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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Paraguay: a verdade sobre o massacre que derrubou Lugo (II)


VIAGEM A CURUGUATY 


A Pública viajou até a região de Curuguaty para tentar entender o que se passou naquele 15 de junho. Ouviu diversas testemunhas – de um chefe policial a camponeses foragidos – e encontrou, em pouco mais de dois meses de investigação, um dos invólucros – que a Fiscalía afirma não existirem – de uma bala 5,56 usada em fuzis M16, que estava no local do conflito.

Para chegar até a humilde casa de uma família que tem três filhos entre os acusados da matança, é preciso comer terra. São quarenta minutos de estrada asfaltada e uma de chão batido em um pequeno ônibus que faz a rota local, e depois mais quarenta minutos de moto – o único transporte acessível aos moradores da pequena comunidade que conquistou o sonho da terra ao ocupar, no final da ditadura de Stroessner, terrenos que o Estado ditatorial havia doado a fazendeiros – as “terras mal havidas”.

A dona do casebre de madeira, um enfermeira, levava comida até o acampamento conhecido como Marina Cué, onde dois dos seus filhos estavam acampando. Quando soube que haveria uma desocupação, apoiou o filho,Pedro (o nome é fictício) que decidiu ficar. A filha, uma moça bonita de 26 anos com nariz grosso e dentes separados, ficou só 15 dias na propriedade, e saiu. Ficou sabendo do massacre pelo rádio. Mesmo assim, por ter tido seu nome na lista encontrada pela polícia, está acusada de assassinato.

Pedro, que estava um pouco afastado do local onde começou o tiroteio, lembra de ter escutado o primeiro disparo. “Ouvimos um barulho, demos uma volta e olhamos para o outro lado. Aí saímos correnedo pelo pasto, nos escondemos na baixada ao lado de um riozinho”. Junto com outros sem-terra, ele então correu para um monte onde ficou até as 5 horas da manhã do dia seguinte, quando retornou para casa e se tornou foragido da justiça.

A família não sabe, mas nos dias anteriores à desocupação travou-se uma pequena batalha dentro da Polícia Nacional, que acabaria selando seu destino. Segundo um chefe policial que participou da operação – cujo nome não será identificado a seu pedido – a polícia sabia que entre os camponeses tinham escopetas. “Eu disse isso inclusive ao comandante (da Policia – Paulino Rojas), que se levasse mais tempo [para entrar ali] porque era perigoso, porque se morre um policial, a cabeça do comandante também cairia. E se morre um camponês, a mesma coisa”, explica o policial, que participou das discussões de cúpula. “Eu lhe disse que enviasse mais gente de inteligência ao lugar para obter mais dados, para que houvesse mais informação [antes de agir]”. Segundo ele, outros chefes policiais também queriam protelar a desocupação, que afinal aconteceu sob pressão da Fiscalía.

“Eu disse ao comandante, quem está por trás de isso? Por que querem tanto fazer isso se temos tempo para cumprir a ordem de desocupação? Podíamos ter levado um ano inclusive… Podíamos argumentar que a polícia não estava em condições de operar, podíamos dizer muitas coisas”. O seu relato é corroborado pelo depoimento de um policial do Grupo Especial Operativo, que consta na investigação oficial, à qual a Pública teve acesso (leia aqui).

Segundo ele, Erven Lovera, comandante da GEO, também queria protelar a desocupação. “O jefe Lovera não queria fazer esse procedimento, ele tinha esse fim-de-semana livre e queria passar o dia dos pais com seus filhos em Assunção, procurou todos os lados para suspender, chamava de cá para lá, mas de todos os lados havia muita pressão de que se tinha que fazer esse procedimento de qualquer maneira”. Lovera foi o primeiro policial a ser morto. Era irmão do chefe de segurança pessoal do então presidente Fernando Lugo.

Do ponto de vista do governo, porém, a atenção deveria ter sido redobrada – e não foi. Isso porque havia informações sobre a possibilidade de um armar-se um conflito, um teatro, na região que chegaram a altas autoridades do governo Lugo. Miguel Lovera, então diretor da Senave (Serviço Nacional de Qualidade e Sanidade Vegetal e Sementes), conta que recebeu informações já em abril. “Eu já havia ouvido rumores semelhantes antes, mas essa informação veio completa. Certos elementos de reputação muito negativa haviam sido vistos na zona. Matadores. Gente a serviço dos donos de terra. Bom, a questão não era apenas que havia ali elementos suspeitos; o rumor já era completo. A informação era: querem produzir um derramamento de sangue para levar Lugo a um juízo político e tirá-lo do poder”.

Outras fontes no governo Lugo confirmam que, meses antes, houvera uma situação semelhante, durante a desocupação de um terreno em Ñacunday, ocupado por cerca de 8 mil famílias sem-terra. Na ocasião, os camponeses foram transferidos para um terreno vizinho, sob intensa crítica da imprensa nacional. “Quando ocorreu o caso Ñacunday nós denunciamos que havia armas de guerra, que havia grupos que se vinham infiltrando e que iam usar qualquer ação da policía para responder. Gerou-se uma situação muito delicada que eu lamento que não sido levada suficientemente a sério, porque faz tempo que gente que quer desestabilizar o governo está buscando provocar este tipo de fato”, afirmou à imprensa Miguel Lopez Perito, chefe do Gabinete de Lugo, no dia seguinte ao conflito de Curuguaty (clique aqui). O líder camponês José Rodriguez, presidente da Liga Nacional de Carperos, confirma: “O Fiscal Geral do Estado, Javier Díaz Verón, e o próprio Presidente da República, Fernando Lugo, foram advertidos, mas não tomaram as precauções correspondentes”.

No Cado de Curuguaty, a reintegração foi realizada, embora não houvesse mandato legal para isso. A ordem, emitida pela fiscal Ninfa Aguilar, extrapolou a ordem judicial emitida pelo juiz José Benites, que era de “allanamiento”, um espécie de “averiguação” para verificar se havia pessoas armadas ou invasores. Ninfa Aguilar, que esteve durante anos à frente da Fiscalia regional, fez repetidos pedidos de reintegração de posse ao longo dos anos. Sua ligação com Don Blas é conhecida, segundo um relatório da organização Plataforma de Estudio e Investigación de Conflictos Campesinos. Ela teria atuado como advogada dele em processos de requisição de posse da terra.

O COMEÇO

No dia 14 de junho de 2012 já estavam na região 324 oficiais da Polícia Nacional de 4 chefaturas de polícia locais, incluindo do Grupo Especial Operativo(GEO), da força de elite da polícia (FOPE), a polícia montada, antimotins e um helicóptero Robinson, para cumprir a ordem de Ninfa Aguilar.

Às sete horas da manhã todo o contingente já estava a postos. Erven Lovera sobrevoou a área com o helicóptero para fazer o primeiro reconhecimento e averiguou que os camponeses tinham armas. Então a força entrou dividida em duas, cada uma por um lado do terreno ocupado.

Roberto – o nome é fictício – outro camponês procurado pela polícia, estava no assentamento para dar apoio a seu filho de 18 anos, que almejava um lote de terra. “Cedinho pela manhã o helicóptero já estava sobrevoando a estância. Havia um grupo com escopetas e um grupo com facões. Nós estávamos com facões. Quisemos falar com eles, mas não havia conversa possível”.

Do alto, o helicóptero gritava pelo megafone que saíssem do local e acionava uma sirene altíssima. “Me surpreendeu a quantidade de policiais porque havia muitas crianças e nós pensávamos que íamos só conversar”, diz Ruben Villalba, cuja esposa e o filho, então com 3 meses, estavam no local na hora em que começou a confusão.

Roberto se lembra do momento exato em que avistou a primeira fila de policiais. “Chegaram, abriram o portão e entraram. Eu não ouvi muito bem porque estava no meio, mas vi quando entraram. Teve um senhor que foi conversar com eles, pedindo para ver o título da terra. Nisso, escutei os disparos vindo o outro lado”.

O motivo da insistência dos sem-terra para ver o título da propriedade do terreno era simples: o tal título não existe. Desde 2004, o terreno é objeto de um tremendo imbróglio jurídico que tem de um lado a empresa Campos Morumbi SA, do falecido Blas N Riquelme, e do outro o Indert, o Instituto de Terras paraguaio.

O terreno foi doado em 1967 para a Armada do Paraguai pela empresa Industrial Paraguaya. Em 2004, a terra foi transferida oficialmente ao Indert. “É quando o poder executivo, através de um decreto, declara o terreno de interesse social, e se destina para reforma agrária”, explica Ignácio Vera, ex-diretor regional do Indert. Pouco depois a empresa Campos Morumbi entrou com um pedido de usucapião – e o pedido foi acatado na justiça local. Ao mesmo tempo, Blas N Riquelme entrou com outro pedido na justiça, para transformar o terreno – totalmente desmatado e com plantações de soja – em uma reserva natural. Este pedido também foi acatado, e o terreno foi registrado como “Reserva Natural Campos Morumbi”.

“Houve um cumplicidade de vários funcionários do Indert e da Escrivania Maior do governo para adquirir a terra de maneira irregular e depois encobrir a manobra”, diz Ignácio Vera. Desde então, o Indert recorre da decisão, tendo feito reiterados pedidos para que não se expulsasse os sem-terra, pois o terreno já deveria ter sido destinado à reforma agrária – como mostra este documento dirigido pelo assessor jurídico à Fiscalia em agosto de 2011 (veja aqui).

Os pedidos do Indert seguiam sendo ignorados pela justiça local, e a pretensa propriedade de Riquelme era evocada em todas as ordens de desocupação, como mostram documentos revisados pela Pública (veja aqui,aqui e aqui).

No dia 4 de janeiro de 2012, a comissão permanente da Câmara dos Deputados, em sessão ordinária, emitiu uma decisão instando o Ministro do Interior do governo Lugo, Carlos Filizzola, a cumprir a demanda da mesma fiscal Ninfa Aguilar, que pedia a descoupação do terreno de 2 mil hectares que, segundo ela, pertencia à empresa Campos Morumbi.

A decisão – clique aqui para ler – foi resultado de um pedido feito pelo deputado colorado Oscar Tuma para que o Congresso desse uma forcinha à fiscal. O motivo alegado para uma intervenção de alto nível – engatilhada pelo próprio Congresso Nacional – seria a preservação do meio ambiente. “Quero ressaltar que essa massa de bosque é valiosa para a República do Paraguai, porque na zona se geram 60% dos manaciais do Rio Acaray”, escreveu Tuma, no requerimento (clique aqui e aqui para ler).

Seis meses depois, o mesmo Tuma foi o principal advogado da acusação a Lugo realizada pelo Congresso. “Um juízo político geralmente se faz quando há mortes”, declarou ele na televisão na véspera do impeachment. “Nós podemos aguentar muita coisa, viemos aguentando muitas coisas que estão entre as causas da acusação, que se deram anos atrás. Mas quando existem mortes…”.




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