A reportagem veiculada pelo programa Fantástico, da Rede Globo, no domingo, dia 18 de março corrente, indubitavelmente choca pela contundência ao exibir imagens explícitas de corrupção ativa e passiva. A prática da corrupção permeia a vida pública e privada brasileira, em todos os seus escalões e níveis, sendo até agora infensa a qualquer tipo de abordagem saneadora, constituindo uma verdadeira praga. É impossível outra atitude que não a de repúdio ao que foi mostrado.
Apesar de deixar claro o repúdio mais absoluto a essa excrescência, a corrupção, que assola a vida nacional, a reportagem veiculada pelo Fantástico e longamente repercutida dia a dia pela Rede Globo, suscita algumas considerações que, embora se refiram a aspectos muito sutis – que se não forem devidamente considerados redundariam em provocações gratuitas –, não podem passar despercebidas. O primeiro aspecto é quanto à ética e à legalidade de uma reportagem concretizada em tais condições.
No entanto, não se pode esquecer que liberdade de imprensa implica compromisso com a legalidade, com a ética, e pede, em contrapartida, responsabilidade. É defensável que um repórter, com o suporte de uma empresa de comunicação de indiscutível competência e ampla penetração na vida brasileira, assuma uma personalidade falsa para obter informações, ainda que seja sobre tema de alta relevância para o aprimoramento da vida nacional? Os fins perseguidos justificam a utilização desses meios? É correto recorrer à falsidade ideológica para tal objetivo? Esse tipo de imprensa deve ser incentivado, suportado e defendido como efetivo exercício de liberdade profissional?
Outra consideração que não pode deixar de ser evidenciada tem a ver com o gestor do hospital público, cenário dos lamentáveis flagrantes registrados pelas câmaras da televisão. O que teria levado o médico Edimilson Migowski a permitir que a operação tivesse lugar na instituição sob o seu comando, o Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG), da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)? O que levaria esse gestor a dar a sua cara a tapa, expondo, na tela da televisão, a sua incompetência para enfrentar a corrupção em curso entre os seus subordinados? Será de fato incompetência ou inapetência para enfrentar o desafio? Que subordinados são esses, e que poder maior que o do diretor os sustenta, para consumar os seus atos de corrupção: respaldo político ou qualquer outra forma espúria de poder que o diretor não pudesse encarar pelos meios oficiais?
Será que esse gestor é tão ingênuo que não considerou um dado irretorquível: o de que ele é conivente com os fatos ocorridos nos porões da sua instituição e que vai responder por eles, na sua qualidade de funcionário público e de cidadão brasileiro? O fato de haver apoiado a estratégia da reportagem configura dois crimes: incentivo ao exercício da falsidade ideológica e conivência com os atos que certamente vinham ocorrendo, desde antes da reportagem, sem que fosse capaz de denunciá-los. De pronto, ele agrediu o Estatuto do Funcionário Público, que não permite a qualquer gestor investir na qualidade de servidor alguém que de fato não o é, permitindo que pratique, em nome da instituição, atos que seriam exclusivos de alguém que fosse concursado ou, no mínimo contratado para o posto pelo regime das leis trabalhistas. O suposto responsável pelas compras era um estranho ao meio funcional. Seria o mesmo que ele permitisse que um falso médico praticasse cirurgias, pondo em risco a vida de outrem, para averiguar irregularidades nas práticas atinentes a um centro cirúrgico.
Também produz estranheza que o segmento escolhido para exemplificar a corrupção tenha sido a saúde pública. Por que motivo isso teria ocorrido, quando há muitos outros, com potencial financeiro infinitamente maior, por movimentarem recursos astronômicos e que são recorrentes, na própria mídia, como indiscutivelmente dados à prática da distribuição de largas propinas, que têm produzido não poucos casos de enriquecimento ilícito fantásticos? O alvo secundário terá sido agredir as políticas públicas de saúde, desvalorizando-as mais do que já estão junto à opinião pública, como forma de favorecer a medicina privada, que cresce a olhos vistos no país, a custa dos preços absurdos dos planos médicos e dos repasses de recursos públicos?
Diante da péssima distribuição de riquezas aqui registrada e da consequente penúria de grande parcela da população nacional, promover políticas públicas de saúde ainda constitui providência de primeira necessidade. É uma compensação para os menos favorecidos. E o Brasil consagrou esse princípio, com base na sua lei maior, a Constituição Federal e em outros dispositivos voltados para assegurar um mínimo de dignidade humana no acesso à saúde dos brasileiros mais carentes.
A maneira pela qual se configurou esse atendimento se traduziu no Sistema Único de Saúde (SUS), que vem sendo bombardeado por todos os lados por seus inimigos. Então, por que exterminá-lo? É uma dívida social e há que ser paga. Portanto, atacar o SUS, tentar bombardear a sua estrutura é um desserviço e a sua concretização fará o país mergulhar em problemas ainda maiores do que os hoje enfrentados.
O SUS hoje é integrado, em todo o país por 6.500 hospitais. Desses, 48% pertencem à iniciativa privada, que recebem perto da metade dos repasses federais para estados e municípios, atualmente, segundo o próprio O Globo, em editorial no dia 21 de março último, da ordem de R$ 175 bilhões, oriundos dos impostos pagos pelos cidadãos. Não será ele também indício de uma corrupção mais aguda e mais profunda do que aquele mostrado na reportagem encenada no IPPMG? Parece que voltamos ao ponto de partida: a corrupção não pode ser analisada no varejo. É coisa do atacado.
Mário Augusto Jakobskind
É correspondente no Brasil do semanário uruguaio Brecha. Foi colaborador do Pasquim, repórter da Folha de São Paulo e editor internacional da Tribuna da Imprensa. Integra o Conselho Editorial do seminário Brasil de Fato. É autor, entre outros livros, de América que não está na mídia, Dossiê Tim Lopes - Fantástico/IBOPE Direto da Redação
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