COLONIALISMO, CULTURALISMO E HUMANISMO NO CINEMA FRANCÊS
À primeira vista, Entre os muros da Escola é mais uma produção cujo tema é a questão da educação ou das relações professor-aluno em sala de aula, numa linha que talvez pudesse conectar produções anglo-saxões como Adorável professor, Ao mestre com carinho, ou mesmo Sociedade dos poetas mortos e, numa outra ponta, o excelente filme chinês Nenhum a menos.
No entanto, Entre os muros é muito mais do que isso. Trata-se de uma realização do que vem sendo saudado como renovação do cinema francês que, desde a Novelle vague nos anos sessenta, vem a duras penas resistindo ao avassalador domínio da indústria cinematográfica estadunidense. No caso, são números impressionantes: nos últimos vinte anos, após experimentar um certo declínio na ocupação deste mercado, o cinema francês vem retomando, mesmo que lentamente, uma participação no mercado de cinema francês: em 2000, atingiu meros 28,5%, e em 2008 atinge 42,5% (bem próximos dos 50% que, historicamente, a indústria cinematográfica francesa ocupava frente a invasão dos blockbusters made in USA).
Esta retomada de mercado é fruto de uma renovação em que têm centralidade um conjunto de novos diretores - aliás uma tendência que já dura trina anos. E que traz a cena a produção de realizadores que têm idades próximas dos 40 anos; entre estes, se inclui o responsável pelo Entre os muros da escola, Laurent Cantet, citado junto aos nomes de Cédric Kahn, Xavier Beauvois e Bruno Dumont: quatro diretores surgidos nos últimos dez anos na Franca de que devemos nos lembrar no futuro (Marie, 2008). Como o descreve Marie (idem), Laurent nasceu em 1961, foi aluno do IDHEC (Instituto de Desenvolvimento e Estudos de Cinematografia), e realizou curtas-metragens e documentários para a televisão, como o sobre a Guerra Civil no Líbano em 1990. Desde então realizou três longas-metragens: Ressources humaines (1999), L’emplóy du temps (2001) e Vers Le sul (Em direção ao sul, 2006), além deste Entre os muros da escola.
A respeito da produção do cineasta, Rodrigo de Oliveira, num bate-papo com o diretor, disponível no sítio Cinética – cinema e crítica - considera que o diretor manifesta interesse pelas “grandes questões” como as do colonialismo e dos sistemas educacionais, ainda que seus filmes – especialmente os dois últimos citados – tenham marcadas e bem talhadas tramas íntimas e específicas. Segundo aquele comentarista, não se trata somente do colonialismo francês, mas de "todo e qualquer colonialismo"; não se trata do sistema educacional francês, mas de “qualquer sistema escolar que tenha eco neste que você apresenta”. Nas respostas ao bate-papo, o diretor apresenta vários argumentos e elucida diversos pontos que dizem respeito ao modo com que elaborou o filme, o roteiro e os personagens, à estética dos seus filmes e as lições que se podem tirar da história.
Passemos, pois, ao filme propriamente dito. Entre os muros da escola é um filme que se passa em uma escola pública francesa, situada nas cercanias de Paris, próximo do que chamaríamos aqui de periferia. Seus personagens centrais são o professor François e os alunos de sua sala, um total de 20 alunos: muito diferente em número, portanto, do que se convenciona ter nas salas de aula das séries médias das nossas escolas publicas, em que esse numero é o dobro ou até o triplo.
François é o que se poderia descrever como um típico professor de ensino médio, preocupado com o desenvolvimento dos seus alunos, mas também centrado no desempenho de suas funções como professor. Combina, portanto, ao mesmo tempo, posturas, a nosso ver, autoritárias e democráticas. No primeiro caso, se pode ver nas cenas em sala de aula, em que exerce um certo poder autocrático, ou invoca a condição de professor para lidar com situações de rebeldia ou recusa, e mesmo perguntas constrangedoras de seus alunos; no segundo, por ser mostrado como um dos poucos professores que enfrenta conversas abertas com seus alunos no pátio da escola e, ainda que constrangido, aceita as críticas que lhe são feitas, inclusive, agressivamente.
A respeito do personagem, Laurent comenta que ele é um professor imperfeito, um ser humano contraditório. E nisto, estaria sua grande força moral. O diretor também considera que, por meio do François, quis representar a democracia como um sistema contraditório, conflituoso, E nisto, concordamos inteiramente com ele. A democracia não é o sistema da ordem e progresso, fechado e uniforme, mas um sistema aberto ao conflito, a diversidade e multidimensionalidade de opiniões e atitudes.
Quanto aos alunos, constituem, especialmente alguns que se destacam no cenário, a outra ponta desta relação intensa e conflituosa. Destaque é dado ao personagem que acaba banido da escola, Souleymane, vivido e apresentado como um típico africano. Mas estão presentes, e são fortes, alunos oriundos de outras culturas – árabe islâmica e asiática, e que representam o atual estado de coisas na França atual, em que se vive um intenso processo de inclusão/exclusão dos habitantes de suas ex-colônias. Processo tenso, conflituoso, que se expressa nas reações xenofóbicas dos franceses típicos, nas dificuldades de integração econômica e social dos trabalhadores e seus familiares – e que já explodiu em intensos conflitos de verdadeira guerra urbana como os noticiados movimentos revoltosos de jovens das periferias parisienses incendiando veículos há poucos anos, numa reedição mais violenta das barricadas de Paris dos anos 60.
No caso do filme, o cenário em que podemos ver estes conflitos acontecendo, em uma dimensão cultural, mas também imersa de ranços coloniais, é o da escola em que se desenrola o drama de Souleyname e seus colegas. Por meio da trama relacional entre François e seus alunos, podemos vislumbrar ecos do próprio sistema educacional francês, movido por regras e preceitos em que se debatem as demais culturas, obrigadas a se incorporarem neles, e que se evidencia na rígida e burocrática rotina do conselho de escola, que toma decisões baseadas quase exclusivamente centradas nos interesses pedagógicos à francesa.
Neste sentido, bem podemos sentir a presença do que alude o diretor, quando afirma que sua intenção foi mostrar como uma escola - qualquer uma em qualquer lugar - está atravessada por forças que estão além dos seus muros, no caso, a cultura, étnica e racialmente falando, a política social, a questão econômica e, também, os valores familiares e individuais. Mas que, no caso específico, também serve para mostrar e expor à crítica como o sistema educacional francês pode estar lidando (no caso nem bem nem mal, mas conflituosamente) com as demandas de integração social de outras culturas que não a dos estritamente nascidos de pais franceses. É um filme que toca muito claramente, a partir desta faceta, nos problemas que precisam ser enfrentados por todos os que se debruçam sobre as conseqüências para a vida dos indivíduos que sofreram, e ainda sofrem, expropriações de qualquer ordem geradas pela ocupação dos seus espaços de vida.
Por fim, mas não por último, o filme pode ser incluído, assim nos parece, na galeria dos filmes com perspectiva humanista, e não falamos disso nem tanto pela cena final, em que professores e alunos jogam bola no pátio, mas pelo modo como apresenta e trata seus personagens. François e alunos são tratados pela lente da câmera com igual força e presença. As imagens editadas da cópia final não parecem levar o espectador a se inclinar por este ou aquele lado. Mesmo a decisão do conselho de escola com relação a Souleyname não nos é mostrada numa ótica tendenciosa. Apenas, transparece – e este apenas não quer dizer pouco - toda a tensão, conflito e sofrimento que atravessa o processo de tomada de decisão. Neste sentido, a cena final não é apresentada como se fosse um jogo de conciliação (a exemplo dos querem saudar a copa do mundo de futebol como uma grande festa de conciliação mundial). Aqui, a cena parece ser mais singela. Apenas diz: a vida humana segue seu curso! Passadas a dor e o luto, continuamos aqui juntos. Ou, segundo as palavras do próprio Laurent, “estamos todos no mesmo barco”.
Eis os rasgos de humanidade do filme. Não uma humanidade romântica e glamourosa, típicamente hollywoodiana, que clama sempre uma solução feliz no final. Mas uma humanidade no sentido preciso da atitude que reconhece as imperfeições, finitudes e complexidades do ser humano e, portanto, das relações deles consigo mesmos, e com as instituições que os medeiam. Por estas razões, pelo modo realista como traça as relações pessoais e institucionais, pelos traços eqüânimes com que apresenta seus personagens, e pela condução da trama, é um filme que merece ser visto. E que coloca seu diretor como alguém em que devamos reparar nos anos vindouros.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
BAPTISTA M. & MASCARELLO F. (ORG.). Cinema Mundial Contemporâneo. Campinas: Papirus, 2009 [Coleção Campo Imagético]
MARIE, M. Os últimos vinte anos do cinema francês (1986-2006). IN: BAPTISTA M. & MASCARELLO F. (ORG.). Cinema Mundial Contemporâneo. Campinas: Papirus, 2009 [Coleção Campo Imagético], p. 57-70.
OLIVEIRA, R. A questão humana: bate-papo com Laurent Cantet. Disponível em
http://www.revistacinetica.com.br/entcantet.htm. Acesso em jun, 26, 2010.
Filme Entre os muros da escola. Versão em DVD. Alugado junto a locadora Vídeo21. São Carlos/SP.
São Carlos, outono/inverno de 2011.