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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Paraguai: a verdade sobre o massacre que derrubou Lugo


Tombaram vitimas da luta por terra e cidadania
Pouco se sabia sobre o ocorrido em Curuguaty, pivô da queda do presidente Fernando Lugo: a história do único sem-terra vivo, e preso, reconstitui mais uma página dramática da história latino-americana

Por Natalia Viana, no Publica

Atrás das grossas e enferrujadas grades da penitenciária nacional de Tacumbú, na capital paraguaia Assunção, em meio a mais de três mil detentos – a lotação é de 1500 – Rubén Villalba carrega um peso infinito. Baixinho, barrigudo, de olhos pequenos e pele morena típica do interior paraguaio pros lados do Mato Grosso do Sul, ele é acusado de ser o principal causador da matança de Curuguaty, motivo apresentado para a destituição do presidente eleito Fernando Lugo em junho de 2012 pelo Congresso.

Contra Villalba pesa não apenas o papel que lhe é atribuído na História, do qual tenta desesperadamente fugir, mas a realidade de que está sozinho. Nunca houve na imprensa paraguaia uma só voz que o defendesse; os demais dirigentes da ocupação de sem-terra que, como ele, decidiram resistir à reintegração de posse no dia 15 de junho estão mortos; sua esposa está em prisão domiciliar a 400 quilômetros com o filhos de 7 meses. Todas as evidências consideradas pela investigação da Fiscalía, espécie de ministério público do Paraguai, sobre o massacre apontam para ele. O presidente do seu país, Frederico Franco, chamou-o de assassino e afirmou que ele protagonizou uma emboscada a policiais que resultou na morte de seis deles. No dia, morreram também 11 camponeses.

Sua captura, em outubro, foi celebrada não apenas pelo presidente. “Claro que me golpearam quando fui preso”, conta à Pública, no seu espanhol misturado com guarani, enquanto esquiva-se do olhar dos guardas num canto do presídio – ele está terminantemente proibido de falar com a imprensa. “Havia muita tortura psicológica, ‘você é o que matou fulano, você é do (grupo guerrilheiro) EPP, diziam. Me subiu em cima do meu lombo, nas minhas costas e disse ‘urra’, me parece que eu era um troféu me parece…”

É neste momento que Ruben começa a chorar, ao relatar o pouco que lembra da desocupação do terreno de 2 mil hectares. Não eram incomuns as desocupações do tipo nem que os sem-terra decidissem resistir à tentativa de reintegração de posse, como fizeram Ruben e os outros dirigentes. O fato de que o grupo possuía escopetas de caça (entre 17 e 20) também era algo comum em desocupações, segundo muitas testemunhas ouvidas pela Pública, entre policiais, camponeses, jornalistas, militares. Mas tudo o que se seguiu foi absolutamente incomum.

“Eu esperava que ia haver uma conversa, ou iam apresentar um titulo de propriedade, ou para falar com a Fiscalía e outras autoridades mais”, lembra Rubén. “O companhero Pindu, esse companheiro Avelino Espínola, esse que conversava, ele pedia documentos da propriedade. Quando começara os disparos eu recebi o primeiro disparo. Me fui ao chão e não entendi mais nada, estava inconsciente”. No meio do tiroteio, Rubén foi acudido por outro integrante da ocupação – “Nosotros los companheiros já se morreram todos”, lembra de ter ouvido – e ficou escondido em uma região montanhosa até ser capturado, três meses depois.

Próximo dali, na ala hospitalar do centro de detenção, de nome “Esperança”, está Néstor Castor, outro dos cerca de 70 sem-terra que ocupavam as terras conhecidas como Marina Cué. Embora contra ele não pese a acusação de ter provocado o massacre, Castor carrega uma repugnante ferida; seu maxilar esquerdo foi destruído por uma bala, e desde aquela manhã seu rosto está parcialmente desfigurado. Na época da entrevista, a parte inferior era amarrada por uma espécie de aparelho dentrário com elásticos. Néstor tem dificuldade de falar e de comer – ainda se alimenta a base de líquidos. Sua operação só foi realizada no dia 23 de novembro, cinco meses depois do ferimento. Ele agora está em recuperação.

Cástor foi preso no dia seguinte ao confronto, quando procurou um hospital em outro município, depois de fugir do fogo cruzado. Em poucos minutos, chegaram os policiais. “Me sentia mal, e uma vez os policiais me amarraram na cama, eu não podia sair, não podia nem ir ao banheiro”. A enorme dificuldade de falar vence, e neste momento, Castor, também, chora.

Mas a dor não é só física. Cástor carrega a culpa de ter inadvertidamente dedurado todos os seus companheiros. É que dias antes do conflito ele escreveu de próprio punho uma lista com o nome daqueles que ocupavam o terreno, “para pedir víveres à Secretaria de Emergência Social” do governo federal. A lista, encontrada pela polícia, é uma das principais peças da investigação conduzida pela Fiscalía. Todos os que constam nela – estivessem ou não na hora do conflito – tiveram prisão preventiva decretada e são acusados de homicídio doloso agravado, homicídio doloso em grau de tentativa, lesão grave, associação criminal, coação grave e invasão de imóvel alheio.

Indiciar indiscriminadamente todos os nomes registrados numa lista rabiscada a caneta não é a única fragilidade da investigação sobre o evento mais importante da história recente do Paraguai. Na verdade, a investigação está sob crescente crítica da opinião pública.

Mesmo depois do informe da investigação ser concluído em outubro, não se sabia o resultado dos exames de autópsia, e nem os de balística. Das cinco escopetas apreendidas, supostas armas do crime, apenas uma se mostrou capaz de atirar; dezenas de invólucros de balas automáticas simplesmente desapareceram. Há indícios de adulteração da cena do crime e dos cadáveres; uma arma que apareceu do nada; depoimentos anônimos; e policiais que mudaram suas versões.

A investigação, em si, é conduzida por um jovem integrante da Fiscalía, de nome Jalil Rachid, 33 anos, filho de Blader Rachid, ex-presidente do Partido Colorado, assim como o empresário Blas N Riquelme, que usava o terreno e desde 2004 reivindicava na justiça a sua posse, pedindo a retirada dos sem-terra.

Riquelme, empresário para uns, grileiro para outros – a Comissão da Verdade sobre a ditadura de Stroessner apontou irregularidades em terrenos que adquiriu no período – faleceu dois meses depois do massacre, de uma complicação cerebrovascular. Foi enterrado com honra e glória, o “Don Blas”, homenageado no mesmo Congresso que destituiu Fernando Lugo e na sede do Partido Colorado – o mesmo que votou em peso pelo impeachment.

Leia a parte 1: O bispo e seus tubarões

Leia a parte 2: A destituição,vista do Palácio


(continua amanhã)

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