Por Janaine Aires
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Acompanhar os portais da Paraíba tem sido uma tarefa difícil para aqueles que têm o estômago e coração fracos. Matérias recentes de conteúdo e imagens chocantes evidenciam a falta de bom senso de um jornalismo que, pelo que se vê, topa tudo para ampliar os números de acessos ao seu endereço.
Os exemplos desta “modalidade” jornalística são tantos, mas talvez ainda seja necessário um grande artigo científico para descrevê-la. No tal do “jornalismo perícia” é quase impossível saber se as imagens que “ilustram” a notícia foram tiradas pelo perito criminal, e irão compor o processo de investigação, ou pelo repórter fotográfico contratado pelo veículo de comunicação, para “bem informar” o internauta. O que faz com que esse “tipo” de jornalismo esteja num nível maior (ou não seria menor?) do espreme que sai sangue sensacionalista. Não basta apenas noticiar um assassinato: é preciso expor o sangue, o buraco do tiro, os olhos semiabertos de um corpo ainda quente.
O fato de a imprensa paraibana estar sendo o vetor deste conteúdo grotesco está fundamentado, obviamente, em uma noção equivocada do que é bem informar e estar bem informado. Dessa forma, tanto o jornalista quanto o espectador estão envolvidos no equívoco. Porém, não se trata apenas de uma concepção errada da boa informação. Neste caso, estamos falando também da exploração comercial dos crimes que vitimaram sujeitos, geralmente do sexo masculino, pobres e negros, apresentada como a exposição dos fatos de um jornalismo que não esconde a verdade do povo.
Vítimas são pobres
É assustador perceber que grandes veículos de comunicação, como o sistema Correio, criaram uma verdadeira fábrica (falamos de uma rotina produtiva que relaciona uma rede de informantes e também de autoridades) para explorar estes acontecimentos, e que a exploração comercial deste conteúdo é tamanha que pipocam blogs e portais especializados no estado. Se na TV, as emissoras têm o dever de esfumaçar a imagem para poupar o telespectador da cena, na internet os portais abusam da tag “fotos chocantes” para veicular este tipo de conteúdo tranquilamente. A justificativa é de que, na rede mundial de computadores, a imagem só invadirá sua casa se você quiser. Contudo, os motivos para se preocupar com esta forte evidência de banalização da vida são muitos.
O primeiro deles é de que a justiça não assusta mais. A TV Correio, filiada à Rede Record, por exemplo, recebeu uma ação que a multa em 5 milhões de reais e ameaça a legitimidade de sua concessão em outubro de 2011 por ter veiculado na íntegra cenas de um estupro de uma adolescente. De lá para cá, pouca coisa mudou. O portal da empresa é um dos principais adeptos da prática do “jornalismo perícia”. No dia 29 de dezembro de 2011, às 9h54, o portal veiculou as imagens de um bebê morto asfixiado e enterrado em uma cova rasa. A criança, que não era desejada pela mãe, foi encontrada depois que cachorros desenterraram o corpo.
Embora a notícia seja chocante por si só, não é suficiente relatar o caso – a redação disponibilizou as imagens do crime. Voltando um pouco no tempo, no dia 26 de outubro, o mesmo portal mostrou os pedaços do corpo de um detento assassinado e esquartejado no presídio. O leitor pôde ver suas vísceras, sua cabeça e suas pernas e braços expostas em fotografias, provavelmente tiradas por um fotógrafo amador.
“A infelicidade de um crime não torna o corpo da vítima objeto do domínio público para que os réus dele possam servir-se com fins lucrativos.” A frase dita por Duciran Farena, procurador que subscreveu a ação contra o Sistema Correio de Comunicação, é fundamental para refletirmos sobre o desrespeito dos veículos para com as vítimas expostas. Na sua grande maioria, trata-se de vítimas pobres e cujos familiares poucos recursos terão para defendê-las, caso o costumeiro julgamento antecipado esteja equivocado ou mesmo a exposição da imagem do familiar naquela situação incomode.
Imprensa finge não saber e compactua com a polícia
Além do julgamento precipitado do tribunal da mídia daqueles que são enquadrados pela polícia por algum conflito com a lei e ainda estão vivos para se defender (mesmo que seja em vão), a mídia não tem poupado julgamentos daqueles que só por estarem mortos já são vítimas, sendo criminosos ou não. O portal MaisPB expôs, no dia 26 de dezembro, às 13h42, as imagens do ex-presidiário e morador de rua conhecido como “Neguinho”, executado a tiros, possivelmente por ter envolvimento no roubo de computadores da Casa da Cidadania, localizada próximo ao Centro Histórico de João Pessoa. A chamada da matéria é sarcástica: “Falta de sorte – Imagens fortes – ladrão tenta fugir após roubo e cai de prédio em João Pessoa.”
É interessante pontuar que esta abordagem raríssimas vezes é aplicada em casos nos quais as vítimas tenham poder aquisitivo maior. A imprensa insiste em tratar corpos de homens e mulheres da periferia, excluídos, negros, “das classes perigosas”, como objetos do domínio público do qual o jornalismo pode usufruir simplesmente pelo fato de que estas vítimas provavelmente não terão como processá-los. Melhor pensar que seja por isso mesmo. Imagine se a real justificativa seja motivada pela perspectiva de que, por serem pobres e possivelmente delinquentes, é natural que devam morrer?
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Acompanhar os portais da Paraíba tem sido uma tarefa difícil para aqueles que têm o estômago e coração fracos. Matérias recentes de conteúdo e imagens chocantes evidenciam a falta de bom senso de um jornalismo que, pelo que se vê, topa tudo para ampliar os números de acessos ao seu endereço.
Os exemplos desta “modalidade” jornalística são tantos, mas talvez ainda seja necessário um grande artigo científico para descrevê-la. No tal do “jornalismo perícia” é quase impossível saber se as imagens que “ilustram” a notícia foram tiradas pelo perito criminal, e irão compor o processo de investigação, ou pelo repórter fotográfico contratado pelo veículo de comunicação, para “bem informar” o internauta. O que faz com que esse “tipo” de jornalismo esteja num nível maior (ou não seria menor?) do espreme que sai sangue sensacionalista. Não basta apenas noticiar um assassinato: é preciso expor o sangue, o buraco do tiro, os olhos semiabertos de um corpo ainda quente.
O fato de a imprensa paraibana estar sendo o vetor deste conteúdo grotesco está fundamentado, obviamente, em uma noção equivocada do que é bem informar e estar bem informado. Dessa forma, tanto o jornalista quanto o espectador estão envolvidos no equívoco. Porém, não se trata apenas de uma concepção errada da boa informação. Neste caso, estamos falando também da exploração comercial dos crimes que vitimaram sujeitos, geralmente do sexo masculino, pobres e negros, apresentada como a exposição dos fatos de um jornalismo que não esconde a verdade do povo.
Vítimas são pobres
É assustador perceber que grandes veículos de comunicação, como o sistema Correio, criaram uma verdadeira fábrica (falamos de uma rotina produtiva que relaciona uma rede de informantes e também de autoridades) para explorar estes acontecimentos, e que a exploração comercial deste conteúdo é tamanha que pipocam blogs e portais especializados no estado. Se na TV, as emissoras têm o dever de esfumaçar a imagem para poupar o telespectador da cena, na internet os portais abusam da tag “fotos chocantes” para veicular este tipo de conteúdo tranquilamente. A justificativa é de que, na rede mundial de computadores, a imagem só invadirá sua casa se você quiser. Contudo, os motivos para se preocupar com esta forte evidência de banalização da vida são muitos.
O primeiro deles é de que a justiça não assusta mais. A TV Correio, filiada à Rede Record, por exemplo, recebeu uma ação que a multa em 5 milhões de reais e ameaça a legitimidade de sua concessão em outubro de 2011 por ter veiculado na íntegra cenas de um estupro de uma adolescente. De lá para cá, pouca coisa mudou. O portal da empresa é um dos principais adeptos da prática do “jornalismo perícia”. No dia 29 de dezembro de 2011, às 9h54, o portal veiculou as imagens de um bebê morto asfixiado e enterrado em uma cova rasa. A criança, que não era desejada pela mãe, foi encontrada depois que cachorros desenterraram o corpo.
Embora a notícia seja chocante por si só, não é suficiente relatar o caso – a redação disponibilizou as imagens do crime. Voltando um pouco no tempo, no dia 26 de outubro, o mesmo portal mostrou os pedaços do corpo de um detento assassinado e esquartejado no presídio. O leitor pôde ver suas vísceras, sua cabeça e suas pernas e braços expostas em fotografias, provavelmente tiradas por um fotógrafo amador.
“A infelicidade de um crime não torna o corpo da vítima objeto do domínio público para que os réus dele possam servir-se com fins lucrativos.” A frase dita por Duciran Farena, procurador que subscreveu a ação contra o Sistema Correio de Comunicação, é fundamental para refletirmos sobre o desrespeito dos veículos para com as vítimas expostas. Na sua grande maioria, trata-se de vítimas pobres e cujos familiares poucos recursos terão para defendê-las, caso o costumeiro julgamento antecipado esteja equivocado ou mesmo a exposição da imagem do familiar naquela situação incomode.
Imprensa finge não saber e compactua com a polícia
Além do julgamento precipitado do tribunal da mídia daqueles que são enquadrados pela polícia por algum conflito com a lei e ainda estão vivos para se defender (mesmo que seja em vão), a mídia não tem poupado julgamentos daqueles que só por estarem mortos já são vítimas, sendo criminosos ou não. O portal MaisPB expôs, no dia 26 de dezembro, às 13h42, as imagens do ex-presidiário e morador de rua conhecido como “Neguinho”, executado a tiros, possivelmente por ter envolvimento no roubo de computadores da Casa da Cidadania, localizada próximo ao Centro Histórico de João Pessoa. A chamada da matéria é sarcástica: “Falta de sorte – Imagens fortes – ladrão tenta fugir após roubo e cai de prédio em João Pessoa.”
É interessante pontuar que esta abordagem raríssimas vezes é aplicada em casos nos quais as vítimas tenham poder aquisitivo maior. A imprensa insiste em tratar corpos de homens e mulheres da periferia, excluídos, negros, “das classes perigosas”, como objetos do domínio público do qual o jornalismo pode usufruir simplesmente pelo fato de que estas vítimas provavelmente não terão como processá-los. Melhor pensar que seja por isso mesmo. Imagine se a real justificativa seja motivada pela perspectiva de que, por serem pobres e possivelmente delinquentes, é natural que devam morrer?
Além disso, cabe resguardar o papel da polícia neste contexto. É ela que permite, apresenta as vítimas e os detidos e é ela a voz de autoridade para observar os fatos. A imprensa finge não saber e compactua com o esquema. A polícia, para mostrar serviço para a população, apresenta os “delinquentes” pobres e a imprensa do espreme que sai sangue agradece pela garantia do seu pão de cada dia sem questionar ação da polícia e as políticas de segurança pública e mesmo sem investigar profundamente esta realidade. Sem dúvidas, é preciso destacar que não é a mídia responsável pela violência, pelos crimes. E sim, o sistema social e econômico em que vivemos. Mas é ela o principal instrumento para nos fazer acreditar que a paz social será resultado de uma mera investigação criminal.
Não se trata de censura
Não há nenhuma ferramenta pública que registre a produção da mídia no Brasil. Muito embora a TV desempenhe papel central na história do nosso país, ainda não há nenhum mecanismo de registro do material veiculado que seja de domínio público, o que faz com que o acesso ao material produzido seja atravessado pelos interesses das empresas que só o disponibiliza se quiserem, tendo possibilidades de alterá-lo, inclusive, o que torna frágeis os mecanismos de controle e de cobranças de direitos do telespectador e de resposta. Na internet, a situação é diferente, mas ainda assim é preocupante, já que as informações podem ser apagadas caso a administração do portal achar conveniente. Porém, a fragilidade para questionar esta abordagem não é grande somente porque podemos não ter as gravações daquilo que assistimos, mas também porque já nos acostumamos de que é assim mesmo, e pronto.
A quem devo recorrer se me sentir prejudicado pela exposição de um parente assassinado? A empresa de comunicação vai sugerir que você mude de canal, não acompanhe mais o portal, não compre o jornal. Será esta a democracia da mídia?
O que torna ainda mais frágil a capacidade de intervir contra é que há uma estrutura econômica e política que sustenta este tipo de jornalismo. Existe audiência e há uma rotina que permite que este conteúdo possa ser capturado. Não se trata aqui de censurar o acesso ao espaço do crime, mas preservar, por uma questão de respeito até, a cena, o morto, o desespero da família. Estranho pensar que existem anunciantes que topem apoiar este tipo de conteúdo em tempos em que estar bem no mercado rima com a tal da responsabilidade social.
Fenômeno preocupante
Nas escolas de comunicação, muitos têm os jornalistas que adotam esta abordagem como os seus favoritos. A formação do comunicador não é suficientemente crítica com esta realidade. Investe-se cada vez mais nesta abordagem, inclusive dentro da sala de aula. Quem estudou Comunicação e não ouviu algum professor dizer que “é assim mesmo! É disso que o povo gosta”? Por isso, não adianta apontar a existência desta abordagem como resultado do período de não obrigatoriedade do diploma. O jornal Já (exemplar paraibano de uma abordagem de sucesso no Brasil. Iguais a ele, podemos citar o Meia Hora), por exemplo, é editado por profissionais competentes e formados e é aquilo que é.
Não se trata de censura
Não há nenhuma ferramenta pública que registre a produção da mídia no Brasil. Muito embora a TV desempenhe papel central na história do nosso país, ainda não há nenhum mecanismo de registro do material veiculado que seja de domínio público, o que faz com que o acesso ao material produzido seja atravessado pelos interesses das empresas que só o disponibiliza se quiserem, tendo possibilidades de alterá-lo, inclusive, o que torna frágeis os mecanismos de controle e de cobranças de direitos do telespectador e de resposta. Na internet, a situação é diferente, mas ainda assim é preocupante, já que as informações podem ser apagadas caso a administração do portal achar conveniente. Porém, a fragilidade para questionar esta abordagem não é grande somente porque podemos não ter as gravações daquilo que assistimos, mas também porque já nos acostumamos de que é assim mesmo, e pronto.
A quem devo recorrer se me sentir prejudicado pela exposição de um parente assassinado? A empresa de comunicação vai sugerir que você mude de canal, não acompanhe mais o portal, não compre o jornal. Será esta a democracia da mídia?
O que torna ainda mais frágil a capacidade de intervir contra é que há uma estrutura econômica e política que sustenta este tipo de jornalismo. Existe audiência e há uma rotina que permite que este conteúdo possa ser capturado. Não se trata aqui de censurar o acesso ao espaço do crime, mas preservar, por uma questão de respeito até, a cena, o morto, o desespero da família. Estranho pensar que existem anunciantes que topem apoiar este tipo de conteúdo em tempos em que estar bem no mercado rima com a tal da responsabilidade social.
Fenômeno preocupante
Nas escolas de comunicação, muitos têm os jornalistas que adotam esta abordagem como os seus favoritos. A formação do comunicador não é suficientemente crítica com esta realidade. Investe-se cada vez mais nesta abordagem, inclusive dentro da sala de aula. Quem estudou Comunicação e não ouviu algum professor dizer que “é assim mesmo! É disso que o povo gosta”? Por isso, não adianta apontar a existência desta abordagem como resultado do período de não obrigatoriedade do diploma. O jornal Já (exemplar paraibano de uma abordagem de sucesso no Brasil. Iguais a ele, podemos citar o Meia Hora), por exemplo, é editado por profissionais competentes e formados e é aquilo que é.
Para começar a transformar esta realidade, é preciso investir em espaços de leitura crítica da mídia em todo o sistema educacional do Brasil e também no processo de formação do comunicador. Compreender que a análise dos nossos meios de comunicação também é a análise da nossa sociedade. Criticar e autocriticar-se deve ser um processo permanente para a melhoria da nossa atuação de jornalistas. A naturalização da exposição e do direito de explorar comercialmente estas imagens é sintoma de um fenômeno social preocupante sobre o qual precisamos refletir – editores, empresários, internautas e toda a sociedade.
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[Janaine Aires é jornalista, membro do Coletivo COMjunto de Comunicadores Sociais e do Observatório da Mídia Paraibana]
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[Janaine Aires é jornalista, membro do Coletivo COMjunto de Comunicadores Sociais e do Observatório da Mídia Paraibana]
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