Edmilson Lopes Júnior
De Natal (RN)
Policiais observam loja de calçados incendiada durante a noite em Brixton High Street (Foto: Getty Images)
Quando as ruas de alguns bairros londrinos e de outras cidades inglesas foram tomadas por manifestações descontroladas de jovens e adolescentes, analistas apressados, não apenas na imprensa inglesa, tentaram ler os acontecimentos como uma espécie de versão britânica da revolta juvenil que abalou as estruturas autocráticas em diversos países árabes. A idealização durou pouco. As imagens de grupos saqueando lojas de produtos eletrônicos e roupas de grifes anunciavam mais um inverno fascista do que uma "primavera democrática".
Mas a idealização positiva da desordem, mesmo se em sinal invertido, continuou a ocorrer. Os que estavam tocando fogos em automóveis e lojas na Inglaterra, se não eram companheiros de batalha dos jovens árabes ou dos "indignados" espanhóis, eram a expressão do descontentamento com o desmonte das políticas sociais que estaria sendo levado adiante pelo governo conservador do Primeiro-Ministro David Cameron. Reagiam, mesmo que por meios equivocados, contra as investidas neoliberais. Até mesmo Nouriel Roubine, um analista econômico geralmente lúcido, caminhou por essa senda. Em recente artigo, cuja tradução encontra-se no Blog Viomundo, afirmou olimpicamente: "Manifestações populares, do Oriente Médio a Israel e ao Reino Unido - e logo também, sem dúvida, em outras economias avançadas e mercados emergentes - são todas provocadas pelas mesmas questões e tensões: desigualdade crescente, pobreza, desemprego e desesperança." É o tipo de construção que consola o espirito, mas diz pouco sobre a realidade. Ou, pior ainda, porque é meia-verdade (quem há de se contrapor que há um pouco disso tudo em cada uma dessas "manifestações"?) ajuda a encobrir o mais importante: a formulação de perguntas substanciais sobre os motores (e as singularidades) dos eventos.
Na Inglaterra, os conservadores saíram atirando com as armas fornecidas pelo seu ideário de sempre: a desordem seria o resultado de uma crise de autoridade, especialmente da família. E essa também é uma resposta enviesada, que contém alguma verdade, mas é profundamente limitada.
Há uma dimensão de fundo nos eventos ingleses que quase ninguém está tocando: o quanto há de ressentimento por trás das ações dos arruaceiros. Ressentimento que, à primeira vista, parece ter um viés étnico. Afinal, muitas das lojas atacadas pertenciam a indianos e paquistaneses. E alguns dos blocos residenciais incendiados eram moradias de imigrantes. Mas a dimensão étnica desse ressentimento também é uma cortina de fumaça. O ressentimento é contra o sucesso, contra o que dá certo. Obviamente, o êxito econômico daqueles que ontem viviam na miséria é uma realidade insuportável para os filhos da classe média decadente dos países do primeiro mundo, mas há algo mais: um ódio surdo contra os que lutam contra as adversidades e redefinem positivamente os seus destinos.
Esse ressentimento, algumas vezes, transborda para a vida política. A sua face mais vistosa é de direita: o nacionalismo do norte europeu. Outras vezes, especialmente na parte sul do hemisfério, alimenta um populismo autoritário, que busca se legitimar como "anti-imperialista" e de esquerda. Esse ressentimento é alimentado pelo medo do sucesso do outro. E esse outro pode ser tanto o imigrante asiático na Inglaterra quanto o magrebino na França. Mas também pode ser o êxito, em que pese os reveses econômicos presentes, de uma sociedade abertamente multicultural e com sólidas instituições e cultura democráticas como a norte-americana. Pode ser também o Estado de Israel. No ódio a Israel de muitos, mesmo quando transvestido de apoio à causa palestina, há o ressentimento contra algo que, quase que remando contra a lógica, deu certo: uma pátria, com instituições democráticas profundas, para os judeus. Como não se aceita esse sucesso, nega-se a legitimidade de Israel em se defender dos ataques terroristas contra o seu território e a sua população.
Em um livro intitulado "E se Obama fosse africano?", o grande escritor moçambicano Mia Couto, faz pequeno comentário sobre o genocídio perpetrado pelos hutus contra os tutsis em Ruanda. Afirma o grande romancista que, poucos anos antes do massacre de quase um milhão de pessoas no país africano, nenhum dos dois lados imaginaria que tal acontecimento fosse possível. Mia Couto também recorre à pobreza como causa explicativa eficiente. Quem conhece um pouco a história de Ruanda, sabe que a diferença étnica entre tutsis e hutus, acentuada ao nível de uma identidade oficial pelos colonizadores belgas, alimentou um ressentimento surdo que se transformou em política. A Rádio Mil Colinas, que funcionou como uma espécie de animadora tétrica dos hutus, guiando seus facões contra os tutsis, passou anos alimentando o ódio ao suposto sucesso e poder dos tutsis. Nessa emissora, os tutsis deixaram de ser reconhecidos como humanos, eram "baratas", portanto, sua eliminação seria não apenas desejável, mas também necessária.
Não estamos imunes, em nenhuma parte do mundo, a esse ressentimento e ao seu transbordamento para a política. No Brasil, o regionalismo, essa construção política e cultural do século XX, não raras vezes, alimenta, como efeito indesejado, o ressentimento. Pode ser contra os nordestinos, mas também pode ser contra São Paulo. O sucesso dos migrantes do "Norte", cuja tradução mais eloquente é a eleição de Lula, não é descolado do êxito econômico do estado de São Paulo. E falar de uma suposta vocação discriminatória, especialmente dos paulistanos, é atentar contra a lógica dos fatos. Afinal, que outra metrópole brasileira elegeu uma paraibana como sua prefeita? Ou, ainda, que outro estado da federação consagrou, em uma mesma eleição, um palhaço cearense e um ex-deputado pernambucano como seus representantes parlamentares?
Em certa medida, o ressentimento contra o sucesso alheio é um efeito não esperado da sedimentação do igualitarismo democrático. Uma das suas traduções devastadoras é o ódio contra o que dá certo. Como pode vestir qualquer figurino político e ideológico, devemos mobilizar as armas do pensamento crítico contra as suas insidiosas pregações.
Edmilson Lopes Júnior é professor de sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.