Por Luís Fernando Vitagliano
Segundo Thomás Hobbes o estado moderno deve ser como um Leviatã, com todos os poderes opressores possíveis. Detentor da força e da capacidade de submeter seus cidadãos ao poder das suas opressões. Mas um bom leitor de Hobbes vai se lembrar do contrato social ao qual até mesmo o rei deve se submeter. Todo estado moderno deve levar em consideração que os cidadãos abram mão da sua liberdade e ganhem com isso segurança. Contra a barbárie de uma guerra de todos contra todos, da sujeição do homem ao egoísmo do próprio homem, nasce o Leviatã, o estado, aquele aparato que vai impor ordem à sociedade. E mesmo nesta proposta hobbesiana de política, onde o estado é monárquico e absoluto há uma única possibilidade de desobediência civil: quando o estado não dá segurança aos seus cidadãos, os cidadãos têm o direito de questionar a autoridade do rei.
Porém, devemos entender segurança no seu sentido mais amplo: segurança alimentar, segurança civil, segurança contra ameaças internas e externas à vida dos cidadãos, e também segurança de que se pode ter uma vida plena para realizar tranquilamente o trabalho e a devoção a Deus (Hobbes era um dedicado cristão). Enfim, para resumir a teoria hobbesiana, se não é por todas essas funções exercidas pelo estado em nome da segurança, por que uma pessoa trocaria sua liberdade? Justificam-se, em consequência, as atitudes que confrontam as ações do estado, quando ele não garante condições dignas de segurança social.
John Locke, um dos pais do liberalismo moderno e talvez a principal referência clássica aos federalistas da Constituição americana defende que a propriedade privada deve ser resguardada em todos os casos. Para isso, não há exceção. A propriedade privada, fruto do trabalho e da dedicação do homem na transformação da natureza, deve ser defendida como o direito fundamental de qualquer sociedade política. Para Locke nenhum direito está acima deste. Para defender sua propriedade, uma pessoa pode até mesmo desobedecer as regras impostas pelo Estado. Todos os cidadãos têm direitos e deveres, mas nenhum direito pode se impor ao direito da propriedade, porque Locke entende que ela é fruto do trabalho e a dignidade de quem trabalha deve ser defendida a todo o custo.
E quando conquistamos propriedades ilicitamente, sem o uso do trabalho? Nem mesmo Locke defende este regime de propriedade. O estado, para ele, deve se preocupar exclusivamente com isso: as garantias das valorizações do trabalho como forma de resguardar a propriedade. Que ninguém use da força ou de poder para levar vantagens sobre ninguém e que simplesmente seja preservada a liberdade de fazer.
Dos liberais, o mais marcante cientista político clássico é Jean Jaques Rousseau. Sua obra é uma mistura de ensaios com defesas engajadas da emancipação humana. Rousseau teve influencia fundamental na Revolução Francesa e foi sem dúvidas um dos intelectuais mais lidos para a formação das noções da república moderna. No seu Discurso sobre as origens e fundamentos da desigualdade entre os homens, defende que, nas várias fases do desenvolvimento das sociedades humanas, a desigualdade começa a aparecer quando se cria a noção de propriedade privada. Neste momento os governos garantem que a divisão entre ricos e pobres preserve-se, assim como a divisão entre governantes e governados.
No Contrato Social, Rousseau não aceita que os homens entreguem sua liberdade aos dirigentes. Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Azul, Branco e Vermelho são os lemas da Revolução Francesa que colorem a bandeira daquele país e que se baseiam nas noções de pensadores clássicos como Rousseau (principalmente), Montesquieu, Diderot, d’Alembert, Voltaire etc. A ideia de república é a mesma: que o público se coloque acima dos interesses individuais. Para a filosofia política francesa, os interesses republicanos valem mais que os interesses privados.
Levando em consideração esses filósofos clássicos, há uma clara diferença entre a ciência política francesa e a saxônica. Enquanto as constituições inglesa (monárquica) e norte-americana (federalista) simplesmente versam sobre os direitos e deveres individuais, a constituição republicana francesa fala do universalismo dos direitos e das garantias básicas dos cidadãos. Pensa a sociedade de forma coletiva e universalizada, com garantias que devem sobrepor o coletivo ao individual.
O Brasil foi nitidamente influenciado pelo Estado de Direito francês onde a universalidade de direitos se impõe aos individualismos é a base da Constituição Federal. É só lembrar que a Carta Magna de 1988 foi batizada de “Constituição Cidadã”, dada a abrangência com que garantia direitos sociais aos brasileiros.
Não foi despropositado este longo exercício de memória da ciência política clássica e dos filósofos políticos. Se tomarmos esses pensadores para falar da recente crise da reintegração de posse dos moradores de Pinheirinho, nada do que se defende em relação à reintegração pode ser fundamentado.
Primeiro, o estado brasileiro tem obrigação de garantir aos cidadãos condições mínimas de direito. A tomar pela Constituição do estado republicano brasileiro, não podemos condenar comunidades que tentam, por meio da desobediência civil, garantir seu direito a moradia, educação e saúde. Hobbes poderia dizer que no Brasil o dever fundamental do estado em garantir segurança aos seus cidadãos não é cumprido e isso os desobriga de cumprir com o contrato social.
Locke, sobre o caso de Pinheirinho, diria que aquele espaço não foi conquistado com base no trabalho, mas em manobras de especuladores e criminosos do colarinho branco. E se os moradores locais trabalharam e promoveram benefícios ao lugar, construindo sua casa com seu próprio trabalho, isso deve ser mais valorizado que o termo de posse conquistado com base em manobras jurídicas. Rousseau argumentaria que o direito republicano dos cidadãos torna-os obrigados a contrariar o governo e que a propriedade privada neste caso é antirrepublicana.
No curso básico de pensamento político clássico, ainda teríamos uma discussão sobre Maquiavel. Bem, o caso de Pinheirinho, visto sob a ótica maquiavélica, é um exemplo de como o Príncipe não deve se comportar. Precipitada, mal dirigida, escandalosa e desnecessária foi a reintegração de posse. Provocou crise com os moradores, tornou-se manchete dos veículos de imprensa, desgastou a relação entre governo estadual e federal. Então, usando a frase famosa e maquiavélica: os fins justificam os meios? Engana-se que responde sempre sim. Em geral não, os fins justificam os meios somente quando esses fins levam em consideração o bem público. A reintegração de posse foi muito mais um exercício exagerado de autoridade, que não fez com que o Príncipe fosse amado ou respeitado, mas odiado. Ou seja, nenhuma das lições contidas em Maquiavel foi assimilada neste caso e a real politik foi abandonada em função de interesses absolutamente obscuros.
Falando especificamente da experiência brasileira, qualquer pessoa minimamente envolvida com as políticas de urbanização e desocupação de zonas irregulares sabe que os procedimentos são diferentes. Em primeiro lugar, quando se trata de uma ocupação irregular, a única justificativa plausível para a retirada das famílias é se o terreno é uma área de risco ou um espaço de preservação ambiental. Encostas e regiões ribeirinhas ocupadas não são prioridades dos ocupantes. O Estado deve providenciar a desocupação.
De outro lado, quando a região não é de risco, outras atitudes devem ser cogitadas e a primeira delas é considerar a manutenção das famílias nos locais e a urbanização das áreas, com a iluminação pública, a abertura de vias de trânsito, a regularização do fornecimento de água e luz e a garantia de tratamento do esgoto. Remoção das famílias tem que ser negociada, combinada, acertada e garantida com outras possibilidades. Se não acontece desta forma, o governo esta suscetível às criticas e o motivo é bastante simples: é obrigação de o Estado gerar moradias antes mesmo de garantir o direito de acumulação para especuladores. Alguém duvida dessa hierarquia em relação às prioridades de direitos?
A propaganda em favor da barbárie promovida pela desocupação tenta inverter a culpa e levar a população a crer que quem está em favor da comunidade do Pinheirinho é arruaceiro, quer rasgar a Constituição, não quer saber dos direitos na sociedade. Mas se levarmos o direito republicano a sério é justamente o contrário: defender a comunidade do Pinheirinho é defender a Constituição e os direitos sociais no Brasil – apesar de o Estado querer convencer as classes médias a defender o interesse de alguns poucos privilegiados.
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