Kluge enxerga um Marx esquecido
Filme de cineasta alemão debate O Capital inspirado por Eisenstein, e sugere, em 8 horas, roteiros para repensar marxismo
Por Arlindenor Pedro
Separei este último final de semana para assistir em DVD a obra de Alexander Kluge (foto), que no Brasil tomou o nome de Noticias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein e o Capital. Em mais de oito horas de duração, distribuídos em 3 DVDs , esta obra do genial diretor alemão, realizada em 2008, no auge da crise financeira mundial, nos faz mergulhar no universo criativo do diretor russo Serguei Eisenstein, do Encouraçado Potemkin, e nas ideias de um dos mais importantes pensadores da humanidade: Karl Marx, articulando-as com a realidade do mundo contemporâneo. Uma bela iniciativa da distribuidora Versátil, em parceria com o Instituto de Tecnologia Social (ITS), o Goethe-Institut São Paulo e o SESC. Obra original, um documentário com expressivas inovações estéticas, que merece ser vista e comentada.
Tudo parte de uma ideia de Eisenstein. Após terminar as filmagens de “Outubro”, ele quis lançar-se à aventura de filmar a maior obra de Marx: O Capital. Desenvolveu um projeto original e ambicioso, nascido da leitura que fizera de Ulisses, de James Joyce, e de suas observações sobre quebra da bolsa de Nova York, em 1929. Inspirado no personagem de Joyce, queria mostrar em apenas um dia todos os meandros do sistema capitalista – sua engrenagem avassaladora. Uma das suas notas, encontradas após a sua morte, dá a dimensão da tarefa a que se propôs: “A decisão está tomada: irei filmar O Capital, segundo roteiro de K.Marx. Esta é a única saída possível”.
Como se sabe, Eisenstein nunca realizou seu plano. O filme de Alexandre Kluge parte desta ausência. Ele convoca uma grupo de conhecedores de Eisenstein, Joyce e Marx – pensadores, poetas, escritores, atores, maestros – para um exercício. Pede que imaginem como seria o filme do cineasta russo.
Aparece-nos, então, um Marx diferente do que é usualmente mostrado, sem os conceitos reducionistas do marxismo positivista que imperou durante todo o século passado. Ele surge como um pensador que abre caminho para o entendimento do capitalismo em sua mais completa forma existencial, que hoje podemos enxergar mais claramente. Por meio do relato e do debate com convidados, o filme quer revelar o mundo da mercadoria: o que é; como o modo de produção capitalista abriu-lhe o grande teatro da existência; como ela se transformou, ao longo do tempo. Surgem novos elementos para compreender a sociedade contemporânea e o império do fetiche, que nos encanta num mundo desencantado.
Pela estética peculiar do filme desfila o pensamento de gente como o filosofo Peter Sloterdijk, o escritor Hans Magnus Enzensberger, o poeta Durs Grubein, o cineasta Tom Tykwer e muitos outros intelectuais e artistas. Em alguns momentos, parece que estamos dentro de um outro filme, pequenos curtas, entrelaçados no mesmo objetivo: as ideias contidas na obra de Marx.
Muito bem documentado e com imagens impressionantes, o filme não se limita ao debate – necessariamente árido – da obra de Marx. Relata fatos curiosos. Permite-nos saber, por exemplo, que o túmulo de Marx no cemitério de Highgate (Londres), visitado por tantos, é na verdade é um monumento erguido pelos soviéticos em homenagem ao grande escritor alemão. Seu corpo foi depositado na parte judia do cemitério, em um lugar modesto, abandonado e mal cuidado-longe do público. Ou que, em pleno débacle financeiro do mundo capitalista em 1929, o Comitê Central da União Soviética tomou a decisão de “comprar ativos” do mundo ocidental, mobilizando para tanto obras de arte e riquezas do antigo império tzarista. Emprestava dinheiro aos capitalistas aterrorizados, imaginando fazê-los devedores do poder soviético, numa estratégia similar à da China nos dias atuais. Tal empreitada não foi adiante devido à carência de quadros comunistas que dominassem a arte da negociação financeira nas grandes praças capitalistas.
O filme – inclusive nos “extras”, verdadeiros filmes dentro do filme, como a entrevista com o cineasta francês Jean-Luc Godard – navega nos mesmos mares dos marxistas que se desviaram dos cânones do stalinismo e do marxismo oficial, imperante a partir da 3ª Internacional. Pensamentos e citações de filósofos ligados a Escola de Frankfurt, como Walter Benjamin, Adorno e Horkheimer (com A Dialética do Esclarecimento), jogam importante papel na leitura de um Marx que abre caminhos para entender a sociedade da mercadoria em que vivemos. Ao polemizar com o próprio Marx a respeito de uma frase célebre (“A revolução é a locomotiva da história”), Benjamim diz que, ao contrário, “a revolução é o freio de emergência que serve para travar o trem que caminha para a desgraça”. Isto é: ela serve para fazer retornar os acontecimentos à historia. No caso da Revolução Francesa, e mesmo das guerras napoleônicas, seus lideres tiveram a visão de que o avanço do capitalismo, com mudanças no modo de produção, exigia um novo olhar sobre a sociedade, do qual os lideres da aristocracia eram incapazes. Desta forma, retomaram o rumo da historia; põem abaixo a sociedade feudal, instaurando um novo regime. Um freio no trem caminhava para o abismo, para crise.
O marxismo dito oficial sempre teve uma visão linear da história, com os modos de produção sucedendo-se em direção ao progresso. Seus defensores enxergavam o comunismo como o final dos tempos, assim como os milenaristas do 5º Império de Portugal.
É caso de perguntar: os movimentos socialistas do século passado não teriam sido avalizadores da mundo contemporâneo, dando uma face mais “humana” ao capitalismo selvagem dos primeiros tempos, em que a exploração era levada aos limites da vida? Limitados por sua visão “progressista”, concentrados em assegurar o domínio sobre os bens de produção, não teriam substituído os capitães do capitalismo pelos capitães industriais do socialismo? Isso não significou esquecer o elemento central da crítica de Marx: a própria mercadoria?
Se a resposta for positiva, deveríamos voltar a Marx e pensar uma nova sociedade capaz de superar a lógica do “valor de troca”, que leva a dar a qualquer bem uma equivalência monetário e obriga os seres humanos, em consequência, a comprar a vida segundo o poder aquisitivo de cada um. A obra de Kluge nos condvida a retomar tal utopia, o principal legado de Marx.
Por Arlindenor Pedro
Separei este último final de semana para assistir em DVD a obra de Alexander Kluge (foto), que no Brasil tomou o nome de Noticias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein e o Capital. Em mais de oito horas de duração, distribuídos em 3 DVDs , esta obra do genial diretor alemão, realizada em 2008, no auge da crise financeira mundial, nos faz mergulhar no universo criativo do diretor russo Serguei Eisenstein, do Encouraçado Potemkin, e nas ideias de um dos mais importantes pensadores da humanidade: Karl Marx, articulando-as com a realidade do mundo contemporâneo. Uma bela iniciativa da distribuidora Versátil, em parceria com o Instituto de Tecnologia Social (ITS), o Goethe-Institut São Paulo e o SESC. Obra original, um documentário com expressivas inovações estéticas, que merece ser vista e comentada.
Tudo parte de uma ideia de Eisenstein. Após terminar as filmagens de “Outubro”, ele quis lançar-se à aventura de filmar a maior obra de Marx: O Capital. Desenvolveu um projeto original e ambicioso, nascido da leitura que fizera de Ulisses, de James Joyce, e de suas observações sobre quebra da bolsa de Nova York, em 1929. Inspirado no personagem de Joyce, queria mostrar em apenas um dia todos os meandros do sistema capitalista – sua engrenagem avassaladora. Uma das suas notas, encontradas após a sua morte, dá a dimensão da tarefa a que se propôs: “A decisão está tomada: irei filmar O Capital, segundo roteiro de K.Marx. Esta é a única saída possível”.
Como se sabe, Eisenstein nunca realizou seu plano. O filme de Alexandre Kluge parte desta ausência. Ele convoca uma grupo de conhecedores de Eisenstein, Joyce e Marx – pensadores, poetas, escritores, atores, maestros – para um exercício. Pede que imaginem como seria o filme do cineasta russo.
Aparece-nos, então, um Marx diferente do que é usualmente mostrado, sem os conceitos reducionistas do marxismo positivista que imperou durante todo o século passado. Ele surge como um pensador que abre caminho para o entendimento do capitalismo em sua mais completa forma existencial, que hoje podemos enxergar mais claramente. Por meio do relato e do debate com convidados, o filme quer revelar o mundo da mercadoria: o que é; como o modo de produção capitalista abriu-lhe o grande teatro da existência; como ela se transformou, ao longo do tempo. Surgem novos elementos para compreender a sociedade contemporânea e o império do fetiche, que nos encanta num mundo desencantado.
Pela estética peculiar do filme desfila o pensamento de gente como o filosofo Peter Sloterdijk, o escritor Hans Magnus Enzensberger, o poeta Durs Grubein, o cineasta Tom Tykwer e muitos outros intelectuais e artistas. Em alguns momentos, parece que estamos dentro de um outro filme, pequenos curtas, entrelaçados no mesmo objetivo: as ideias contidas na obra de Marx.
Muito bem documentado e com imagens impressionantes, o filme não se limita ao debate – necessariamente árido – da obra de Marx. Relata fatos curiosos. Permite-nos saber, por exemplo, que o túmulo de Marx no cemitério de Highgate (Londres), visitado por tantos, é na verdade é um monumento erguido pelos soviéticos em homenagem ao grande escritor alemão. Seu corpo foi depositado na parte judia do cemitério, em um lugar modesto, abandonado e mal cuidado-longe do público. Ou que, em pleno débacle financeiro do mundo capitalista em 1929, o Comitê Central da União Soviética tomou a decisão de “comprar ativos” do mundo ocidental, mobilizando para tanto obras de arte e riquezas do antigo império tzarista. Emprestava dinheiro aos capitalistas aterrorizados, imaginando fazê-los devedores do poder soviético, numa estratégia similar à da China nos dias atuais. Tal empreitada não foi adiante devido à carência de quadros comunistas que dominassem a arte da negociação financeira nas grandes praças capitalistas.
O filme – inclusive nos “extras”, verdadeiros filmes dentro do filme, como a entrevista com o cineasta francês Jean-Luc Godard – navega nos mesmos mares dos marxistas que se desviaram dos cânones do stalinismo e do marxismo oficial, imperante a partir da 3ª Internacional. Pensamentos e citações de filósofos ligados a Escola de Frankfurt, como Walter Benjamin, Adorno e Horkheimer (com A Dialética do Esclarecimento), jogam importante papel na leitura de um Marx que abre caminhos para entender a sociedade da mercadoria em que vivemos. Ao polemizar com o próprio Marx a respeito de uma frase célebre (“A revolução é a locomotiva da história”), Benjamim diz que, ao contrário, “a revolução é o freio de emergência que serve para travar o trem que caminha para a desgraça”. Isto é: ela serve para fazer retornar os acontecimentos à historia. No caso da Revolução Francesa, e mesmo das guerras napoleônicas, seus lideres tiveram a visão de que o avanço do capitalismo, com mudanças no modo de produção, exigia um novo olhar sobre a sociedade, do qual os lideres da aristocracia eram incapazes. Desta forma, retomaram o rumo da historia; põem abaixo a sociedade feudal, instaurando um novo regime. Um freio no trem caminhava para o abismo, para crise.
O marxismo dito oficial sempre teve uma visão linear da história, com os modos de produção sucedendo-se em direção ao progresso. Seus defensores enxergavam o comunismo como o final dos tempos, assim como os milenaristas do 5º Império de Portugal.
É caso de perguntar: os movimentos socialistas do século passado não teriam sido avalizadores da mundo contemporâneo, dando uma face mais “humana” ao capitalismo selvagem dos primeiros tempos, em que a exploração era levada aos limites da vida? Limitados por sua visão “progressista”, concentrados em assegurar o domínio sobre os bens de produção, não teriam substituído os capitães do capitalismo pelos capitães industriais do socialismo? Isso não significou esquecer o elemento central da crítica de Marx: a própria mercadoria?
Se a resposta for positiva, deveríamos voltar a Marx e pensar uma nova sociedade capaz de superar a lógica do “valor de troca”, que leva a dar a qualquer bem uma equivalência monetário e obriga os seres humanos, em consequência, a comprar a vida segundo o poder aquisitivo de cada um. A obra de Kluge nos condvida a retomar tal utopia, o principal legado de Marx.
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