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segunda-feira, 26 de março de 2012

O paciente de R$ 800 mil - II

Capítulo 2
O que o caso de Rafael ensina sobre a saúde pública brasileira

Ninguém quer a morte de Rafael. Nem de qualquer outro doente que recorre à Justiça para conseguir outros medicamentos caríssimos.
Mas, quando são obrigados a fornecer remédios caros da noite para o dia (ao preço que o fabricante se dispõe a vender), os gestores do orçamento público da saúde tiram o dinheiro de outro lugar. Com isso, milhares (ou milhões) de cidadãos perdem. A verba destinada à compra de um frasco de Soliris seria suficiente para garantir milhares de doses de anti-hipertensivos e de outros medicamentos baratos que atingem a maior parte da população. Sem interrupções. É preciso reconhecer que priorizar o direito individual em detrimento do direito coletivo tem consequências sobre a saúde pública.


A JUSTIÇA Sessão do Supremo Tribunal Federal. Em 2009, o STF realizou audiências públicas para discutir a pertinência de ações contra o SUS. A controvérsia persiste (Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF)

Se os pacientes ficarem sem esses medicamentos, o resultado pode ser uma trombose, um AVC, um infarto – todas as ameaças que o Estado procura evitar ao fornecê-los a Rafael. Para salvar uma vida, pode abrir mão de muitas outras. “Os recursos para cumprir as demandas judiciais saem do orçamento público para ações prioritárias, como a prevenção básica de problemas de saúde entre os mais pobres”, diz André Medici, economista sênior do Banco Mundial, em Washington. “As demandas judiciais aumentam a iniquidade do sistema de saúde e diminuem a qualidade de vida dos que detêm menos recursos.”
O maior desafio dos administradores públicos é preservar o direito do doente ao melhor tratamento sem que o Estado se torne perdulário. É preciso lembrar que a saúde no Brasil é subfinanciada. O país aplica em saúde cerca de 8,5% do PIB (considerando os gastos públicos e privados). É pouco. A França investe 11%. O México gasta menos que o Brasil (5,9%), mas tem taxas de mortalidade infantil e materna mais baixas, dois parâmetros importantes para avaliar a qualidade da assistência à saúde prestada por um país. O Brasil gasta pouco e gasta mal. Diante das verbas limitadas, um bom gestor é aquele que evita o desperdício de recursos ou o investimento em tratamentos inadequados. A pressão crescente das ordens judiciais impede que isso aconteça.
Em 2005, o Ministério da Saúde foi citado em 387 ações. Gastou R$ 2,4 milhões para atender essas três centenas de pacientes. Em 2011, foram 7.200 ações. A conta disparou para R$ 243 milhões. As ações contra o governo federal são uma pequena parte do problema. Como todas as esferas do Poder Público (federação, Estados e municípios) são corresponsáveis pelo financiamento da saúde, a maioria dos pacientes processa só o secretário municipal, só o estadual ou ambos.
Segundo os advogados, é mais fácil ganhar as ações quando os citados são os gestores das esferas inferiores. O Estado de São Paulo foi o que mais gastou com essas ações em 2010. As despesas chegaram a R$ 700 milhões para atender 25 mil cidadãos. Isso é quase metade do orçamento do governo estadual para a distribuição regular de medicamentos (R$ 1,5 bilhão) a toda a população paulista. Os gastos com as ações judiciais crescem R$ 200 milhões por ano. “Daria para construir um hospital novo por mês”, diz o secretário estadual Giovanni Guido Cerri.
As ações são baseadas no Artigo 196 da Constituição, segundo o qual a saúde é direito de todos e dever do Estado. Nem todos os juízes, porém, interpretam esse artigo como uma obrigação explícita de que o Poder Público deve prover ao paciente todo e qualquer tratamento solicitado. Muitos, no entanto, dão sentenças favoráveis ao doente. Quando isso acontece, o gestor citado é obrigado a fornecer o medicamento rapidamente. Se ignorar a determinação, pode ir para a cadeia.
O Brasil dispõe de uma relação de remédios regularmente distribuídos no SUS. Ela inclui as drogas necessárias para tratar as doenças que afetam a maioria da população. Além dela, existe uma lista de medicamentos excepcionais – em geral, de alto custo. São drogas novas, criadas para tratar doenças raras ou cada vez mais comuns, como o câncer.
As associações de pacientes reclamam que o governo demora a incluir nas listas drogas caras, mas de benefício inegável. Por isso, defendem ações judiciais como uma forma legítima de pressão. “As ações estão crescendo de forma desesperadora para os governos, mas elas os obrigam a arrumar verbas. Se eles arranjam dinheiro para outras coisas, por que não podem conseguir para remédios?”, afirma Fernanda Tavares Gimenez, advogada de Rafael.
Não há dúvida de que alguns pedidos de pacientes são justos e fundamentados. É verdade também que o SUS deveria ser mais ágil na atualização das listas. Muitos juízes, porém, não têm condição técnica de avaliar se um medicamento importado é melhor que o tratamento existente. Nem se sua eficácia foi comprovada. Nem se é capaz de provocar danos irreversíveis ao doente, além de rombos orçamentários.
A expressão “cada cabeça uma setença” se aplica perfeitamente ao caso dos pedidos de medicamentos. O entendimento sobre o assunto varia entre os magistrados. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma série de audiências públicas sobre a questão – e a controvérsia persiste. No Rio Grande do Norte, o juiz Airton Pinheiro negou o pedido de uma paciente que pretendia receber o Soliris. Argumentou que o SUS já oferece um tratamento para a doença (o transplante). E sustentou que o fornecimento desse remédio provocaria um abalo financeiro no orçamento da saúde do Estado, prejudicando toda a coletividade que depende do SUS.
No Ceará, o entendimento foi outro. O Estado foi obrigado a fornecer o Soliris a quatro pacientes. Por enquanto, o governo comprou a droga para dois deles. “O dinheiro necessário para atender os quatro corresponde a 67% do valor repassado pelo governo estadual para a compra de medicamentos básicos do município de Fortaleza inteiro”, afirma Einstein Nascimento, supervisor do departamento que controla os medicamentos de alto custo da Secretaria da Saúde do Ceará. “Esse caso ilustra muito bem o impacto dessas ações sobre o orçamento da saúde pública.”
Nos pequenos municípios, as decisões podem ser arrasadoras. É o caso de Buritama, uma cidade de 15 mil habitantes no interior de São Paulo. O orçamento do município para fornecimento de remédios é de R$ 650 mil por ano. No ano passado, mais da metade foi destinada apenas ao cumprimento de demandas judiciais. Um único paciente pediu na Justiça – e ganhou – uma cirurgia de implante de eletrodos para amenizar o mal de Parkinson. Preço: R$ 108 mil. “Todos os pacientes que entraram na Justiça ganharam a causa. E o Judiciário nem mandou o Estado compartilhar os gastos conosco”, diz Nancy Ferreira da Silva Cunha, secretária de Saúde de Buritama. “Essas ações estão acabando com os pequenos municípios.”
Cada nova ação que chega à Justiça torna explícito o conflito entre o direito individual e o direito coletivo à saúde. Os que administram orçamentos públicos parecem ter a resposta na ponta da língua. “A saúde pública tem de priorizar o interesse coletivo. Os interesses individuais devem ser bancados pelas famílias. É como o transporte público. O transporte é o mesmo para todos. Quem quiser andar de carro importado tem de pagar esse luxo”, diz Cerri, secretário estadual de São Paulo.
Além dos pacientes, quem mais se beneficia da judicialização são as empresas que fabricam os medicamentos. ÉPOCA procurou a Alexion, empresa americana que fabrica o Soliris. Nenhum representante aceitou dar entrevista. Nem no Brasil nem nos Estados Unidos. Em nota preparada pela assessoria de imprensa, a empresa afirmou não comentar suas atividades no Brasil nem o número de brasileiros que atualmente recebem o medicamento.
As ordens judiciais já não estão restritas apenas ao fornecimento de remédios. Além dos gastos com drogas que não estavam previstos no planejamento, em 2011 os juízes obrigaram o governo paulista a fornecer outros itens que consumiram mais R$ 80 milhões. Não são medicamentos, mas os juízes aceitaram a argumentação de que seriam indispensáveis à saúde e, portanto, deveriam ser fornecidos pelo Poder Público. Parece lista de supermercado: sabão de coco em pó, escova de dente, antisséptico bucal, xampu anticaspa, pilhas, copos descartáveis, chupetas, papel toalha, creme fixador de dentaduras, fraldas geriátricas, filtros de água, óleo de soja, creme de leite, fubá, amido de milho, farinha láctea...
Os administradores dos recursos da saúde tentam basear suas decisões em avaliações técnicas do custo e do benefício dos medicamentos. Os orçamentos para comprar remédios estão cada vez mais ameaçados pelos preços altíssimos das novas drogas. Ele é justificado, segundo a indústria farmacêutica, pelo investimento de longos anos em pesquisa refinada e pelo universo relativamente reduzido de consumidores, no caso das doenças raras. Grande parte dos custos nesse setor também está relacionada a investimentos vultosos de marketing para promover as novas marcas.
Os preços elevados combinados ao aumento da parcela da população que sofre de doenças crônicas ameaçam o atendimento à saúde até mesmo nas nações mais ricas. “Nos países desenvolvidos, o tratamento do câncer transformou-se numa cultura de excessos”, escreveu o professor Richard Sullivan numa edição da revista Lancet Oncology, publicada em setembro de 2011. “Diagnosticamos demais, tratamos demais e prometemos demais.” Lá, é cada vez mais frequente a pergunta cruel: é justo que o Estado gaste centenas de milhares de dólares para prolongar a vida de um doente de câncer em apenas dois meses?


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