmo tempo, tem dificuldade em participar da vida pública, algo evidente da concepção segundo a qual os sindicatos “servem mais para fazer política do que defender os trabalhadores”, como declaram 60% dos eleitores.
Não estranhe se um dia, numa roda de conversa, identificar neste eleitor a “fera indomável” citada por Chauí. O cidadão-eleitor que em casa fala de paz, prosperidade, valores, esforço, que bota nariz de palhaço ao votar e sai às ruas, uma vez por mês, para cobrar “ética na política”, é capaz de promover uma hecatombe se alguém chegar perto do seu automóvel, o único elo que o diferencia numa multidão sem identidade a reproduzir uma velha violência incrustrada. O reacionarismo que exige do Estado medidas duras contra tudo o que não é ele é a face mais notável da covardia.
Num seminário sobre a ascensão do conservadorismo em São Paulo realizado na USP no final de agosto, a filósofa Marilena Chauí provocou risos na plateia ao contar o estranhamento de uma amiga sobre o comportamento de parte dos habitantes da maior cidade do País. A amiga dizia custar a entender como pessoas tão hospitaleiras e civilizadas na vida doméstica se transformavam em “feras indomáveis” quando entravam em espaços compartilhados, como o trânsito ou as filas do banco.
É fato. Quem já acompanhou os bate-bocas diários protagonizados em disputas fratricidas pelas faixas preferenciais, barbeiragens no trânsito ou um simples carrinho de supermercado sabe do que a filósofa está falando. Nessas pequenas disputas pelos espaços públicos, brigamos, ofendemos, damos cotoveladas, estacionamos em vagas proibidas, ofendemos os garçons, o manobrista, o vendedor, o atendente, o empregado, o motoboy, a vizinha do terceiro andar…e tudo parece natural, pacífico até segunda ordem.
Como se ganhar no grito fosse esporte popular. Não é. Como explicou Chauí no mesmo evento, essa deterioração das relações interpessoais possui raízes históricas. Tem base numa violência historicamente cristalizada que opera com base na discriminação e preconceito de classe, sexo, religião, profissão e raça. Que naturaliza as diferenças. Que não reconhece a humanidade do outro. Que confunde o exercício da consciência, da liberdade e da responsabilidade com um conjunto de regulamento típico das empresas e suas horas marcadas e regras de comportamento. E se assenta sobre as “características mais alarmantes” do neoliberalismo: o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço da vida privada.
O resultado é que sabemos tudo da intimidade da celebridade mas não somos capazes de conviver de forma civilizada nos espaços comum – espaços que, muitas vezes, se restringem à fila de banco ou ao trânsito. Ali o outro é sempre uma ameaça.
Por isso corremos para nos abrigar em escolas, escoltas ou sistema de saúde privados: para nos “proteger” e nos diferenciar.
A violência é, assim, uma reação de quem vê o acesso a esses espaços antes impenetráveis como a invasão de um espaço cativo. Como se a proteção fosse violada e prestígio, ameaçado, pela presença das “gentes diferenciadas”.
Em tempos de eleição, essa violência latente ganha amplificação pelos discursos. O desafio é puxar meia hora de conversa em qualquer grupo de qualquer lugar e passar menos de cinco minutos sem ouvir velhos absurdos. Discursos que, mais do que ignorância política, atestam a manifestação impune dos mais elementares preconceitos sociais.
Daí a mesmice, ouso dizer, dos questionamentos em tempos de campanha (“O senhor é a favor do aborto?”. “Vai permitir casamento entre gays?”. “Acredita em Deus?”) e posições dos candidatos (“sou a favor da ética”, como quem se posiciona a favor do sol, da saúde e da alegria). Tanto a mídia como os candidatos sabem exatamente o terreno perigoso em que estão pisando. Por isso todos resolvem, a cada dois anos, querer saber o que pensam os líderes religiosos sobre tal e qual candidato. O referendo para as urnas passa pela benção dos homens de fé.
É como se, dotado dos padrões de comportamento religiosos exigidos, o candidato fosse incapaz de mexer nas duas obsessões das classes conservadoras, base do eleitorado, e também citadas pela filósofa: a ordem e a segurança.
Esse comportamento foi, em parte, retratado na pesquisa Datafolha divulgada no domingo 23 sobre o perfil do eleitor paulistano. O levantamento mostrou que nada menos do que 79% dos eleitores acham que acreditar em Deus torna as pessoas melhores. Com perguntas como esta (dez no total), o instituto mostrou haver em São Paulo nada menos do que 34% de eleitores identificados como conservadores – enquanto apenas 27% se dizem liberais. O restante se diz neutro.
E o que é ser conservador em São Paulo, além do já citado talento em se estapear pela faixa de trânsito ou pelo carrinho de supermercado (afinal, paga-se para se ter razão)? Pela pesquisa, descobrimos exatamente quem confunde as atribuições do Estado com uma cerca elétrica aos medos mais inexplicáveis. Na metrópole, mostrou o Datafolha, duas em cada dez pessoas acreditam que a homossexualidade deve ser desencorajada pela sociedade. Mais: três em cada dez eleitores acham que pobres migrantes trazem problemas para a cidade; e 60% veem na “maldade das pessoas” a causa principal da violência.
É a divisão clara de quem vê o mundo por uma ótima simplista afora do próprio umbigo. E que, como consequência, cobra soluções fáceis para lidar com problemas que não consegue explicar. É o que leva uma parcela assustadora do eleitorado (41%) a considerar a pena de morte como a “melhor punição para indivíduos que cometeram crimes graves”.
Um paulista típico
O cálculo parece claro. Esse eleitor quer soluções agressivas contra tudo o que o ameace (da prisão de adolescentes infratores à proibição total das drogas) e, ao mesmo tempo, tem dificuldade em participar da vida pública, algo evidente da concepção segundo a qual os sindicatos “servem mais para fazer política do que defender os trabalhadores”, como declaram 60% dos eleitores.
Não estranhe se um dia, numa roda de conversa, identificar neste eleitor a “fera indomável” citada por Chauí. O cidadão-eleitor que em casa fala de paz, prosperidade, valores, esforço, que bota nariz de palhaço ao votar e sai às ruas, uma vez por mês, para cobrar “ética na política”, é capaz de promover uma hecatombe se alguém chegar perto do seu automóvel, o único elo que o diferencia numa multidão sem identidade a reproduzir uma velha violência incrustrada. O reacionarismo que exige do Estado medidas duras contra tudo o que não é ele é a face mais notável da covardia.
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