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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Como o Google nos domina

"Anúncios no gmail mostram quanto o Google sabe sobre você"
Por James Gleick

O negócio do Google não é pesquisa, mas publicidade. Mais de 96 por cento de seus 29 bilhões de dólares em receita no ano passado vieram diretamente de publicidade, e a maior parte do resto veio de serviços relacionados a publicidade. O Google recebe mais com publicidade do que todos os jornais do país [Estados Unidos] juntos. Vale a pena entender como isso funciona. Levy relata o desenvolvimento dessa máquina de publicidade: uma “fantástica conquista na construção de uma máquina de fazer dinheiro através de truques virtuais (8), a partir da Internet.” Em The Googlization of Everything (and Why Should Worry), livro que pode ser lido como uma referência sóbria e admonitória, Siva Vaidhyanathan, um estudioso da mídia na Universidade da Virginia, coloca a questão da seguinte maneira: “Nós não somos clientes do Google: nós somos o seu produto. Nós, nossas fantasias, fetiches, predileções e preferências, somos o que o Google vende para os anunciantes.”

A evolução desta incomparável máquina de fazer dinheiro produziu uma rápida sequência de inovações brilhantes:

1. No início de 2000, o Google vendeu “premium sponsored links”: anúncios de texto simples associados a certos termos de pesquisa. Uma fornecedora de bolas de golfe poderia ter seu anúncio mostrado a todos que buscassem por “golfe” ou, melhor ainda, “bolas de golfe.” Outros mecanismos de busca na internet já faziam isso. Seguindo a tradição, eles cobravam de acordo com o número de pessoas que viam cada anúncio. Os anúncios eram vendidos para grandes clientes, um a um.

2. Mais tarde, naquele ano, engenheiros desenvolveram um sistema de auto-atendimento, chamado AdWords. O ponta-pé inicial foi: “Você tem em 5 minutos e um cartão de crédito? Obtenha seu anúncio no Google hoje”, e de repente milhares de pequenas empresas estavam comprando seus primeiros anúncios na internet.

3. A partir de uma outra iniciativa, que teve curta duração, chamada GoTo (até 2003 Google era sua proprietária) vieram duas novas ideias. Uma delas foi a cobrar por clique, ao invés de visualização. Pessoas que clicam em um anúncio de bolas de golfe são mais propensas a comprá-las do que aqueles que simplesmente vêem um anúncio no site do Google. A outra idéia era deixar os anunciantes darem lances uns contra os outros por palavras-chave – como “bola de golfe” – em rápidos leilões online. Leilões de pay-per-click [‘pague-por-clique’] abriram uma torneira de dinheiro. Um clique significava um anúncio bem sucedido, e alguns anunciantes estão dispostos a pagar mais por isso do que um vendedor humano poderia imaginar. Advogados especializados em compensações buscando clientes fariam lances tão altos quanto 50 dólares por um único clique na palavra-chave “mesotelioma”, uma forma rara de câncer causada pelo amianto.

4. O Google – monitorando sistematicamente o comportamento de seus usuários – tinha conhecimento instantâneo de quais anúncios eram bem sucedidos, e quais não. Era possível usar o click-through rate [‘proporção de cliques’] como uma medida de qualidade dos anúncios. E para determinar quem seriam os vencedores dos leilões, começou-se a considerar não apenas o dinheiro oferecido, mas o apelo do anúncio: um anúncio mais eficaz, recebendo muitos cliques, iria receber uma vantagem na disputa.
Agora, o Google tinha um sistema de ciclos lucrativos em ação, um feedback positivo por incentivar anunciantes a fazer anúncios publicitários mais eficazes (oferecendo dados para ajudá-los nessa tarefa), e por aumentar a satisfação dos usuários em clicar em anúncios, por evitar ruídos e spam. “O sistema reforçou a insistência do Google de que a publicidade não deveria ser uma transação entre um publicitário e um anunciante, mas uma relação de três vias que também incluía o usuário”, escreve Levy. No entanto, dificilmente esta é uma relação de igualdade. Vaidhyanathan vê aí uma relação de exploração: “A Googlização de tudo abrange a coleta, cópia, adição, e classificação de informações e contribuições feitas por cada um de nós.”
Em 2003, o AdWords Select estava servindo centenas de milhares de anunciantes e fazendo tanto dinheiro que o Google estava deliberadamente escondendo seu sucesso da imprensa e dos concorrentes. Mas este foi apenas o trampolim para o que estava por vir.

5. Até o momento, os anúncios eram exibidos em páginas de busca do Google, com tamanho discreto, com limites claros, no topo ou no lado direito das páginas. Agora, a empresa ampliou sua plataforma. O objetivo era desenvolver uma forma de inteligência artificial que poderia analisar pedaços de texto – websites, blogs, e-mail, livros – e combiná-los com palavras-chave. Com dois bilhões de páginas-web já indexadas, e com o seu sistema de rastreamento do comportamento de usuários, o Google tinha, na palma da mão, todas as informações necessárias para resolver este problema. Dado um site (ou um blog, ou um e-mail), ele poderia prever que anúncios seriam eficazes.

Esta era a “publicidade voltada ao conteúdo”, para usar o jargão. O Google chamou seu programa de AdSense. Para qualquer um que esperasse “rentabilizar” o seu conteúdo, ele era o Santo Graal. As maiores publicações digitais, tais como The New York Times, rapidamente aderiram ao AdSense, deixando o Google lidar com parcelas crescentes de seus contratos de publicidade. E assim o fizeram as menores publicações, aos milhões – fazendo crescer a “cauda longa” (9) de possíveis anunciantes até blogueiros individuais. Todos eles aderiram porque os anúncios eram extremamente produtivos e mensuráveis. “O Google conquistou o mundo da publicidade com nada mais do que matemática aplicada”, escreveu Chris Anderson, editor da Wired. “Ele não fingiu saber coisa alguma a respeito da cultura e das convenções da publicidade – apenas assumiu que dados melhores, com melhores ferramentas analíticas, iriam prevalecer. E o Google estava certo.” Jornais e outras mídias tradicionais têm reclamado de tempos em tempos sobre a apropriação do seu conteúdo, mas é através da absorção de publicidade mundial que o Google tornou-se seu concorrente mais destrutivo.

Como todas as formas de inteligência artificial, a publicidade voltada ao conteúdo produz erros e acertos. Levy cita um erro clássico: a sangrenta história publicada no site do New York Post – sobre um corpo que foi desmembrado e colocado em um saco de lixo – que foi acompanhada por um anúncio do Google sobre sacos de plástico. No entanto, agora qualquer um pode adicionar algumas linhas de código ao seu site, exibir automaticamente os anúncios do Google e começar a descontar cheques mensais, ainda que pequenos. Vastas extensões da Web que até agora estavam livres de publicidade tornaram-se parceiros do Google. Hoje, os anúncios do Google não estão apenas em sua página de busca, mas toda a Web e, além disso, em grandes volumes de e-mail e, potencialmente, em todos os livros do mundo.



Pesquisa e publicidade tornam-se assim os dois gumes de uma espada afiada. O motor de busca perfeito, como Sergey e Larry imaginam, lê sua mente e produz a resposta que você quer. O motor de publicidade perfeito faz o mesmo: mostra os anúncios que você deseja. Qualquer coisa além disso desperdiça sua atenção, o dinheiro do anunciante e a largura de banda da internet mundial. Sonha-se com uma publicidade virtuosa, unindo compradores e vendedores para o benefício de todos. Mas a publicidade virtuosa neste sentido é uma contradição em termos. O anunciante está pagando por uma fatia da nossa atenção, que é limitada: nossas mentes poderiam estar em outro lugar. Se os nossos interesses estivessem perfeitamente alinhados aos dos anunciantes, não seria necessário pagar. Não existe uma utopia da informação. Os usuários do Google são partes de uma transação complexa, e se há uma lição a ser tirada de todos esses livros é que nem sempre somos partes conscientes.

Os anúncios ao lado do seu e-mail (se você usa o serviço de e-mail gratuito do Google) podem servir como lembretes, às vezes surpreendentes, do quanto esta empresa sabe coisas que dizem respeito à sua vida privada. Mesmo sem o seu e-mail, seu histórico de pesquisa por si só já revela muita coisa, como diz Levy, “seus problemas de saúde, seus interesses comerciais, seus hobbies, e seus sonhos.” Sua resposta à publicidade revela ainda mais, e com seus programas de publicidade, o Google passou a rastrear o comportamento de usuários individuais de um site da Internet para outro. 

Eles observam cada um dos nossos cliques (onde possam) e medem quanto tempo levamos para tomar nossas decisões, em milisegundos. Se não fosse assim, os resultados não seriam tão assustadoramente eficazes. Eles não têm rival na profundidade e amplitude de sua mineração de dados. Eles fazem modelos estatísticos para tudo o que sabem, conectando pequenas e grandes escalas, desde o resultado de consultas e cliques, até informações relativas a moda, à estação, ao clima e a doenças.

É para seu próprio bem – esta é a crença que Google nutre. Se queremos os melhores resultados possíveis para nossas buscas, e se queremos anúncios adequados às nossas necessidades e desejos, temos que deixá-lo entrar em nossas almas.

Tradução de Pedro Germano Leal
* Este texto foi publicado originalmente como uma análise das seguintes publicações:
In the Plex: How Google Thinks, Works, and Shapes Our Lives
por Steven Levy
Simon and Schuster, 424 p.
I’m Feeling Lucky: The Confessions of Google Employee Number 59
por Douglas Edwards
Houghton Mifflin Harcourt, 416 p.
The Googlization of Everything (and Why We Should Worry)
por Siva Vaidhyanathan
University of California Press, 265 p.
Search & Destroy: Why You Can’t Trust Google Inc.
por Scott Cleland, com Ira Brodsky
Telescope, 329 p.
Notas da tradução:
(8) No original, “virtual smoke and mirrors”.
(9) No original, “long tail”. É uma configuração estatística na qual maior parte da população concentra-se na cauda de uma distribuição de probabilidade.


Feliz Halloween?! Olha que te jogo meu Saci, hein!





Comentário do Senhor C.:


- A charge é duplamente surreal. Primeiro, pela violência que sugere haver entre os heróis dos quadrinhos Batman e Robin. Segundo, por aquele dizer que este é brasileiro. São figuras e personagens lavradas na cultura do Tio Sam. Como é a difusão de um certo 'dia de Halloween", fruto amargo da difusão do ensino de inglês que, assumindo ares de cultura anglo-americana, difunde ideologicamente o american way of life, mais do que o britânico, pois o império da moda é a colonia britânica de além-mar. Pois bem, apesar do fato mereceu a publicação como uma surda revolta diante do esquecimento pela plebe ignara que hoje também se comemora o Dia Nacional do Folclore. E vivam os esquecidos sacis, iaras, boi-tatás e demais personagens de nosso imaginário que sumiram nas matas envergonhados do esquecimento de colonizados a que foram impostos. E vivam os monteiros lobatos que encheram a nossa infância do encanto de suas estórias.

sábado, 27 de outubro de 2012

As eleições e suas consequências

Daqui a pouco, de derrota em derrota,
a direita vai começar a dizer que a democracia está errada.
por Marcos Coimbra

Quando, na noite de domingo 28, conhecermos o resultado final das eleições municipais deste ano, o PT e o governo terão muito o que celebrar. E algumas razões para olhar com preocupação para o futuro próximo.

A se considerar o que aconteceu no primeiro turno e os prognósticos disponíveis para as disputas de segundo turno, o PT termina as eleições de 2012 como o principal vitorioso. De qualquer ângulo que se olhe, são as melhores eleições municipais da história do partido.

Os indicadores são muitos. Entre os cinco partidos que melhor se saíram nas eleições anteriores, foi o único que cresceu. Enquanto PMDB, PSDB, DEM e PP reduziram, o PT ampliou o número de municípios governados por prefeitos filiados à legenda.

Com isso, manteve sua tendência de crescimento, sem interrupção, desde a fundação. Quando se levam em conta apenas as três últimas eleições, foi de 410 prefeituras em 2004 a 628 neste ano (sem incluir as 10 ou mais que deve ganhar no segundo turno).

Do lado das oposições, o panorama, ao contrário, se complicou, o que significa outra vitória para Lula e o PT.

O total de prefeitos eleitos pelo PSDB, o DEM e o PPS caiu, nos últimos 8 anos, de 1.973 para 1.088 (sem considerar o resultado do segundo turno, que não deve, no entanto, alterar muito o quadro). Em outras palavras, os três partidos ficaram com pouco mais da metade das prefeituras que tinham.

Quanto ao número de vereadores eleitos, o cenário é parecido. De novo, o PT foi o único dos grandes que cresceu de 2008 para cá: ganhou cerca de mil novos vereadores, ao passar de 4.168 para 5.182. Enquanto isso, os três principais partidos oposicionistas elegeram 2.473 a menos. Entre 2004 e 2012, os representantes petistas nas câmaras municipais aumentaram em quase 40%.

Para o que efetivamente contam, portanto, foram eleições favoráveis ao PT. Nelas, o partido reforçou suas bases municipais, com isso se preparando para melhorar o desempenho nas próximas eleições legislativas.

Sair-se bem ou mal nas disputas locais tem impacto pequeno na eleição presidencial, como ilustra o bem o caso do PMDB, o eterno campeão em termos de prefeitos e vereadores eleitos, e que não consegue sequer ter candidato ao Planalto desde 1998. Mas elas são relevantes na definição do tamanho das bancadas na Câmara, fundamentais para governar.

Há, além disso, o aspecto simbólico.
Dessa perspectiva, o resultado das eleições municipais é mais significativo onde elas são menos decisivas objetivamente. É nas capitais que se travam as “grandes batalhas”, as que despertam mais atenção e definem os “grandes vencedores”, ainda que nelas seja menor a influência dos prefeitos nas eleições seguintes.

Como algumas ainda estão indefinidas, é difícil dizer com segurança, mas parece possível que o partido se aproxime, neste ano, da melhor performance de sua história, que alcançou em 2004, quando elegeu nove prefeitos de capital.

É claro que a maior de todas as batalhas, pelas condições em que foi montado o quadro eleitoral na cidade, acontece em São Paulo. E com a provável vitória de Fernando Haddad, a eleição de 2012 será fechada com chave de ouro para o PT.

Difícil imaginar um quadro de opinião tão desfavorável como o que foi montado para o partido nestas eleições. Apesar dele, sai como principal vitorioso. No plano objetivo e no plano simbólico.

Sem que houvesse qualquer razão técnica para que o julgamento do “mensalão” fosse marcado para o período eleitoral, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu seu calendário de tal maneira que parecia desejar que ele afetasse a tomada de decisão dos leitores. Como, aliás, deixou claro o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, quando afirmou que achava “salutar” uma interferência do julgamento na eleição.

Nossa “grande imprensa” resolveu fazer do assunto o carro-chefe do noticiário. Desde agosto, quando começaram as campanhas na televisão e no rádio, trouxeram o julgamento para o cotidiano da população.

Quem for ingênuo que acredite ter sido movida por “preocupações morais”. Com seu currículo, a última coisa que se espera dela é zelo pela ética.

Tudo o que as oposições, nos partidos, na mídia, no Judiciário, na sociedade, puderam fazer para que as eleições de 2012 se transformassem em derrota para Lula e o PT foi feito.

Mas não funcionou.

Mais que bom, isso é ótimo para o partido. Mostra a força de sua imagem, de suas lideranças e candidatos. Mostra por que é o grande favorito a vencer as próximas eleições presidenciais.

O problema é a frustração de quem apostou que o PT perderia.

E se esses setores, percebendo que não conseguem vencer com o povo, resolvem prescindir dele? Se chegarem à conclusão que só têm caminhos sem povo para atingir o poder? Se acharem que novas intervenções “salutares” serão necessárias, pois a recente foi inócua?

Site falso de Haddad foi criado em empresa da campanha de Serra

Bruno Lupion, de O Estado de S. Paulo


A provedora de internet GVT informou nesta sexta-feira, 26, que o site apócrifo "Propostas Haddad 13", que imitava a linguagem visual usada pela campanha do candidato do PT à Prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad, mas desferia críticas ao petista, foi criado na sede da Soda Virtual, empresa contratada pela campanha do candidato tucano, José Serra, por R$ 250 mil reais, para prestar serviços de "criação e inclusão de páginas na internet".

O site não identificava sua autoria e foi retirado do ar na última sexta-feira, 19, por decisão da Justiça Eleitoral, após pedido dos advogados de Haddad. Para o juiz Henrique Harris Júnior, da 1.ª Zona Eleitoral, as mensagens contidas na página eram "passíveis de enquadramento, em tese, como ofensivas e sabidamente inverídicas, até mesmo com o emprego de imitação das fontes, cores e símbolos utilizados na sua campanha (de Haddad)".

Entre os textos divulgados no site, estavam "Haddad vai criar 50 novas Escolas de Lata", "Haddad vai aumentar o IPTU" e "Haddad vai voltar com a Taxa do Asfalto". Na decisão, Harris Júnior determinou ao Google, onde o site estava hospedado, e à GVT que informassem o IP e a identidade do criador da página.



Segundo a GVT, a conexão de internet usada para criar o site está em nome de Huayna Batista Tejo, presidente da Soda Virtual, e é acessada pela Rua Borja Peregrino, 318, João Pessoa (PB), sede da empresa. À reportagem, Tejo negou ter criado o site "Propostas Haddad 13" e disse que vai investigar o ocorrido.

Na última sexta, quando o site foi retirado do ar, a campanha de Serra informou, por meio de sua assessoria, que não era responsável pelo site. A campanha de Serra foi contatada nesta sexta para comentar a identificação da autoria do site, mas não pôde responder até o momento.

O doente moral



Leandro Fortes

Olha, sinceramente, sempre foi difícil acreditar que pessoas decentes pudessem ainda votar em José Serra, mesmo depois daquela campanha de 2010.

A hipocrisia sobre a questão do aborto, a falsa adoção de religiosidade e, principalmente, a fraude da bolinha de papel já seria mais do que suficiente para deixar Serra como opção apenas de desequilibrados e eleitores com desvio de caráter.

O anti-esquerdismo raivoso, simbolizado pelo anti-petismo, e o apoio até então irrestrito dos oligopólios de mídia deram a Serra e, por extensão, a seus eleitores uma salvaguarda ética artificial que, nessas eleições, se mostrou insuficiente, afinal.

Ao usar as redes sociais para divulgar uma falsa notícia do cancelamento do Enem, a campanha de José Serra cometeu um crime de lesa-pátria, um atentado contra os estudantes e a juventude do Brasil. Uma crueldade institucional que beira o terrorismo.

É esse homem, acometido de grave doença moral, que ainda pretende ser protagonista da política brasileira. Um derrotado que, incrivelmente, está sendo cotado para presidir o PSDB.


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Regulação da mídia já!

A foto acima pode gerar pelo menos três notícias diferentes!
porViviane Cabreira

O cidadão chega em casa cansado após um tempo considerável no transporte público lotado e em péssimas condições depois de um longo dia de trabalho. Ao ligar a televisão, depara-se com um jornal que é para "Hommer Simpson ver". Rede Globo ainda pensa que o povo é burro. Ledo engano.

Faltando menos de uma semana para as eleições municipais em todo o país, a referida emissora veiculou no programa de horário nobre do telejornalismo da casa a carta suja escondida na manga. Ao notar que o Partido dos Trabalhadores cresceu e muito nessa eleição, a Globo foi truculenta em mais uma de suas artimanhas.

O que muito me faz rir é o alarde que o plim plim fez há pouco tempo falando sobre sua linha editorial, que eram pela objetividade, imparcialidade e outras balelas do gênero. Ora! Antônio Gramsci já dizia que viver é tomar partido. Não é errado deixar claro o posicionamento político-ideológico do veículo. O que causa repulsa é essa brincadeira de faz-de-conta. As organizações Roberto Marinho fazem um jornalismo "mauricinho, certinho e engravatado" manipulando fatos, omitindo muitos outros para que se possa distorcer a notícia ao bel-prazer dos interesses daqueles que defendem. São uma ínfima parcela da sociedade, quantidade centesimal que representa todo poder aquisitivo e político conservador do país. Esses são os verdadeiros senhores de alguns meios de comunicação. Eles mandam e desmandam. Vide a relação de Carlinhos Cachoeira e a Revista Veja.

Fidel Castro disse algo que vem bem a calhar. Como vinham cogitando na mídia internacional que ele estivesse agonizando, El Comandante soltou o verbo: "Mesmo que muitas pessoas no mundo ainda sejam enganadas pelos órgãos de informação, quase todos controlados por privilegiados e ricos que publicam essas bobagens, o povo crê cada vez menos nelas" e disparou sem medo que a imprensa é o "galinheiro de propaganda imperialista".

Segundo a mitologia grega, Prometeu roubou o fogo sagrado do Olimpo para entregá-lo aos homens. Pois é. As redes sociais estão cumprindo o papel desse herói mítico, já que os demais meios de comunicação de massa furtam-se a desempenhar a função de descortinar a verdade dos acontecimentos e levar isso à sociedade. Através dessas novas mídias e sua convergência, os compartilhamentos de links concretizam a possibilidade de que um contingente muito maior de pessoas possam ter acesso a determinadas informações. Isso se dá em uma escala maior do que seria através do rádio, da televisão, jornais e revistas, por exemplo.

Chamada de quarto poder, a imprensa só o será de fato a partir do momento em que defender os interesses do coletivo, do que é público. Enquanto servir de ferramenta para joguetes políticos, para fortalecer outras instâncias, continuará sendo somente uma mera representação barata e folhetinesca de jornalismo. É por essas e outras que necessitamos de uma regulamentação que divida isonomicamente as fatias do bolo comunicacional que hoje concentram-se nas mãos de algumas famílias que mantêm esse monopólio com punhos de ferro e padrinhos para sustentá-los.

Por isso é que pedimos #RegulaDilma!

Cidadania e proteção constitucional: os problemas do julgamento do STF

Têmis foi criada junto com Nêmesis,
ou seja justiça e vingança podem se confundir!
Luiz Moreira*


Uma das facetas mais preocupantes do atual constitucionalismo é a tentativa de submeter o real ao jurídico.

Essa tentativa de colonização do mundo da vida pelo jurídico se realiza mediante um alargamento do espectro argumentativo, desligando a argumentação jurídica de qualquer vinculação à lei. 

É a partir desse pressuposto que, em artigo publicado no portal Carta Maior(*), o Governador Tarso Genro afirma que "todo o Estado de Direito tem espaços normativos amplos para permitir-se, com legitimidade, tanto condenar sem provas como absolver com provas, nos seus Tribunais Superiores".

Quer dizer então que nas democracias ocidentais a legitimidade decorre das Cortes Constitucionais? Que a democracia emana do direito? Essas duas perguntas convergem para um quadro teórico incapaz de captar o sentido da modernidade.

O sentido da modernidade é o expresso por Newton, na física, e por Kant, na filosofia, ou seja, estabelece-se com a elevação da crise à estrutura racional, tanto no patamar teórico, como no prático. É isso que levou Henrique Lima Vaz a afirmar que na modernidade a racionalidade nomotética é substituída pela hipotética. Essa mesma questão é respondida de modo muito perspicaz por Napoleão Bonaparte ao afirmar que o mundo moderno surge quando a tragédia grega é substituída pela política. Não havendo mais oráculos para consultar, nem sacralidades donde se deduzem respostas, as decisões passam a ser dos cidadãos que, associadamente, são plenipotenciários. 

Não se trata de simples separação do poder em esferas autônomas, conforme uma organização horizontal, mas de estabelecer uma verticalidade, com a qual o exercício funcional do poder se submete à soberania popular. Para ser legítimo o Estado se submete ao poder dos cidadãos, estabelecendo-se o que se chama soberania popular, com a qual aos poderes políticos compete a direção dos negócios estatais. Portanto, não havendo Estado legítimo sem democracia, é o governo que asperge legitimidade às manifestações estatais.

Disso decorre uma primeira distinção que os juristas no Brasil teimam em não admitir e que perpassa o artigo do Governador Tasso Genro. É que do Estado Democrático de Direito a novidade entre nós é apenas a democracia. Todas as ditaduras brasileiras tiveram ordenamentos jurídicos sofisticados e o Supremo Tribunal Federal conviveu pacificamente com a ausência de democracia no Estado de Direito brasileiro. Suprimiram-se as eleições, houve intervenção nos Parlamentos, mas negócios e obrigações jurídicos foram normalmente celebrados, tudo devidamente chancelado pelo Judiciário brasileiro.

Outro equívoco cometido pelo Governador Tasso Genro é a combinação de autores tão distintos como Kelsen e Marx. Explico: o propósito dessa associação é o de conferir ares de vanguarda aos Tribunais Constitucionais. Sabe-se que Marx foi o mais arguto intérprete do capitalismo, sendo também conhecido como um dos "mestres da suspeita". Se essa análise do capitalismo lhe conferiu lugar junto aos clássicos do pensamento ocidental, do ponto de vista político lhe reservou assento entre os teóricos que rompem com os grilhões que dominam as consciências. Outra é a perspectiva de Kelsen ao formular os tribunais e a de sua institucionalização na Europa continental.

Kelsen propõe a adoção de tribunais constitucionais num contexto europeu entre as duas grandes guerras. Vivia-se a quebra de paradigmas hermenêuticos, sobretudo com a entronização do particular sobre o universal. Essa perspectiva gera a insuscetibilidade de submissão de uma interpretação a outra, mas também garante que não haja supremacia cultural de um país sobre outro, o que se institucionalizava com a supremacia parlamentar, vez que cabia aos parlamentos a representação das distintas visões de mundo. Daí a máxima segundo a qual "cada cabeça uma sentença". Festeja-se com isso a diversidade cultural e um grau razoável de autonomia da sociedade civil ante o Estado.

Ora, os tribunais constitucionais logram institucionalização por intermédio de um ato político decorrente da vitória norte-americana na segunda grande guerra. A fim de esmagar a diversidade cultural, as distintas visões de mundo e a submeter a todos a uma mesma orientação, passada a guerra os Estados Unidos impuseram aos vencidos a adoção de tribunais constitucionais. O exemplo alemão é marcante. Sem eleições e tampouco sem democracia foi outorgada uma Lei Fundamental e criado o tribunal constitucional na Alemanha. Como compatibilizar a existência de um tribunal dito constitucional se não há Constituição? A resposta é simples: o exercício funcional do poder pode perfeitamente ser jurídico sem ser democrático.

Se o modelo dos tribunais constitucionais é imposto à Europa como conseqüência aos regimes totalitários, houve algo profundamente nazista que sobreviveu à guerra. Trata-se daquilo presente nas cartas do ministro da justiça do Reich: o apelo ao contorno às leis, às suas prescrições e sua substituição pela concreção dos ideais nazistas que deveriam ser operada pelos juízes. O que se pretendeu com isso? Estabelecer o primado da interpretação judicial sobre a lei. O propósito é claro: trata-se de conferir à interpretação realizada pelo judiciário supremacia política, operada por uma argumentação sem peias, pela qual ao magistrado é conferido o papel de oráculo.

Nesse contexto, é preciso enfrentar a questão atinente à relação entre direito e política. O Governador Tasso Genro defere às Cortes Constitucionais um protagonismo tal que chega a deferir-lhe papel de mediador entre projetos sociais e políticos antagônicos. Nesse sentido, então, o Judiciário seria uma espécie de poder moderador. Essa afirmação contraria profundamente todo o projeto político libertário que a modernidade pode conter. Quer dizer então que a democracia, o poder constituinte permanente existente na sociedade civil, precisa ser domada por uma instituição não popular? Que diferença qualitativa há então entre esse projeto e o do Leviatã de Hobbes?

A única razão de ser que legitima a existência das Cortes Constitucionais é o seu papel de poder contra majoritário, de modo a represar manifestações violentas e arbitrárias da maioria ante minorias, ainda que apenas simbólicas. Por isso, seu poder é circunscrito aos direitos e garantias fundamentais, vinculando-os estritamente a constatar o que foi prescrito pelos poderes políticos (a lei) e pelo que foi produzido pelas partes nos processos judiciais.

Por último, o Governador Tarso Genro assevera que o processo do "mensalão" foi "devido", "legal" e "legítimo". No meu entender, equívocos foram cometidos e que levantam questionamentos sobre a correção do julgamento, entre eles: (1) a opção pelo fatiamento do julgamento; (2) a falta de individualização das condutas e sua substituição por blocos e (3) a ausência de provas e a aplicação dos princípios do direito civil ao direito penal.

(1) Com o propósito de garantir a supremacia de uma ficção foi estabelecida a narração como método em uma ação penal. Como no direito penal exige-se a demonstração cabal das acusações, essa obra de ficção foi utilizada como fundamento penal. Em muitas ocasiões no julgamento foi explicitada a ausência de provas. Falou-se até em um genérico "conjunto probatório", mas nunca se apontou que prova, em que folhas, o dolo foi comprovado. Foi por isso que se partiu para uma narrativa em que se gerou uma verossimilhança entre a ficção e a realidade. Estabelecida a correspondência, passou-se ao passo seguinte que era o de substituir o exame da acusação pela comprovação das teses da defesa. Estava montado assim o método aplicado nesse processo, o de substituir a necessária comprovação das teses da acusação por deduções, próprias ao método narrativo.

(2) Como se trata de uma ficção, o método narrativo não delimita a acusação a cada um dos réus, nem as provas, limita-se a inseri-los numa narrativa para, após a narrativa, chegar à conclusão de sua condenação em blocos. O direito penal é o direito constitucional do cidadão em ter sua conduta individualizada, saber exatamente qual é a acusação, saber quais são as provas que existem contra ele e ter a certeza de que o juiz não utiliza o mesmo método do acusador. É por isso que cabe à acusação o ônus da prova e que aos cidadãos é garantida a presunção de inocência. Nesse processo, a individualização das condutas e a presunção de inocência foram substituídas por uma peça de ficção que exigiu que os acusados provassem sua inocência.

(3) Por diversas vezes se disse que as provas eram tênues, que as provas eram frágeis. Como as provas não são suficientes para fundamentar condenações na seara penal, substituíram o dolo penal pela culpa do direito civil. A inexistência de provas gerou uma ficção que se prestou a criar relações entre as partes de modo que se chegava à suspeita de que algo houvera ali. Como essa suspeita nunca se comprovou, atribuíram forma jurídica à suspeita, estabelecendo penas para as deduções. Com isso bastava arguir se uma conduta era possível de ter sido cometida para que lhe fosse atribuída veracidade na seara penal. As deduções realizadas são próprias ao que no direito se chama responsabilidade civil, nunca à demonstração do dolo, exigida no direito penal, e que cabe exclusivamente à acusação.


*Luiz Moreira é Doutor em Direito e Mestre em Filosofia pela UFMG. Professor universitário. Diretor Acadêmico da Faculdade de Direito de Contagem.


Comentário do Senhor C.:

- Cuidai-vos cidadãos, quando a justiça se inclina de uma irmã para a outra, é o vosso destino que está em jogo. Se hoje jubilai-vos pela condenação alheia, reparai bem e refleti bem em que termos ela se fez, pois pode ter cruzado a linha tênue que separa os atributos de Têmis dos atributos de Nêmesis.


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A última eleição sob a tutela da Globo



A sólida dianteira de Haddad em SP, reafirmada pelo Ibope e o Datafolha desta 5ª feira, deixa ao conservadorismo pouca margem para reverter uma vitória histórica do PT; talvez a derradeira derrota política do seu eterno delfim, José Serra. Ainda assim há riscos. Não são pequenos. Eles advém menos da vontade aparentemente definida do eleitor, do que da disposição midiática para manipulá-la, nas poucas horas que antecedem o pleito de domingo.

Há alguma coisa de profundamente errado com a liberdade de expressão num país quando, a cada escrutínio eleitoral, a maior preocupação de uma parte da opinião pública e dos partidos, nos estertores de uma campanha como agora, não se concentra propriamente no embate final de idéias, mas em prevenir-se contra a 'emboscada da véspera''.

Não se argui se ela virá; apenas como e quando a maior emissora de televisão agirá na tentativa de raptar o discernimento soberano da população, sobrepondo-lhe seus critérios, preferências e interditos.

Tornou-se uma aflita tradição nacional acompanhar a contagem regressiva dessa fatalidade.

A colisão entre a festa democrática e a usurpação da vontade das urnas por um interdito que se pronuncia de véspera, desgraçadamente instalou-se no calendário eleitoral. E o corrói por dentro, como uma doença maligna que pode invalidar a democracia e desfibrar a sociedade.

A evidencia mais grave dessa anomalia infecciosa é que todos sabem de que país se fala; qual o nome do poder midiático retratado e que interesses ele dissemina.

Nem é preciso nominá-los. E isso é pouco menos que uma tragédia na vida de uma Nação.

De novo, a maleita de pontualidade afiada rodeia o ambiente eleitoral no estreito espaço que nos separa das urnas deste 28 de outubro.
Em qualquer sociedade democrática uma vantagem de 15 pontos como a de Haddad hoje, seria suficiente para configurar um pleito sereno e definido.

Mas não quando uma única empresa possui 26 canais de televisão, dezenas de rádios, jornal impresso, editora, produção de cinema, vídeo, internet e distribuição de sinal e dados.

Tudo isso regado por uma hegemônica participação no mercado publicitário, inclusive de verbas públicas: a TV Globo, sozinha, receberá este ano mais de 50% da verba publicitária de televisão do governo Dilma.

Essa concentração anômala de munição midiática desenha um cerco de incerteza e apreensão em torno da democracia brasileira.

Explica porque, a três dias das eleições municipais de 2012, pairam dúvidas sobre o que ainda pode acontecer em São Paulo, capaz de fraudar a eletrizante vitória petista contra o adversário que tem a preferência do conservadorismo e da plutocracia.

Não há nessa apreensão qualquer traço de fobia persecutória.

Há antecedentes. E são abundantes a ponto de justificá-la.

Múltiplas referenciais históricas estão documentadas. Há recorrência na intervenção indevida que mancha, enfraquece e humilha a democracia,como um torniquete que comprime a liberdade das urnas.

Mencione-se apenas a título ilustrativo três exemplos de assalto ao território que deveria ser inviolável, pelo menos muitos lutaram para que fosse assim; e não poucos morreram por isso.

Em 1982, a Rede Globo e o jornal O Globo arquitetaram um sistema paralelo de apuração de votos nas eleições estaduais do Rio de Janeiro.
Leonel Brizola era favorito, mas o candidato das Organizações Globo, Moreira Franco, recebera privilégios de cobertura e atenção que antecipavam o estupro em marcha das urnas.

Ele veio na forma de um contagem paralela - contratada pela Globo - que privilegiaria colégios do interior onde seu candidato liderava, a ponto de se criar um 'consenso' de vitória em torno do seu nome.
O assédio só não se consumou porque Brizola recusou o papel de hímen complacente à fraude.

O gaúcho recém chegado do exílio saiu a campo, convocou a imprensa internacional, denunciou o golpe em marcha e brigou pelo seu mandato. Em entrevista histórica --ao vivo, por sua arguta exigência, Brizola denunciou a manobra da Globo falando à população através das câmeras da própria emissora.

Venceu por uma margem de 4 pontos. Não fosse a resistência desassombrada, a margem pequena seria dissolvida no contubérnio entre apurações oficiais e paralelas.

Em 1983 os comícios contra a ditadura e por eleições diretas arrastavam multidões às ruas e grandes praças do país.
A Rede Globo boicotou as manifestações enquanto pode, mantendo esférico silêncio sobre o assunto. O Brasil retratado em seu noticioso era um lago suíço de resignação.

No dia 25 de janeiro de 1984, aniversário da cidade, São Paulo assistiu a um comício monstro na praça da Sé. Mais de 300 mil vozes exigiam democracia, pediam igualdade, cobravam eleições.

O lago tornara-se um maremoto incontrolável. A direção editorial do grupo que hoje é um dos mais aguerridos vigilantes contra a 'censura' na Argentina, Venezuela e outros pagos populistas, abriu espaço então no JN para uma reportagem sobre a manifestação. Destinou-lhe dois minutos e 17 segundos.

Compare-se: na cobertura do julgamento em curso da Ação penal 470, no STF, o mesmo telejornal dispensou mais de 18 minutos nesta terça-feira a despejar ataques e exibicionismos togados contra o PT, suas lideranças e o governo Lula.

Naquele 25 de janeiro estava em causa, de um lado, a democracia; de outro, a continuidade da ditadura.

Esse confronto mereceu menos de 1/6 do tempo dedicado agora ao julgamento em curso no STF. Com um agravante fraudulento: na escalada do JN, a multidão na praça da Sé foi associada, "por engano", explicou depois a emissora, 'a um show em comemoração aos 430 anos da cidade'. Passemos...

Em 1989, o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello realizariam o debate final de uma disputa acirrada e histórica: era o primeiro pleito presidencial a consolidar o fim da ditadura militar.

No confronto do dia 14 de dezembro Collor teve desempenho pouco superior ao de Lula. Mas não a ponto de reverter uma tendência de crescimento do ex-líder metalúrgico; tampouco suficiente para collorir os indecisos ainda em número significativo.

A Globo editou o debate duas vezes. Até deixá-lo 'ao dente', para ser exibido no Jornal Nacional.
Collor teve um minuto e oito segundos a mais que Lula; as falas do petista foram escolhidas entre as suas intervenções mais fracas; as do oponente, entre as suas melhores.

Antes do debate a diferença de votos entre os dois era da ordem de 1%, a favor de Collor; mas Lula crescia. Depois do cinzel da Globo, Collor ampliou essa margem para 4 pontos e venceu com quase 50% dos votos;Lula teve 44%. As consequências históricas dessa maquinação são sabidas.

São amplamente conhecidas também as reiterações desse tipo de interferência nos passos posteriores que marcaram a trajetória da democracia brasileira.

Ela se fez presente como obstaculo à vitória de Lula em 2002; catalisou a crise de seu governo em 2005 --quando se ensaiou um movimento de impeachment generosamente ecoado e co-liderado pelo dispositivo midiático conservador; atuou no levante contra a reeleição de Lula em 2006 e agiu na campanha ostensiva contra Dilma, em 2010.

A indevida interferência avulta mais ainda agora. Há sofreguidão de revide e um clima de 'agora ou nunca' no quase linchamento midiático promovido contra o PT, em sintonia com o calendário e o enredo desfrutáveis, protagonizados por togas engajadas no julgamento em curso do chamado mensalão'.
Pouca dúvida pode haver quanto aos objetivos e a determinação férrea que vertem desse repertório de maquinações, sabotagens e calúnias disseminadas.

Sua ação corrosiva arremete contra tudo e todos cuja agenda e biografia se associem à defesa do interesse público, do bem comum e da democracia social.Ou, dito de outro modo, visa enfraquecer o Estado soberano, desqualificar valores e princípios solidários que sustentam a convivência compartilhada.

Os governantes e as forças progressistas brasileiras não tem mais o direito --depois de 11 anos no comando do Estado- de ignorar esse cerco que mantem a democracia refém de um poder que só a respeita enquanto servir como lacre de chumbo de seus interesses e privilégios.

Os requintes de linchamento que arrematam o espetáculo eleitoral em que se transformou a ação Penal 470, ademais da apreensão com a 'bala de prata midiática' que possa abalar a vitória do PT de SP, não são fenômenos da exclusiva cepa conservadora.

A conivência federal com o obsoleto aparato regulador do sistema nacional de comunicações explica um pedaço desse enredo. Ele esgotou a cota de tolerância das forças que elegeram Lula e sustentam Dilma no poder.

O país não avançará nas trasformações econômicas e sociais requeridas pela desordem neoliberal se não capacitar o discernimento político de mais de 40 milhões de homens e mulheres que sairam da pobreza, ascenderam na pirâmide de renda e agora aspiram à plena cidadania.

A histórica obra de emancipação social iniciada por Lula não se completará com a preservação do atual poder de veto que o dispositivo midiático conservador detém no Brasil.

Persistir na chave da cumplicidade, acomodação e medo diante desse aparato tangencia a irresponsabilidade política.

Mais que isso: é uma assinatura de contrato com a regressão histórica que o governo Dilma e as forças que o sustentam não tem o direito de empenhar em nome do povo brasileiro.

Que a votação deste domingo seja a última tendo as urnas como refém da rede Globo, dos seus anexos, ventríloquos e assemelhados. Diretas, já! Esse é um desejo histórico da luta democrática brasileira. Carta Maior tem a certeza de compartilhá-lo com seus leitores e com a imensa maioria dos homens e mulheres que caminharão para a urna neste domingo dispostos a impulsionar com o seu voto esse novo e inadiável divisor da nossa história.

Bom voto.

Postado por Saul Leblon
Carta Maior




quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Rede Globo comete crime eleitoral por edição do JN




A edição de ontem do Jornal Nacional, que dedicou 18 minutos a um especial sobre o mensalão, logo após o horário eleitoral gratuito, pode ter infringido a Lei Geral das Eleições. Comandada por Eduardo Guimarães, a ONG Movimento dos Sem-Mídia, decidiu entrar com representação contra a Globo junto à Procuradoria Geral Eleitoral e ao Ministério das Comunicações, acusando a emissora da família Marinho, comandada pelo jornalista Ali Kamel, de agir de forma partidária, assim como ocorreu em 1989, na edição do debate entre Lula e Fernando Collor. Leia abaixo:
ONG representará contra Jornal Nacional na PGE e no Minicom
Até a insuspeita Folha de São Paulo notou a cobertura desproporcional, ilegal e até criminosa que o Jornal Nacional fez da sessão de terça-feira (23.10) do julgamento do mensalão. Segundo a matéria em tela, o telejornal gastou 18 dos 32 minutos de sua edição de ontem com esse assunto. Abaixo, o texto da Folha.
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FOLHA DE SÃO PAULO
24 de outubro de 2012
‘JN’ dedica quase 20 minutos a balanço do julgamento
DE SÃO PAULO
O “Jornal Nacional” da TV Globo, programa jornalístico mais assistido da televisão brasileira, dedicou ontem 18 dos 32 minutos de sua edição a um balanço do julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal.
O telejornal exibiu oito reportagens sobre o tema, contemplando desde o que chamou de “frases memoráveis” proferidas no plenário do STF às rusgas entre os ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandovsky, respectivamente relator e revisor do processo na corte.
O segmento mais “quente” do telejornal, dedicado às notícias do dia (debate do tamanho das penas e a decisão de absolver réus de acusações em que houve empate no colegiado) consumiu 3min12s.
O restante foi ocupado pelo resumo das 40 sessões de julgamento.
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Há, ainda, um agravante. O assunto foi ao ar no JN imediatamente após o fim do horário eleitoral, que, em São Paulo, foi encerrado com o programa de Fernando Haddad. E tem sido assim desde que começou o segundo turno – o noticiário do mensalão é apresentado pelo telejornal sempre “colado” ao fim do horário eleitoral.
O objetivo de interferir no pleito do próximo domingo em prejuízo do Partido dos Trabalhadores e dos outros partidos aliados que figuram na Ação Penal 470, vem sendo escancarado. Ontem, porém, essa prática ilegal chegou ao ápice.
A ilegalidade é absolutamente clara. Para comprovar, basta a simples leitura da Lei 9.504/97, a chamada Lei Geral das Eleições, que, em seu artigo 45, caput, reza que:
Caput – A partir de 1o de julho, ano da eleição, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário, conforme incisos:
III – Veicular propaganda política, ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus orgãos ou representantes;
IV – Dar tratamento privilegiado a candidato, partido ou coligação;
V – É vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário, veicular ou divulgar filmes, novelas, minisséries ou qualquer outro programa com alusão ou crítica a candidato ou partido político, mesmo que dissimuladamente (…)
Apesar de a Globo poder alegar que estava apenas reproduzindo um fato do Poder Judiciário, a intenção de usar as reiteradas menções dos ministros do Supremo Tribunal Federal ao Partido dos Trabalhadores é escancarada ao ponto de ter virado notícia de um jornal absolutamente insuspeito de ser partidário desse partido.
Conforme reza a lei, é vedada prática da qual o JN abusou, ou seja, fazer “Alusão ou crítica a candidato ou partido político, mesmo que dissimuladamente”. Ora, de dissimulado não houve nada. O PT foi citado reiteradamente pela edição do JN de forma insistente e por espaço de tempo jamais visto em uma só reportagem.
A Lei Eleitoral recebe interpretação pela Justiça Eleitoral, ou seja, ela julga exatamente as nuances das propagandas, dos programas em veículos eletrônicos e até mesmo na imprensa escrita e na internet.
O uso de uma concessão pública de televisão com fins político-eleitorais também viola a Lei das Concessões, cujo guardião é o Ministério das Comunicações.
Diante desses fatos, comunico que a ONG Movimento dos Sem Mídia, da qual este blogueiro é presidente, apresentará, nos próximos dias, representações à Procuradoria Geral Eleitoral e ao Ministério das Comunicações contra a TV Globo por violação da Lei Eleitoral, com tentativa de influir em eleições de todo país.
Detalhe: será pedido ao Minicom a cassação da concessão da Rede Globo por cometer crime eleitoral
Por certo não haverá tempo suficiente de fazer a representação ser apreciada por essas instâncias antes do pleito, mas isso não elidirá a denunciação desse claro abuso de poder econômico com vistas influir no processo eleitoral. Peço, portanto, o apoio de tantos quantos entenderem que tal crime não pode ficar impune.
Fonte: Brasil 247


terça-feira, 23 de outubro de 2012

PSDB é pra rico ou é pra pobre?




Por @pmoreiraleite

A iminência de uma derrota histórica na cidade que consideravam sua reserva de mercado têm levado alguns observadores a fazer um trabalho vergonhoso em defesa da candidatura de José Serra à prefeitura de São Paulo.

Em vez de defender José Serra, o que seria natural na reta final da eleição, eles procuram levantar o fantasma da ameaça de um avanço da hegemonia do PT no país inteiro. Enquanto acreditavam que seu candidato era favorito, diziam que a polarização política era ótima, que o conflito ideológico ajudava a formar a consciência do eleitor. Mas agora, diante de pesquisas eleitorais constrangedoras, querem mudar o jogo de qualquer maneira.

É um comportamento arriscado e pode ser contraproducente.

Do ponto de vista democrático, o PT só chegou ao poder de Estado, em qualquer instância, pelo voto direto. Bem ou mal, é o único dos grandes partidos brasileiros – já existentes na época — que pode exibir essa condição.

Claro que você pode discutir a recusa em votar em Tancredo Neves, em 1984. Pode dizer que foi radicalismo, esquerdismo, sei lá. Mas é possível reconhecer que naquele momento da transição os petistas defenderam um princípio de respeito a vontade popular que vários adversários – por uma esperteza que em vários casos pouco tinha a ver com patriotismo desinteressado – logo iriam trocar por um cargo no ministério.

Essa postura conservadora contra Haddad retoma os velhos fantasmas do perigo vermelho, tão primitivos como tantas mitologias de quem saiu colonizado pelos anos de Guerra Fria. Reflete um medo aristocrático de quem imaginava que tinha transformado São Paulo em seu quintal eleitoral e agora se vê sem respostas para as grandes parcelas da população.

Depois de criticar o PT pelos Céus de Marta Suplicy, a campanha tucana fala em Céus do Serra. Depois de criticar o bilhete único, o PSDB aderiu a ele. Criticou Haddad pelo bilhete único mensal, mas agora lançou sua própria versão do mesmo bilhete. Depois de passar a campanha pedindo que a população tivesse pena de Gilberto Kassab, nossos analistas descobrem que o continuismo não está com nada e, para não perder embalo, dizem que é uma tendência para 2014 e já ameaçam Dilma.

Levantar o fantasma de um perigo difuso e ameaçador é um dos mais conhecidos truques da comunicação moderna. Revela desprezo pelo conhecimento e pela inteligência do eleitor, procurando convencer a população com argumentos inconscientes, de natureza emocional.

A postura pode ser resumida assim: quando não dá mais para falar em bolo nem em brioches, como fez Maria Antonieta diante da plebe rude, vamos para lágrimas e o sentimentalismo.

O pensamento aristocrático e conservador do século XIX, quando a aristocracia descobriu que o voto popular poderia produzir resultados desagradáveis e inesperados, foi construído assim. Pensadores como Gustave Le Bon afirmavam, literalmente, que a multidão “ou não conseguia raciocinar, ou só conseguia racionar de forma errada.”

O truque principal, nesse comportamento, era evitar referências claras e diretas. Por motivos fáceis de explicar, nunca se diz: perigo de que? Por que?

Grita-se: “eu tenho medo,” como fez Regina Duarte, em 2002. Mas pelo menos ela tinha sido a namoradinha do Brasil…

Como bem lembrou Fernando Rodrigues, a partir de 1994 o PSDB tornou-se um partido rico e poderoso.

Deixou essa condição, pela vontade livre e direta do eleitorado. Em nenhum momento o PSDB deixou de ter colunistas e articulistas de pena amiga para descrever suas virtudes perante a população, com uma generosidade jamais exibida em relação a nenhum outro adversário.

A dificuldade é que, em sua passagem pelo poder federal os tucanos não deixaram nenhuma recordação duradoura na defesa dos mais pobres e dos assalariados em geral. Foi por isso que perderam três eleições consecutivas, sem jamais exibir concorrentes competitivos.

Em 2002, quando o governo de FHC chegou ao fim, sua popularidade era negativa. A inflação passara dos dois dígitos, o desemprego havia disparado, a economia estava num abismo financeiro e é claro que, já então, culpava-se o perigo vermelho por isso.

Quanto aos métodos de governo, não sejamos ingênuos nem desmemoriados. Se você não quer usar a palavra aparelhamento, poderia falar, então, em engaiolamento tucano.

É um sistema realmente eficiente, já que, em quatro anos, promoveu:

a) mudanças nas regras eleitorais estabelecidas pela Constituição;

b) um esquema conhecido como mensalão, matriz dos demais;

c) um procurador geral da República dos tempos de FHC era conhecido como “engavetador”geral da República;

Embora goste de lembrar que o PT votou contra o Plano Real assinado por Itamar Franco, o PSDB prefere esquecer que, ao retornar ao governo de Minas Gerais, o ex-presidente rompeu com FHC e chegou a mobilizar a PM para impedir que Brasília privatizasse a usina de Furnas.

Foi para tentar derrotar Itamar, político muito popular no Estado, que o PSDB inventou o mensalão de Marcos Valério, colocando de pé um esquema que arrecadou mais de R$ 200 milhões para as agências ligadas ao esquema. Nem assim o esquema funcionou e, como acontece nas democracias, venceu o candidato que era melhor de voto.

Mesmo derrotado – a democracia tem disso, né, gente? – o PSDB empurrou a dívida do esquema com a barriga, com ajuda de verbas liberadas – olha a coincidência ! – pelo mesmo cofre do Visanet. Quando Aécio recuperou o governo de Minas, Valério voltou a ser premiado com novos recursos, informa Lucas Figueiredo, no livro O Operador. Conforme demonstrou a CPI dos Correios, dirigida por aliados do PSDB, havia farta distribuição de recursos públicos na campanha tucana.

Num lance de peculiar ousadia, foram retirados R$ 27 milhões da própria Secretaria da Fazenda do Estado.

A verdade é que o mensalão mineiro foi feito com tanta competência – ou seria melhor empregar o termo periculosidade? – que jamais foi descoberto. Até surgiram denúncias, mas eles nunca foram investigados.

Chegou-se ao mensalão mineiro por causa do braço petista de Marcos Valério. Se não fosse por ele, nem saberíamos que teria existido.

Isso é que engaiolamento, vamos concordar. Funciona mesmo depois que o PSDB deixou o poder. Enquanto o Supremo condena o mensalão petista com argumentos deduzidos e não demonstrados, os tucanos seguem no pão de queijo. Ninguém sabe, sequer, quantos serão julgados. Nem quando.

Agora vamos reconhecer: Fernando Haddad assumiu a liderança folgada nas pesquisas como um bom candidato deve fazer. Veio do zero, literalmente, e ganhou eleitores na medida em que tornou-se conhecido.

O apoio de Lula não é importante, apenas, porque lhe garante um bom patamar de votos. Essa é uma visão eleitoreira da política. Esse apoio mostra que é um candidato com origem e história e isso é importante. Dá uma referência ao eleitor.

Num país onde os sábios da década passada adoravam resmungar com frases feitas sobre a falta de partidos “legítimos”, com “história”, com “programa,”etc, é difícil negar que o PT fez sua parte. Você pode até achar uma coisa detestável. Pode dizer que o PT é um partido anacrônico, que “traiu o discurso ético” e só faz mal ao país. Mas tem de admitir que não é Haddad, como Dilma já mostrou em 2010, quem tem problemas com a própria história.

E isso, na construção de uma democracia, é um bom começo. Falta, agora, a outra parte. Caso as urnas confirmem o que dizem as pesquisas de intenção de voto, a vitória de Haddad só irá demonstrar a dificuldade da oposição em mostrar que poderia fazer um governo melhor.

O debate político é este. O resto é propaganda.


Um país estranho



Vladimir Safatle

A Islândia é uma ilha com pouco mais de 300 mil habitantes que parece decidida a inventar a democracia do futuro.

Por uma razão não totalmente clara, esse país que fora um dos primeiros a quebrar com a crise financeira de 2008 sumiu em larga medida das páginas da imprensa mundial. Coisas estranhas, no entanto, aconteceram por lá.

Primeiro, o presidente da República submeteu a plebiscito propostas de ajuda estatal a bancos falidos. O ex-primeiro-ministro grego George Papandreou foi posto para fora do governo quando aventou uma ideia semelhante. O povo islandês, todavia, não se fez de rogado e disse claramente que não pagaria nenhuma dívida de bancos.

Mais do que isso, os executivos dos bancos foram presos e o primeiro-ministro que governava o país à época da crise foi julgado e condenado.

Algo muito diferente do resto da Europa, onde os executivos que quebraram a economia mundial foram para casa levando no bolso "stock options" vindos diretamente das ajudas estatais.

Como se não bastasse, a Islândia resolveu escrever uma nova Constituição. Submetida a sufrágio universal, ela foi aprovada no último fim de semana. A Constituição não foi redigida por membros do Parlamento ou por juristas, mas por 25 "pessoas comuns" escolhidas de maneira direta.

Durante sua redação, qualquer um podia utilizar as redes sociais para enviar sugestões de leis e questionar o projeto. Todas as discussões entre os membros do Conselho Constitucional podiam ser acompanhadas do computador de qualquer cidadão.

O resultado é uma Constituição que estatiza todos os recursos naturais, impede o Estado de ter documentos secretos sobre seus cidadãos e cria as bases de uma democracia direta, onde basta o pedido de 10% da população para que uma lei aprovada pelo Parlamento seja objeto de plebiscito.

Seu preâmbulo não poderia ser mais claro a respeito do espírito de todo o documento: "Nós, o povo da Islândia, queremos criar uma sociedade justa que ofereça as mesmas oportunidades a todos. Nossas diferentes origens são uma riqueza comum e, juntos, somos responsáveis pela herança de gerações".

Em uma época na qual a Europa afunda na xenofobia e esquece o igualitarismo como valor republicano fundamental, a Constituição islandesa soa estranha. Esse estranho país, contudo, já não está mais em crise econômica.

Cresceu 2,1% no ano passado e deve crescer 2,7% neste ano. Eles fizeram tudo o que Portugal, Espanha, Grécia, Itália e outros não fizeram. Ou seja, eles confiaram na força da soberania popular e resolveram guiar seu destino com as próprias mãos. Algo atualmente muito estranho.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Sobre conservadores e reacionários



Matheus Pichonelli


Há uma diferença entre um candidato que se diz conservador e outro, reacionário. Um conservador pode ser alguém avesso, por exemplo, a mudanças bruscas nos rumos da economia. Alguém que prefere a estabilidade da moeda e da inflação a uma intervenção aguda nos juros para incentivar a economia. Alguém que desconfia da eficiência do Estado para gerar emprego e renda ou mesmo para garantir, por leis e ações afirmativas, as diversidades ou a livre expressão individual no espaço público.

Em política, pode-se debater essas questões de modo honesto antes, durante e depois das eleições. A finalidade, por caminhos inversos, desboca num valor em comum entre liberais e conservadores legítimos: a justiça. Simplificando, uns a enxergam pelo caminho da igualdade, outros, pela liberdade sem interferências além das inevitáveis.

Este é o mundo ideal. Utópico até. Porque no meio do caminho existe o reacionário. E o reacionário é em si um sujeito raivoso, incapaz de apontar caminhos em direção a uma realidade mais digna para seu país, sua cidade, sua casa, seu bairro. O eleitor reacionário quer o retorno de uma velha ordem. O retorno de privilégios. Daí o nojo às normas formas de expressão. Daí o medo “dessas empregadinhas subirem na vida e se recusarem a trabalhar por mixarias”. Daí o medo de “esse aeroporto se transformar numa rodoviária”. O medo de ciclistas “atrapalharem as pirotecnias da minha SUV”. O medo de mandar “meu filho pra escola e dividir a carteira com o filho do motoboy”. Daí o medo das denominadas “ditaduras gays”.

Silas Malafaia é um reacionário. É um líder que espalha ódio para combater um elemento que ele não reconhece como humano simplesmente porque não nasceu como diz o mandamento. Em suas pregações, ele não diz se o Estado deve agir ou não para garantir a paz e a unidade, conceitos tão caros a qualquer cristão. Pede, em outras palavras, um aniquilamento, uma reação a um mundo de pretensa desordem. É um homem do antigo testamento pregando em 2012 num exercício similar ao esforço de segurar uma barragem com um graveto. Mal sabe ele que, como na música, “algo se perdeu, algo se quebrou, está se quebrando”.

Não fosse isso não haveria, em uma pesquisa Datafolha recente, 70% da população em São Paulo dizendo que a homossexualidade deve ser aceita por toda a sociedade, contra 23% que dizem concordar que “deve ser desencorajada”. Os 23% são muitos, é verdade, mas já não são maioria. E, diferentemente do que querem fazer crer, não estão restritos a evangélicos, católicos ou qualquer outra profissão de fé que tenha a paz como embrião.

Por isso, classificar um projeto anti-homofobia do Ministério da Educação como “kit gay”, tomar a parte pelo todo e dizer, em plena campanha para a prefeitura da maior cidade do País, que o programa empurraria os alunos para a homossexualidade, como se este fosse o temor de uma população em chamas, é no mínimo duvidoso. É o que se espera de Malafaia, um reacionário nato. Não de um candidato a prefeito. Qualquer passo em direção a isso soa a desfaçatez – como condenar a prática do aborto e ter um aborto no currículo, como dizer que o Estado não deve se intrometer na orientação sexual do indivíduo e ter lançado um “kit” semelhante. É um convite para o desembarque de um eleitorado progressista identificado com o PSDB fundado por Mário Covas.

Se a ideia era atingir o eleitorado “conservador” de uma cidade onde 79% dizem que “acreditar em Deus torna as pessoas melhores”, o tiro passou longe. Porque o cidadão pode ser conservador, mas nem sempre é burro, conforme poderia confirmar o ex-governador Claudio Lembo. E o perigo em subestimar sua inteligência parece exposto nos números da última pesquisa Ibope, que mostrou o petista Fernando Haddad com 16 pontos de vantagem sobre José Serra (PSDB) – 49% a 33%.

Serra tinha 37% há uma semana, quando decidiu elevar o tom e trazer a homossexualidade para o centro do debate sobre os problemas de São Paulo, numa tentativa clara de afinar o discurso com o do pastor em guerra declarada por sua candidatura. E, ironia, foi justamente entre os evangélicos que ele mais perdeu apoio (de 37% para 28%) – neste grupo, Haddad tem 52% das preferências.

E por que Haddad ampliou a vantagem em relação à última pesquisa? Porque o eleitor é pouco instruído, alienado sobre o processo do “mensalão” e se contenta com migalhas de programas sociais como o Bolsa Família? Nada disso. A mesma pesquisa mostrou uma melhora da avaliação do petista justamente no centro expandido de São Paulo, onde o eleitor é mais escolarizado e, em tese, não precisa de programas sociais. Haddad chegou mais perto de Serra no conjunto dessas regiões, algo até então inesperado, conforme mostrou a CEO do Ibope Inteligência, Márcia Cavallari, ao colunista José Roberto de Toledo, do Estado de S.Paulo.

Segundo ela, Haddad passou a liderar em todos o segmentos de escolaridade, ampliou a vantagem entre os eleitores com ensino fundamental, manteve a dianteira entre os que cursaram até o ensino médio e empatou com Serra entre os que têm nível superior: 42% a 42%.

Este eleitor, que historicamente tende a rejeitar candidatos petistas em São Paulo, não parece preocupado com o “incentivo” à homossexualidade citada por Malafaia para atacar a campanha petista. Por um motivo simples: este eleitor não está no antigo testamento. Está em 2012. E não vai ser rifando direitos consolidados ao longo de anos, como bem frisou o ativista Toni Reis, presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, que o candidato vai cativar um eleitorado supostamente avesso a mudanças. Nem falando alto com quem insiste em fazer perguntas incômodas. Nem associando o candidato rival a um escândalo ocorrido num tempo em que era professor de política na Universidade de São Paulo.

O eleitor conservador tem as suas preferências, mas identifica de longe o cheiro de oportunismo. Não é tratando-o como idiota que se conseguirá o seu respeito.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Enquanto aqui Serra e acólitos rangem os dentes...no Uruguai...


Uruguai é o segundo país da América Latina a descriminalizar o aborto

O senado uruguaio sancionou nesta quarta-feira (17), a lei que descriminaliza o aborto durante as 12 primeiras semanas de gestação e sob certas condições, o que converte o país no segundo a América Latina em permitir o aborto, depois de Cuba.
A iniciativa foi aprovada com 17 votos contra 31. A maioria se constituiu com 16 senadores do partido governista Frente Ampla, mais o senador Jorge Saravia, ex integrante do governo que integra o Partido Nacional.
A norma chegou ao Senado após aprovação na Câmara dos Deputados em 25 de setembro passado, em uma vitória apertada de 50 votos a favor e 49 contra. O presidente José Mujica anunciou que não vetará a lei, que entra agora em processo de regulamentação. Uma lei similar foi aprovado pelo Congresso uruguaio, mas foi vetado pelo então presidente Tabaré Vázquez, em 14 de novembro de 2008.

Polêmicas

A lei aprovada nesta quarta-feira (17) pelo Senado uruguaio, e que teve também o aval do presidente José Mujica, estabelece que a interrupção da gravidez não será penalizada se for realizada antes das 12 semanas, mas para fazê-lo, a mulher deverá cumprir uma série de requisitos, como passar por uma consulta médica em uma instituição do Sistema Nacional Integrado de Saúde para que uma equipe interdisciplinar avalie a situação.
Entre os argumentos contra o projeto está o de que ele “não despenaliza o aborto, porque o mantém como delito no Código Penal”, segundo afirmou à Télam Alejandra López, codiretora da ONG uruguaia Mulher e Saúde.
A mulher terá então cinco dias para ratificar sua decisão mediante a assinatura de um consentimento informado. É por isso que tanto López como a Coordenadora Aborto Legal (CAL) consideram que o projeto “não despenaliza a interrupção voluntária do aborto, apenas suspende a pena sempre e quando se cumpram com todos os trâmites e prazos estabelecidos nos artigos”.


Enquanto aqui Serra e seus acólitos rangem os dentes...na Argentina...




Autor: Laerte


O fantasma de Schumpeter ronda as eleições brasileiras





Campanha de 2012 parece marcada pela ideia do pensador austríaco, segundo a qual democracia é procedimento manejado pelas elites, que não deve colocar jamais em foco questões estruturais

Por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida*, no Le Monde Diplomatique

Processos de infantilização das campanhas eleitorais sempre ocorrem nas democracias de massa. No esforço para capturar os votos da maioria em sociedades em que o poder político e econômico é detido por uma minoria, algum tipo de manipulação é imprescindível. Referindo-se ao século XIX, quando surgiram as primeiras democracias eleitorais, Eric Hobsbawm observou as afinidades entre a era da democratização e a hipocrisia política.1

Estudiosos sofisticados não apenas teorizaram como justificaram esse processo, considerando-o um componente positivo de qualquer democracia possível. Foi o caso de Joseph Schumpeter, em seu clássico Capitalismo, socialismo e democracia,2publicado em 1942 e hoje mais influente do que nunca. Para esse autor austríaco exilado nos Estados Unidos, é teoricamente incorreto e politicamente arriscado levar a sério a etimologia de democracia (poder do povo). O povo jamais teve ou terá o poder, que sempre foi e será das elites. Nesse sentido, a democracia se define como um conjunto de procedimentos que asseguram a concorrência entre elites organizadas em empresas políticas, ou seja, partidos, que concorrem pela preferência do consumidor político, isto é, o eleitor. Este, como qualquer consumidor, não é um exemplo de racionalidade ao fazer sua escolha. Daí algumas condições para que a democracia prospere, como, por exemplo, um debate político que não coloque questões estruturais em pauta. E que o eleitor deixe o eleito em paz. A este, e não àquele, o mandato pertence.

Essa concepção dita procedimental da democracia, ao traçar uma forte analogia entre a política e o mercado (idealizando este último), contribui para legitimar a superficialização do debate político, o alijamento da maior parte da população de questões mais sérias e a forte presença dos profissionais em propaganda eleitoral. É provável que o fantasma de Schumpeter ronde as atuais eleições brasileiras, especialmente no “horário político” da TV e nas matérias publicadas pela grande imprensa. Até porque, como se trata de pleitos municipais, é mais fácil a disseminação da ideia de que basta um bom gerente para que os principais “problemas” estejam em boas mãos.

Não exageremos nas simplificações. Para além da manipulação – e para que esta funcione em maior ou menor grau –, existem fortes determinações estruturais. É o caso da construção altamente ideologizada de uma comunidade de indivíduos-cidadãos livres e iguais, inclusive quanto ao acesso à informação política, em sociedades marcadas por ferozes relações de exploração e dominação. Uma propaganda do TSE que apresenta o eleitor como “patrão” expressa, de modo enviesado e um tanto confuso, essa construção. Não ficaria mais próximo da vida como ela é apresentar a maioria dos eleitores como “não patrões”?

Essa maioria não patronal é o grande alvo do “horário político”. A ela se dirigem os candidatos travestidos de super-heróis, prometendo, a cada quatro anos, resolver os “problemas” de moradia, assistência médico-hospitalar, creche, esgoto, água tratada, emprego, habitação etc. Só não explicam a origem de seus superpoderes ungidos de espírito público e amor ao próximo, bem como por que, historicamente, tudo isso desaparece assim que se encerra a estação de caça aos votos.

Na vida real, os “patrões” não costumam rasgar dinheiro. Não gastam seu precioso tempo assistindo ao show dos horários eleitorais em que um promete mudar aeroportos ou erguer aerotrens; outro afirma com a maior seriedade que eliminará congestionamentos de trânsito aproximando locais de trabalho e de moradia (e vice-versa); um terceiro garante que nomeará um ministério do nível de ministros (grito socorro?) e que os serviços públicos funcionarão porque ele aparecerá onde não o esperam (Jânio vem aí?).

Nenhum se refere a um aspecto importantíssimo para a aplicação de políticas, inclusive no plano municipal: nessa situação de crise capitalista que se aprofunda e de forte comprometimento das contas nacionais com o pagamento da dívida pública a boa parte dos grandes “patrões” (bancos, fundos de pensão, grandes empresas industriais brasileiras e transnacionais), é quase nula a capacidade do Estado, em seus distintos níveis, de colocar em prática políticas sérias, especialmente sociais. Poupa-se o eleitor desse assunto enfadonho, até porque – reza o saudável senso comum – crise capitalista não é assunto de prefeito ou vereador. Melhor destacar que é amigo da presidenta e do governador; que é administrador experiente e competente; que, assim como foi o maior ministro de tal área, será o maior prefeito. E que, ao contrário do adversário, não é amigo do Maluf.

É claro que existem diferenças políticas entre as candidaturas relevantes, aí se incluindo partidos cuja competitividade eleitoral é ínfima. E, mesmo em seus melhores momentos, as disputas eleitorais filtram e refratam os principais interesses das forças sociais. Mas um importante aspecto comum em uma cidade altamente politizada como São Paulo consiste no peso extraordinário que adquire a interpelação do eleitorado como essencialmente passivo. Lutas populares, nem pensar. Basta o voto (claro que em mim!) para mudar o destino da maioria daqueles a quem a propaganda eleitoral se dirige. Um grande autor, em sua fase juvenil, fez uma crítica mordaz desse duplo mundo, o “celestial”, onde, apagadas as diferenças, todos viram “cidadãos”; e o “terreno”, onde o homem é o lobo do homem.3 Nas grandes metrópoles brasileiras, essa dupla vida nos incomoda quando deparamos com homens e mulheres pobres, expostos ao sol inclemente deste inverno surreal, segurando cartazes de candidatos com os quais não têm nenhuma afinidade político-eleitoral, até porque isso é o que menos importa. Para quem paga, é tirar partido de mão de obra sobrante e, portanto, barata. Para quem segura o rojão, também tanto faz ser placa de empreendimento imobiliário ou de qualquer “político”. Melhor do que “compro ouro”. Para todos nós que passamos de carro, por que se indignar? No melhor dos casos, cumpriremos nosso dever cívico, depositando o voto na urna, e esperamos – quem sabe até cobrando – que as “autoridades” resolvam a situação dessa gente com as quais (situação e gente) nada temos a ver.

Exatamente devido aos impactos que produz no sentido de desorganizar a ação coletiva e autônoma dos dominados – inclusive no que se refere à produção e circulação de informações –, esse processo de “despolitização” não é politicamente neutro. Ao contrário, contribui, em São Paulo ou em São Luís, para a reprodução de um dos padrões de dominação e exploração mais predatórios do planeta.

Também cabe evitar a ideia igualmente simplista de que o esforço de manipulação opera sobre um terreno vazio e passivo (um espécie de folha de papel em branco) e sempre obtém os mesmos resultados. No fundamental, o que está em jogo é, em cada conjuntura, a maior ou menor capacidade de intervenção popular na vida política.

Essa capacidade sofreu drástica redução nos últimos anos. Partidos antes combativos passaram por fortes mutações, ao longo das quais obliteraram seus espaços de participação (inclusive debates internos). Políticas sociais importantes para, em caráter emergencial, melhorar as condições de vida de populações que estavam em extrema miséria tampouco ampliaram aquela capacidade. Ao contrário, reforçaram a percepção de que o governante é um pai (ou uma mãe), com especial carinho para com os mais desprotegidos. E, como vimos, no plano nacional, sem tempo para negociar com a totalidade dos professores das universidades federais envolvidos numa ação coletiva (uma greve) durante mais de cem dias; e, no estadual/municipal, o bárbaro massacre dos moradores do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), também organizados na luta política por direitos constitucionais elementares. Enquanto isso, o especulador não tem do que se queixar, e um candidato “do bem” se vangloria de, quando secretário estadual da Educação, jamais ter deparado com uma greve de professores.

Sorte dos trabalhadores e trabalhadoras que não se metem em confusão, até porque esse processo de despolitização segue pari passucom o de judicialização da vida política. Mas por que nos preocuparmos? Afinal, a essência da maioria dos candidatos pode se resumir no refrão de um deles: passa o tempo todo pensando nos pobres.

Com essa drástica redução da capacidade de ação popular coletiva, não é mais necessário, como foi em 1989, que um importante dirigente industrial, Mário Amato, alerte que, caso determinado candidato vencesse, 800 mil empresários abandonariam o Brasil; ou, no pleito seguinte, outro peso pesado dos industriais advertisse que a eleição do mesmo candidato seria o equivalente a uma bomba de hidrogênio despencar sobre este país abençoado por Deus. Na campanha eleitoral de 2002, o marqueteiro-mor do mesmo candidato, ao coordenar importantes figuras políticas na feitura de uma propaganda televisiva, disse para todos erguerem a mão em forma de L. “A mão direita ou a esquerda?”, perguntou alguém. “Como quiser”, respondeu o pragmático guru, “quem for de direita, com a direita; quem for de esquerda, com a esquerda.”4 Não por mera coincidência, assinou-se a “Carta aos brasileiros”; apesar de algumas rusgas passageiras, houve forte apoio empresarial; e o partido concluiu sua passagem para a idade da razão.

Os impactos “despolitizadores” sobre os processos induzem a grande maioria das classes populares a perceber as eleições como o único meio legítimo de fazer política. Essa contração foi acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem” principalmente na televisão e no rádio (as chamadas redes sociais ainda engatinham nesse processo). Lá chegando, incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo abertamente conservador, transforma tudo em entretenimento. Em outros termos, o centro da atividade eleitoral mais visível se transfere para meios de comunicação tremendamente oligopolizados e que reproduzem, na imensa maioria das transmissões, (novelas, noticiários, propagandas) processos de infantilização. Lutas pelo aprofundamento da participação política no Brasil requerem democratizar e diversificar os meios de comunicação.

Quando Schumpeter escreveu seu célebre livro sobre democracia, o desfecho da Segunda Guerra Mundial, fortemente articulada a uma crise do capitalismo, ainda estava incerto e restavam poucas democracias liberais no planeta. Em um livro schumpeteriano bem mais simplista, A terceira onda, Samuel Huntington se congratulava, em 1993, pelo espraiamento desse regime por grande parte do planeta.5Todavia, no atual contexto de profunda crise capitalista, tendem a aumentar os desencontros entre esse regime e a participação popular. Se Schumpeter e tantos outros negam a possibilidade do poder do povo, diversos estudiosos, como Slavoj Žižek,ao abordar uma questão bem mais específica, recorrem a uma expressão cada vez mais em voga para nos referirmos a essa reviravolta sinistra: a democracia se volta contra os povos.6

Diante dos riscos de que o modelo schumpeteriano de democracia chegue ao seu esgotamento no bojo da atual crise, é urgente inventar novas e profundas formas de efetiva participação popular na política.

Resta saber se isso é possível sem reinventar a sociedade.

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*Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida é professor do Departamento de Política da PUC-SP

Ilustração: Daniel Kondo
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1 E. Hobsbawm, A era dos impérios, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1988, p.130.

2 J. A. Schumpeter, Capitalismo, socialismo e democracia, Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1961.

3 Karl Marx, A questão judaica,Boitempo, São Paulo, 2010.

4 A sequência aparece no documentário Entreatos,de João Moreira Salles.

5 Samuel Huntington,A terceira onda: a democratização no final do século XX, Ática, São Paulo, 1994.

6 Slavoj Žižek, “Democracy versus the people. A new account of Haiti’s recent history shows how the genuinely radical politics of Lavalas and its”, New Statesman, 14 ago. 2008.


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O valor sem medida dos afetos e o comum




Um relato singular sobre o valor afetivo das coisas, a maneira que escapa ao controle de qualquer forma de medição e de como isso é a chave para compreender e combater o capitalismo atual

Por Bruno Cava, no Quadrado dos Loucos

Na minha escola, era proibido jogar bola no pátio do recreio. As bolas haviam sido banidas pela direção. Mas a gente dava um jeito. Costumávamos levar o lanchinho em tapauer, já que as lancheiras eram “coisa de menina”. Os recipientes plásticos tinham uma dupla função. Depois de comer, fechávamos a tampa e eles faziam as vezes de bola. Um dia, fui parar na direção por isso. A diretora me fez duas perguntas. “É seu?” E depois: “menino, os pais não te ensinaram a dar valor às coisas?” Perdi a minha bola. Foi o meu primeiro contato explícito com o valor. Mais de uma década depois, fiz faculdade de engenharia. Uma das matérias que me encantava, e a única que acabei me destacando, foi matemática. Cursei obrigatórias e eletivas: cálculo diferencial e integral, álgebra, estatística, cálculo estocástico e econometria. No final, contente de avançar no fluxograma do curso, fiquei surpreso quando um professor me disse: “Agora você pega tudo isso, vai pro mercado financeiro e fica rico.” Por estranho que pareça, tive uma sensação parecida como quando fora repreendido na escola.

Dar e tirar valor

Depois do episódio da tapauer, fui educado que as coisas têm um valor em si mesmas. Um valor objetivo. Esse valor é representado por um número de unidades da moeda. O valor é medido pelo dinheiro. Embora o preço da coisa varie, existe um valor médio. É que as oscilações de oferta e demanda acabam convergindo, ao fim e ao cabo, num valor intrínseco. O dinheiro, por sua vez, se ganha com trabalho. O trabalho da gente também tem um valor. Esse valor igualmente varia, mas no final sucede uma média. Quem define essas médias, o preço das coisas e do trabalho, é o mercado. A nossa economia funciona pela lógica do mercado, de maneira que cada um receba o seu. Cada um possa ter acesso aos valores que faz jus. Para corrigir as distorções, existe o estado. O estado regula o mercado. O mercado em condições saudáveis exprime o equilíbrio da circulação dos valores na sociedade. Regular o mercado significa evitar que os preços desequilibrem o valor intrínseco das coisas e do trabalho, mantendo a ordem econômica. O dinheiro, portanto, permite medir simultaneamente o valor das coisas e o valor do nosso mérito, esforço e qualificação enquanto trabalhadores. A medida do dinheiro ordena tudo.

Mas uma coisa ficou latejando na minha cabeça desde a escola. Estou falando de um detalhe na segunda pergunta da diretora, depois que ela estabeleceu que a propriedade da tapauer era minha (ou dos meus pais). Ela falou em dar valor às coisas. Opa. Se as coisas têm um valor intrínseco, por que ela me exigiria dara elas algo? Por que as coisas afinal precisariam de mim, deste menino desobediente, para ter valor? Tem alguma coisa que não fecha. Talvez o valor não seja tão objetivo assim.

Volto a pensar no meu tapauer-bola, todo riscado das peladas do pátio, quase destruído. Qual era o valor daquilo pra mim? O valor do tapauer era afetivo. Eu estava me lixando pra quantidade de trabalho médio incorporada nele. Nem exprimia pra mim algum dinheiro que eu pudesse obter vendendo ou trocando a coisa. O tapauer não representava uma medida quantitativa. Era pra jogar bola ora! Uma atividade social e lúdica. Reunia os cupinchas no preciosíssimo tempo livre, entre as aulas sonolentas; um entreato de liberdade do tempo confinado e disciplinado pela escola. No tapauer, existia um valor subjetivo, relacional, nem por isso menos real, um valor todavia não reconhecido pelo poder constituído. A diretora não podia aceitar o valor afetivo do tapauer. Esta me educava a dar-lhe um outro tipo de valor. Que não era só valor de troca (comprometido com a deterioração), mas também valor de uso (guardar o alimento, sua função socialmente determinada). Mas os meninos recusávamos os valores de troca e de uso que nos eram cobrados a reconhecer. Nesse processo insurgente, desafiávamos não só a disciplina da escola, mas também a estrutura social íntima de nosso mundo. Contestávamos na práxis a lógica do valor. E éramos mais ricos por isso.

Fetiches e afetos

Quem sabe, o raciocínio valha pra todas as coisas. Todas com uma dimensão afetiva. As relações que crio com os outros pegam nas coisas. Sabe disso quem manuseia roupas de entes queridos falecidos, tão impregnadas de subjetividade. Tudo isso que nos faz sentir de tantos modos diferentes. Vale inclusive para as relações que crio comigo mesmo (o que não deixa de ser um outro). O valor medido por dinheiro não apreende a singularidade do que está em jogo. Aquela tapauer embutia um mundo inacessível para a métrica padrão. O valor afetivo se compõe de uma miríade de afetos que compartilhamos ao longo da vida. Com isso, na verdade, as coisas se abrem. Tornam-se peças de um quebra-cabeças maior, sem objetividade intrínseca. Os objetos se interconectam aos sujeitos na experiência. Assim, só pode haver objetos essencialmente parciais, que anseiam ontologicamente pelo preenchimento afetivo; bem como sujeitos parciais, que afetam porque não se bastam dentro de si.

No Capital, Marx fala do fetiche da mercadoria. No século 19, a antropologia inventou o conceito de fetiche para comprovar, agora com vezo científico, a inferioridade dos outros povos. Eram primitivos porque não conseguiam separar os objetos dos sujeitos. Viam entidades, potências míticas e qualidades sensíveis entranhadas em todo lugar. Eram incapazes de enxergar a coisa como coisa, o seu valor interno enquanto objeto separado do restante. Estavam presos a um mundo fetichizado. Marx vai dizer que os brancos ocidentais também vivem o seu fetiche. Conferem às coisas uma qualidade incorpórea que jamais esteve lá “objetivamente”, e a partir do que se relacionam e organizam a sociedade. Precisamente, o valor. Tal credo se arraigou tanto nessa tribo que a maioria o toma por inquestionável. Como se, de fato, as coisas tivessem um valor objetivo, e a economia não passasse da movimentação mais ou menos espontânea, mais ou menos organizada, dos inumeráveis valores sociais. Como se o dinheiro pudesse representar o lugar, o tempo e o direito de cada qual, segundo a ordem cósmica da economia capitalista. Como se o mercado fosse dotado do atributo demiúrgico de atribuir a medida a todas as coisas. O ápice da naturalização do valor se dá com a propriedade. Isto fica claro quando a propriedade é de alguma forma problematizada, ao que se seguem o terror, o pânico, a ira dos proprietários, como se a própria harmonia universal tivesse sido ameaçada.

O leite que bebo no café da manhã passou por um longo percurso, da fazenda à fábrica de processamento, à embalagem e controle de qualidade, ao sistema de distribuição e varejo. Não posso ver o circuito produtivo por trás do leite que chega prontinho na prateleira. Quando passeio pelo shopping, tampouco posso saber de onde vêm as roupas na vitrine. Se foram confeccionadas por bolivianas em regime de trabalho semiescravo na Zona Norte de São Paulo, por adolescentes púberes em sweatshops na Mauritânia, ou made in China. Não fui educado pra me preocupar com isso. O que deve importar é a etiqueta, com que posso avaliar se o produto vale o preço. Mil e uma operações de trabalho foram abstraídas, e junto dessa abstração uma montanha de relações entre patrão e empregado, exploratórias, racistas, sexistas, insalubres, violentas, toda a organização do trabalho. O problema do valor não está só em quantificar o essencialmente inquantificável, mas também apagar uma relação social desigual. Apagá-la convenientemente.

A proposta socialista

Nesse contexto, uma proposta que se vê por aí consiste em racionalizar a lógica do valor. É medir criteriosamente o quanto vale cada coisa, seu justo preço. Esse valor pode ser calculado pelo tempo de trabalho incorporado na coisa, o tempo socialmente necessário para a sua produção. Segundo essa lógica, o valor do trabalho também pode ser medido segundo critérios racionais. É preciso desenvolver essa ciência, que calcule cuidadosamente a equivalência entre as coisas e o trabalho. Cada ofício numa escala de valorização, um coeficiente xisque você multiplica pelo tempo ípsilon efetivamente trabalhado, tendo como resultado o seu salário. O preço do leite passa a embutir os custos envolvidos no conjunto de operações produtivas, da vaca até a mesa. As roupas igualmente são dotadas de um valor que faça jus ao trabalho dos envolvidos, sem margem para o sobrepreço. Remuneram-se, com justiça, os trabalhadores envolvidos, pagam-se as cotas devidas e cientificamente justificadas, sem gerar lucro para ninguém. A lógica do valor passa a ser aplicada por uma razão superior, com critérios científicos, regulando o mercado de modo que não sucedam desequilíbrios e injustiças. Essa é, grosso modo, a proposta socialista. Instaurar uma razão planificadora da produção, um estado-plano, que decida o que produzir, como, onde, quanto e para quê. Foi tentado algo parecido, em alguns momentos, no socialismo real do Leste Europeu e URSS. Atribuíam-se metas, cotas, tabelas, padrões, fórmulas, toda uma matematização para que a economia funcionasse ordenadamente, com base nos valores de uso. Sem assim concentrar lucro, renda, propriedade, os males capitalistas, mediante uma cadeia de equivalências estritamente racional e metódica.

Fico pensando, nessa sociedade, se poderíamos jogar bola com o tapauer na escola. É bem provável que eu teria sido repreendido da mesma maneira. Talvez a diretora alterasse a primeira pergunta. Em vez do “É seu?”, diria, em tom moral, “Você sabe que foi o Povo quem fez isso?”. Ou, mais sinistra: “Você sabe que isso é do Estado?”. A segunda pergunta permaneceria igual, sugerindo que não dei o mesmo valor que o Povo ou o Estado dão. Tenho a suspeita que o socialismo real fracassou não pela falta de concorrência ou motivação produtiva, essas bobajadas que contam pra gente, como se no mundo capitalista os peixes grandes não colaborassem promiscuamente entre si, forjando o ideal de competividade apenas para a base, para que as pessoas passassem a digladiar-se tolamente umas contras as outras, na arena de trabalho, em vez de se aliarem todas contra os patrões e o sistema injusto. É possível ponderar que o socialismo real tenha fracassado por continuar considerando o valor como objetivo, no que não difere muito do velho capitalismo. Ainda que esse valor objetivo seja chamado “valor de uso”. Busca-se erigir uma sociedade unitária, disciplinada, harmônica, comportada. Porém, fechada a novos usos, aos atributos sensíveis, às dinâmicas afetivas e às potências míticas, a tudo isso que a vida é mais, além das tabelas e fórmulas matemáticas, além da lógica do valor. Esses socialistas seguiram Marx ao pé da letra. Mas ao combater o fetiche negativo da mercadoria, mataram o fetiche positivo. Alienaram-se da magia da vida. Perderam de vista o excesso de desejo e imaginação que faz as pessoas plenamente livres. Numa palavra, o imensurável. O que não tem nem pode ter medida.

O capitalismo afetivo

O próprio capitalismo se adaptou para captar o valor afetivo. Os capitalistas não fizeram isso porque sejam bonzinhos, mas porque é mais eficiente e lucrativo fazê-lo. Não consigo afastar a ideia que foi assim que o capitalismo real superou o socialismo real. A sociedade socialista proibia múltiplos usos e liberdades. Retificava todos conforme a reta razão da ciência e do estado. Aplicava uma moral de bom cidadão socialista, uma moral pouco permeável em qualquer lugar que se olhasse. Já a sociedade capitalista, mais maleável e transigente, integrava os excedentes e desvios em sua própria dinâmica. Se uma se preocupava em negar o desejo e proibir o excesso, a outra preferia governá-los.

Querem ouvir rock´n roll e dançar moonwalk? ótimo, venderemos todo o tipo de música. Querem agitar a vida sexual? ótimo, eis uma cultura pornô, sex shops, michês e prostitutas de luxo. Querem conhecer a natureza selvagem, entrar em contato com o cosmos, defender o verde da floresta contra as forças malignas do progresso? Ecoturismo, esoterismo, ecologismo! Querem a revolução? venderemos camisetas de Che Guevara… Pouco importa o quê, it´s business stupid.

Lá pelos anos 1960 e 1970, o capitalismo sofreu uma grande transformação. O novo espírito do capitalismo funciona a partir do valor afetivo. Sua métrica muda completamente. Opera a partir do imensurável. Os cabeças do novo capitalismo reconhecem não existir razão intrínseca nas coisas ou no trabalho, do que se poderia atribuir um valor objetivo. O valor não tem mais como ser medido, por exemplo, pelo tempo de trabalho incorporado nele, por qualquer outra aritmética meramente quantificadora. O valor afetivo rigorosamente não tem preço, não pode ser submetido à velha lógica dos valores de troca e de uso. Nesse cenário, não seria irracional uma propaganda televisiva mostrar meninos saudáveis e alegres jogando futebol com tapauers no pátio da escola. Claro, nessa hipótese, seriam tapauers diferenciados, recipientes adaptados ao multiuso, com um design especial para famílias descoladas. E é esse componente afetivo que predominará na definição do preço, e não admiraria se esses tapauers modernos custarem bem mais caro. A atribuição de valor a um tênis pouco tem a ver com o circuito produtivo de confecção e distribuição. Tem muito mais a ver com a marca, a eficácia da publicidade, as imagens e os afetos que os publicitários consigam coalhar como parte integrante do produto. Minha escola estava mesmo desatualizada. O próprio capitalismo já aprendeu a dar valor afetivo às coisas.

Isto não significa que o valor desapareça como fetiche hoje. Mas perde qualquer ambição de representar objetivamente as coisas e o trabalho. A medida perde a fixidez, se torna um limiar. A economia política clássica e a neoclássica entram em crise. É o canto do cisne das pretensões liberais clássicas, a aparição do neoliberalismo. O neoliberalismo exprime o tipo de governo de quando o capitalismo desiste da lógica quantitativa do valor. Esse novo modo de governar se regula pelas finanças. Não que as finanças sejam algo novo no capitalismo. Na realidade, a relação de débito e crédito vem desde o neolítico precedendo a própria existência da moeda, e o sistema bancário existe pelo menos desde os cavaleiros templários, no século 12. No entanto, agora, o sistema financeiro se reveste de absoluta primazia. É ele quem passa a mediar o valor. Menos como uma cúpula superpoderosa nalgum lugar específico, do que como uma mediação interna a todas as operações econômicas. O crédito, o investimento e os juros compõem inextricavelmente o funcionamento econômico. A vida é financeirizada.

Comunismo da desmedida

As finanças são o único modo de conviver com a ruptura da medida. As bolsas de valores flutuam junto com as incertezas, as nebulosas, as ondas de choque e as vertigens da nova economia. Bilhões se criam aparentemente do nada, outros bilhões evaporam, fábulas mudam de mãos a altíssimas velocidades. O valor se dissolve como fluxo. E flui sem parar sobre as fronteiras nacionais e regionais. Nesse modo de governar, não se pretende mais gerenciar a equivalência para manter o equilíbrio do todo econômico. Agora, o desafio é governar a não-equivalência, assumindo a turbulência inerente do mundo da produção. Porque não tem mais receita. Não tem outro jeito de continuar sustentando a desigualdade e a injustiça. Então é caso de governar a instabilidade mesma, garantir o valor em condições de vazamentos alucinados de produtividade. E assim desconjurar a turbulência e controlar o seu assanhamento político: o tumulto. A governabilidade depende da capacidade de administrar uma crise tornada permanente. O neoliberalismo vem junto do hard power contra a disseminação global do tumulto. Por outro lado, as pretensões racionais e racionalizantes do socialismo e das esquerdas se mostram nostálgicas, obsoletas. Hoje, as forças produtivas se acham muito mais sofisticadas, e não existe marcha ré na história. Em vez do plano homogêneo que o dinheiro pode medir e o mercado organizar, como nos sonhos fordistas do pós-guerra; sucedem inúmeros planos entrecruzados, heterogêneos, incompossíveis. Muitas esquerdas sonham com um futuro passado.

No rodamoinho financeiro e suas bolhas, se torna indispensável uma outra matemática. Outra natureza da medida, outras premissas e outras variáveis, que levem em conta a imensurabilidade, a irreversibilidade, a heterogênese, a homeorrese. A história da matemática marcha ombro a ombro com o desenvolvimento financeiro. A econometria se esforça para compreender mercados multidimensionais, lógicas não-lineares, fractais, movimentos brownianos, processos de Wiener, teoria do caos, cadeias de Markov, cálculo estocástico. Não é por acaso. E também não foi por acaso que meu professor (curiosamente, ele se chamava Milioni) disse que eu poderia ficar rico com a econometria. Eu costumava estudar matemática pra entender coisas como o conjunto de Mandelbrot ou o paradoxo das paralelas, não me ocorrera que poderia servir para trabalhar para o sistema financeiro. Deja vu. Era novamente o menino fazendo um uso inútil, desperdiçando as coisas com seus amiguinhos não-enquadrados. Comecei a pensar, então, se não era possível resistir do mesmo modo clandestino e subversivo quando éramos crianças. Organizar com os cupinchas, na alegria e desobediência, uma práxis. Quer dizer, jogar futebol matematicamente, além da imposição do valor pelo sistema financeiro e o neoliberalismo. Nem tanto renegar o poder de abstração e o efeito de liquefação das finanças, mas roubar-lhe o fogo, numa ação coletiva dentro e contra o próprio sistema.

Hoje vejo como essa pergunta não se orienta por algo a fazer. A revolução e o comunismo não são algo ainda a ser feito. Projetá-los num futuro bloqueado é tão impotente quanto identificá-los num passado frustrado. É que essa desmedida já está sendo realizada coletivamente por muitos grupos, dispersos, imanentes, com maior ou menor grau de ânimo rebelde. Organizam-se produtivamente a partir do valor afetivo: maximizam afetos ativos e bons encontros, minimizam os passivos e ruins. Resistem quando necessário. Reexistem sempre. Do menos fazem o mais: na favela, no devir índio, na internet bárbara. Recusam a imposição do valor, noutras palavras, o puro mando da forma de governo contemporânea. Pautam-se mais pelo compartilhamento que pelas trocas, pela cooperação do que concorrência, pela paridade e camaradagem em vez da verticalização. Reafirmam-se no singular. Conceitualmente, podem ser a multidão de que fala Negri, as máquinas nômades de Deleuze e Guattari, o povo antropófago por vir, a classe selvagem sem nome. Essas experiências reafirmam o propósito de viver além do valor. Anseiam por um viver bem. Propugnam por uma espécie de comunismo pós-moderno e heterodoxo. Vivem na pele, com o que se relacionam ao infinito, uma insuficiência intensiva e qualitativa.

Mas aqui não cabe, esquematicamente, opor o quantitativo ao qualitativo, o produto ao processo, o extensivo ao intensivo, a normalidade vazia à superabundância de uma vida vivida com coragem e generosidade. Queremos o pátio para nós e não aceitaremos mais as injunções da diretora. Queremos a matemática avançada, o cálculo estocástico, o sistema financeiro como um todo, todos seus recursos e artimanhas. É reapropriar tanto a riqueza social, quanto o poder líquido de mobilizá-la em suas infinitas escalas e níveis. Queremos autonomia para produzir sem valor. Queremos tudo, porque é tudo nosso. Quero a bola de volta.

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* Devo doses cavalares deste ensaio ao livro O casaco de Marx (Peter Stallybrass, trad. Tomaz Tadeu, Autêntica), além dos 3 livros do Capital e dosGrundrisse, de Marx, e toda a crítica à teoria do valor elaborada por Antonio Negri e os autonomistas operaístas, como Christian Marazzi, Carlo Vercellone, Andrea Fumagalli, Giuseppe Cocco e Gigi Roggero.
** Agradeço ainda à diretora da escola e ao professor de econometria.