Recolher não é Acolher
Nelson Gomes Jr
Nos últimos meses, vem ganhando vulto no Brasil uma “nova” modalidade de combate ao uso de drogas ilícitas. Inspirada no princípio da “proteção integral”, disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente, a medida consiste em recolher das ruas e internar compulsoriamente crianças e adolescentes usuários de drogas, em especial os dependentes de crack.
Temos acompanhado o processo e suas repercussões com bastante preocupação, dada, principalmente, a compreensão distorcida do conceito de “proteção integral”. É ponto pacífico a importância de uma rede de atenção à saúde implicada com a temática do abuso de drogas e suas consequências, entretanto não nos parece apropriada a ideia da internação compulsória como política pública de saúde mental e assistência social.
Por que razões estas crianças e adolescentes chegaram ao ponto de viver nas ruas? Por que se tornaram dependentes químicos? Foram acolhidos por quais outras políticas públicas? Onde estavam o Estado e o direito à proteção integral destes jovens ao longo de todo esse tempo? Parece-nos que tais questionamentos têm sido escanteados em benefício de uma racionalidade pragmática pouco atenta à dignidade dos humanos abordados, os quais têm sido tratados muito mais como dejetos do que como sujeitos de direitos.
A novidade terapêutica apresenta triste verossimilhança com dois momentos históricos preocupantes: o primeiro deles refere-se ao tratamento dispensado à loucura nos séculos XVII e XVIII, quando o surgimento dos asilos e manicômios cumpriu papel fundamental na reclusão de loucos, pobres, criminosos e todos os que não se adequassem às normas sociais. Por outro lado, tamanha limpeza social dos indesejáveis também pôde ser observada no início do século XX no Brasil, com a emergência da medicina higienista e suas interferências nos hábitos, valores, moradia e reiterada desqualificação do saber popular. Um dos maiores exemplos do que estamos analisando foi a reforma urbanística do prefeito carioca Pereira Passos, famoso nacionalmente pela derrubada de cortiços, demolição de casas, desodorização das ruas e pela maquiagem urbana operada na capital fluminense em nome da modernização e saneamento do espaço público.
O breve resgate histórico aponta-nos para a reedição de medidas excludentes e violentas em nome da proteção e cuidados aos ditos vulneráveis. Tais procedimentos configuram-se, ainda, como grave retrocesso frente à reforma psiquiátrica em andamento no Brasil. Ao arrepio da Lei 10216/2001, a prática banalizada da internação compulsória é um acinte à luta antimanicomial e a todos os esforços que os profissionais da saúde e movimentos sociais têm empenhado rumo a tratamentos mais dignos e compatíveis com a cidadania plena dos usuários dos serviços de saúde mental. Além do explicitado, não há evidências científicas de que o tratamento involuntário apresente resultados mais satisfatórios que outras modalidades de intervenção, evidenciando, ao contrário disso, o lastimável indicador de 95% de recaídas, conforme assinala o Prof. Dr. Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo.
Recolher pessoas contra sua vontade não significa acolhê-las, significa violentá-las em sua cidadania, dignidade e direito constitucional de ir e vir. A política de higienização urbana, longe de ser configurada como real estratégia protetiva, caracteriza-se como um escárnio àqueles que, da condição de historicamente abandonados pelo Estado, passam agora a ser perseguidos e encarcerados, sob o argumento da proteção integral.
Por fim, renovamos nossa aposta nos serviços substitutivos ao modelo manicomial, historicamente caracterizado pela truculência, segregação e violação cotidiana aos direitos humanos. Afirmamos, ainda, a importância das experiências de redução de danos, dos Centros de Atenção Psicossocial, dos Centros de Referência em Assistência Social e da Estratégia de Saúde da Família. Mais do que um conjunto de nomes, representam dispositivos de acolhimento humanizados, eficazes e sintonizados com o respeito e promoção da dignidade humana.
Sobre o autor:
Nascido no Rio de Janeiro, graduou-se em Psicologia pela UFF em 2000. Em 2003 concluiu o Mestrado em Psicologia pela UFES. Atuou como docente e coordenador de Cursos de Psicologia em Instituições Privadas de Ensino até 2009. Atualmente é docente e Chefe do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, atuando nas interfaces de Psicologia Jurídica e Direitos Humanos.
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