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quinta-feira, 22 de março de 2012

Crise no mundo médico: ética de conveniência e acordos escrotos!


Médicos reprovam acordo do Conselho Federal com indústria farmacêutica
por Conceição Lemes

É usual existir sobre a mesa de médicos vários “adereços”: caneta, bloco de anotações, agenda, relógio digital, calculadora… Com um detalhe: frequentemente são adornados com marcas de medicamentos e nomes de laboratórios farmacêuticos.

Pois esses brindes – caneta e bloco de anotações são os mais básicos –, à vista geral, são apenas a ponta do volumoso e milionário iceberg que são os patrocínios da indústria farmacêutica aos profissionais de saúde. Há médicos que, se tivessem de exibir os nomes de todos os seus patrocinadores, ficariam com o jaleco tão abarrotado de anúncios quanto o uniforme de pilotos de Fórmula 1.

Para disciplinar a relação médico-indústria, o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) assinaram recentemente um acordo com a Interfarma, estabelecendo algumas normas. A Interfarma, presidida atualmente pelo jornalista Antonio Brito, é a associação de indústrias farmacêuticas que congrega as multinacionais do setor. Brito já foi deputado federal, ministro da Previdência Social e governador do Rio Grande do Sul.

O acordo CFM-Interfarma (a íntegra, aqui) libera presentes cujo valor individual não ultrapasse um terço do salário mínimo, limitados a três ocorrências por ano para cada médico.

O acordo também autoriza o pagamento de despesas com transporte, refeições e hospedagem do médico convidado pelo laboratório para eventos e congressos. Mas proíbe outra prática até então comum: “ É expressamente proibido o pagamento ou o reembolso de quaisquer despesas de familiares, acompanhantes ou pessoas convidadas pelo profissional médico”. O documento, porém, não especifica como serão feitos esse e outros controles.

O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) reprova o acordo, como mostra carta enviada em 5 de março ao Conselho Federal de Medicina (CFM):

O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) discorda do protocolo assinado no dia 14 de fevereiro pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), que aborda o relacionamento entre os médicos e a indústria de medicamentos.

Conforme deliberação da Sessão Plenária de 23/02/2012, os conselheiros do Cremesp encaminharam ao CFM as seguintes considerações:

1. O acordo representa um retrocesso ao sedimentar práticas que são eticamente inaceitáveis. Dentre outras distorções, o documento autoriza o recebimento pelos médicos de presentes e brindes oferecidos pelas empresas farmacêuticas, estipulando valores e periodicidade de difícil aferição; autoriza o patrocínio de viagens e participações em congressos e eventos sem apontar os critérios para escolha dos médicos beneficiados; submete os médicos a propagandistas de laboratórios visando, inclusive, o registro de efeitos adversos de medicamentos, tema de relevância sanitária que requer total autonomia profissional.

2. É inadequada a parceria entre um órgão federal julgador e disciplinador da classe médica e uma entidade representativa de empresas privadas com interesses particulares nas áreas de Medicina e Saúde. Cabe ao CFM normatizar o exercício ético da profissão e cabe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regular as práticas das empresas farmacêuticas na promoção comercial de medicamentos.

3. O relacionamento entre médicos e farmacêuticas pode influenciar, de forma negativa ou desnecessária, as prescrições de medicamentos e as decisões de tratamento. Os gastos com ações dirigidas aos médicos são repassados ao preço final dos medicamentos e têm impacto no bolso dos cidadãos e nos custos do sistema de saúde. Nenhum fator deve impedir que as prescrições sejam decididas pelos médicos exclusivamente de acordo com as credenciais científicas dos medicamentos e as necessidades de saúde dos pacientes.

4. O Cremesp solicita ao CFM que seja reaberta a discussão sobre a necessidade de revisão e de aprimoramento das normas éticas que envolvam a relação entre médicos e indústria farmacêutica.

“O acordo estará em constante aperfeiçoamento”, justifica o CFM ao Viomundo. “As sugestões do Cremesp serão avaliadas por comissão do CFM que trata da relação entre médicos e indústria farmacêutica.”

A preocupação do Cremesp procede. Existem evidências científicas de que mesmo os médicos bem intencionados não conseguem resistir à influência dos “incentivos” da indústria, como brindes, viagens.

“Como são muitos os interesses econômicos envolvidos, iniciativas de autorregulação tendem a ser ineficazes”, adverte o médico cardiologista Renato Azevedo Jr., presidente do Cremesp. “Não existem práticas inofensivas. Todas tem um objetivo claro: tornar os médicos mais propensos a prescrever o medicamento daquela empresa.”

Em 2010, o Cremesp fez uma pesquisa com os médicos dos Estado de São Paulo. Os resultados foram preocupantes:

* 93% dos médicos paulistas afirmaram ter recebido produtos e benefícios da indústria considerados de pequeno valor nos últimos 12 meses;

* 80% recebiam regularmente visita de propagandistas dos laboratórios;

* 33% souberam ou presenciaram recebimento de comissão por indicação de medicamento, órtese e prótese;

* 74% declararam que presenciaram ou receberam alguns benefícios da indústria ainda durante os seis anos do curso de Medicina.

“Hoje uma parte dos médicos não vê tantos problemas éticos na relação com a indústria, pois alegam a contribuição dessas empresas com a atualização científica. Isso vem desde a graduação”, observa Renato Azevedo. “É uma cultura que precisa ser mudada.”

Na prática, é um acordo que junta sob o mesmo teto lobos e ovelhas. São interessantes conflitantes.

“Um conselho de Medicina tem a função de fiscalizar o exercício profissional e, para julgar os médicos que cometem infrações éticas, precisa estar acima de qualquer conflito de interesses”, acrescenta Azevedo. “Logo, não é correta nem adequada uma parceria com entidade que representa um setor privado lucrativo, que congrega empresas cuja prática nem sempre é permeada por condutas éticas.”

O Cremesp não está sozinho na condenação dessas práticas. Na pesquisa realizada pelo Conselho em 2010 mais de 30% dos médicos achavam que há abusos e defendiam regulamentação ética mais rigorosa. Movimentos de médicos em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná também isso.


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