Por Ricardo Musse
Adorno rejeita peremptoriamente o modelo expositivo dos sistemas filosóficos. Recusa neles o idealismo implícito no propósito de construir uma “totalidade para a qual nada permanece exterior e todo e qualquer conteúdo se volatiza em pensamentos”.
Mas, sobretudo, considera-os como mera reiteração da razão burguesa, orientada pelo princípio da troca, que tende a tornar comensurável a si mesma e assimilar todo o existente.
O sistema não pode ser o norte da teoria, precisamente porque é práxis, porque é “nessa direção que se move o mundo administrado”. Se a reflexão pretende ir além daquilo “que está meramente presente, que é dado”, se tiver o seu impulso na crítica, na resistência, na negatividade, ela deve ter a liberdade de interpretar os fenômenos de forma desarmada. Ela deve ser, em suma, antissistemática.
Uma das entradas pela qual Adorno procura compreender o sistema capitalista consiste na atualização da dicotomia entre dinâmica e estática – conceitos propostos inicialmente por Auguste Comte e redefinidos por Karl Marx como uma dialética entre forças produtivas técnicas e relações sociais de produção.
No diagnóstico de Adorno, hoje “as relações de produção detêm a supremacia em relação às forças produtivas”. Inverte-se assim a previsão de Marx de que o ritmo do desenvolvimento técnico tenderia a implodir a sociedade petrificada.
A prevalência do estático, do sempre igual, no mundo administrado, não desmonta, no entanto, a pertinência da análise marxista do capitalismo.
Ao contrário, Adorno reafirma seus pontos essenciais: a crítica da dominação exercida por meio do processo econômico; o protesto contra a opressão social tornada anônima (que caracteriza, valendo-se de uma frase de Nietzsche, como “nenhum pastor e um só rebanho”); a denúncia da reificação como fonte da ausência de liberdade (“os homens continuam não sendo senhores autônomos de sua vida; tal como no mito, esta decorre como destino”).
Adorno não considera superada nem mesmo a tão contestada teoria das classes sociais. As tentativas de refutação, adverte, partem em geral da suposição equivocada de que as classes são delimitadas no âmbito da consciência. A determinação objetiva assenta-se, no entanto, na sua posição no processo produtivo, na propriedade (ou na capacidade de dispor) dos meios de produção.
Uma vez que o próprio Marx concebeu a consciência de classe como um epifenômeno, a integração do proletariado nas sociedades industrializadas do Hemisfério Norte não indica que a classe tenha desaparecido.
Concorrência e hierarquia
No mundo contemporâneo, o processo de acumulação do capital – logo, a reprodução das classes sociais e das relações de propriedade – depende cada vez mais da administração do Estado, que opera como “capitalista total”.
Nesse cenário, “o estado de espírito fixado e manipulado torna-se um poder efetivo”: “A organização da sociedade impede, de um modo automático ou planejado, pela indústria cultural e da consciência, pelos monopólios de opinião, o conhecimento e a experiência dos mais ameaçadores acontecimentos, das ideias e teorias essencialmente críticas, paralisando a capacidade de imaginar concretamente o mundo de um modo diverso de como ele dominadoramente se apresenta àqueles por meio dos quais ele é constituído” (Adorno, “Capitalismo Tardio ou Sociedade Industrial?”).
Na economia capitalista planejada, convivem em contradição “o princípio tipicamente burguês da concorrência” e a “dominação direta” sob a forma de “hierarquias fechadas de tipo monopolar”.
A paradoxal coabitação de princípios antagônicos – cristalizando a relação, antes dinâmica, entre mercado e Estado, num contexto em que permanece indeterminada a prevalência da lógica econômica ou das diretrizes políticas – resulta da expansão do fenômeno que Marx destacou como matriz da sociabilidade burguesa: o fetichismo da mercadoria.
Adorno reitera assim o qualificativo que Marx atribuiu ao capitalismo – “sociedade do trabalho alienado” –, procurando examinar como a coisificação se alastra a partir da produção ciência como o inconsciente dos indivíduos, reificando não só o âmbito do processo de trabalho, mas também as atividades no tempo livre e, assim, a própria esfera da vida imediata.
A maior parte do tempo livre na sociedade capitalista é despendida no entretenimento, mais precisamente nas inúmeras formas de diversão proporcionadas pelos modernos meios de comunicação de massa.
A politização da arte, preconizada por Walter Benjamin nos anos 1930, frutificou, segundo Adorno, em outro registro, como um mecanismo de despolitização da sociedade. Com a emergência da indústria cultural, constitui-se uma nova forma de domínio e integração social, na qual as massas não configuram o elemento ativo, como Benjamin desejava, mas pura passividade.
Mundo administrado
Não se trata apenas do fato, já presente antes, de que as mercadorias culturais se orientam conforme as leis de valorização do capital, e não segundo seu “próprio conteúdo e figuração adequada”:
“As produções do espírito no estilo da indústria cultural não são mais também mercadorias, mas o são integralmente. Esse deslocamento é tão grande que suscita fenômenos inteiramente novos. A indústria cultural transforma-se em public relations, a saber, a fabricação de um simples assentimento, sem relação com os produtores ou objetos de venda particulares. Vai-se procurar o cliente para lhe vender um consentimento total e não crítico, faz-se propaganda do mundo existente, assim como cada produto da indústria cultural traz em si seu próprio marketing” (“A Indústria Cultural”).
Adorno contesta as justificativas mais corriqueiras (e plausíveis) da indústria cultural. Uma defesa objetiva não se sustenta porque a indústria cultural não resiste ao confronto com aquilo sob cujo disfarce se apresenta: a obra de arte.
Ela deturpa assim o próprio conceito de cultura. Subjetivamente, ela tampouco se legitima, pois o consentimento que alardeia reforça nos indivíduos apenas a autoridade e o conformismo.
O mundo administrado descrito por Adorno não se confunde, porém, com o “sistema total”, a sociedade sem brechas, aterrorizante, construída por George Orwell no romance 1984. Adorno conclui, por exemplo, sua conferência sobre o tempo livre destacando que os produtos da indústria cultural, que se apresentam de forma tão impositiva, não deixam de ser recebidos com algum grau de ceticismo:
“Se minha conclusão não é muito apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema. Talvez mais ainda: não se acredita inteiramente neles. É evidente que ainda não se alcançou inteiramente a integração da consciência e do tempo livre. Os interesses reais do indivíduo ainda são suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir à apreensão total” (“Tempo Livre”).
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