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quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Paraguay: a verdade sobre o massacre que derrubou Lugo (III)



O ESTADO, CATIVO

Na região de Canindeyú, o então diretor do Indert Ignácio Vera era próximo dos movimentos camponeses – próximo demais, na visão da polícia e de fazendeiros da região. Tanto que, no dia 15 de junho, em que ocorreu o confronto, teve que sair fugido do local, sob ameaça de morte. O relato oficial que Vera enviou ao seu superior no Indert – veja aqui o documento – revela a fragilidade do Estado paraguaio, que pouca autoridade mantém na região fronteiriça.

“Fui fazer a verificação no lugar mencionado, chegando aproximadamente às 11 horas. Em um controle policial sobre a estrada de asfalto perguntei a direção exata para chegar ao lugar dos fatos juntamente com um veículo do Ministério da Saúde”, escreve Ignacio Vera. “Ao sair em um caminho transversal tomamos um atalho que não era correto e neste ínterim recebi uma chamada pelo telefone para que saísse da zona porque estavam os policiais estavam planejado me matar, especificamente os da GEO (operações especiais). Fomos ao acampamento deles e comentamos com uma policial mulher a gravidade do caso, que se tinha que evitar o enfrentamento entre paraguaios; ao sair da propriedade, onde havia várias pessoas e policiais, apontaram-me as escopetas e disseram-me que saísse dali porque era por minha culpa que estava acontecendo este enfrentamento”.

Vera relembra que saiu correndo do local, com o consentimento de seus superiores no governo federal. Teve que deixar a caminhonete do Indert na sua casa e contar com a ajuda do seu irmão, que o levou, junto com a família, ao município de Caaguazú. “Estava muito preocupado com a situação, porque já compreendi que era um problema de perseguição política, e que podia haver violência em qualquer parte”, disse em entrevista à Pública. Vera ficou alguns dias escondido até poder voltar à região. Um mês depois, já sob o novo governo, do liberal Federico Franco, foi afastado da direção do Indert.

Miguel Lovera, diretor da Senave, também visitou a região naquele mesmo dia – e também teve que ir embora rapidamente. “Eu me comuniquei com os outros ministros, e consultei se devia ir pra Curuguaty, e como não tive respostas, fui para lá e me reuni com dirigentes camponeses. Eles estavam com muito medo, acreditavam que a matança ia continuar. Temiam muito pela minha integridade física. Pediam para que eu não saísse às ruas, ‘não saímos e esperamos o que vai acontecer’, me diziam”.

Pouco depois, a Ministra de Saúde Esperanza Martines, considerada a ministra forte do governo Lugo, chegou a Curuguaty para prestar assistência às vítimas. O cenário que encontrou, segundo contou em entrevista à Pública, era desolador. “Quando cheguei, a polícia estava rodeando o hospital porque havia uma ameaça de que os camponeses iam invadir para levar os corpos dos seus parentes. Os jornalistas andavam livremente nos corredores”, lembra ela. “Os cadáveres dos camponeses estavam todos jogados, ao lado da entrada, e os dos policiais estavam em um quarto nos fundos, resguardados. Depois me inteirei que a polícia somente transportou, nos aviões que chegaram de tardezinha, os policiais feridos e mortos até Assunção, onde se faria a autópsia”.

Esperanza lembra do pânico de um funcionário do seu ministério. “Um profissional de saúde me ligou, ‘vai escurecer, ficaram para trás todos os cadáveres dos camponeses e eu tenho medo que sejam levados embora’”, lembra. “Aí eu liguei para o Fiscal Geral do Estado e lhe disse que me parecia muito suspeito que somente se levassem os cadáveres dos policiais e não dos camponeses. Como se vai investigar? Disse que eu ia fazer uma denúncia internacional”. Ao final, os cadáveres dos camponeses foram levdos nas ambulâncias do Ministério para poderem passar pela autópsia no dia seguinte. Porém, até meados de novembro, os resultados não eram conhecidos.

Naquele mesmo dia, Esperanza teve que voltar correndo a Assunção – “já se estava falando do juízo político no Congresso”, diz – mas tentou, ainda, ajudar alguns moradores com quem teve uma rápida reunião. “Falamos com camponeses, e eles diziam que muita gente estava sendo presa simplesmente por perguntar sobre os feridos”. Não conseguiu fazer nada nos dias seguintes, engajada nas negociações políticas para evitar a destituição de Lugo. Esperanza foi, junto com o chefe de gabinete Lopes Perito, a única ministra a ser mencionada nominalmente no libelo acusatório apresentado pelo Congresso para destituir Fernando Lugo. Os deputados afirmaram que os ministros agiram de forma “absolutamente equivocada” em Curuguaty, ao “tratar de maneira igual policiais covardemente assassinados e aqueles que foram protagonistas destes crimes” – ou seja, os camponeses.

Ainda em Curuguaty, na tarde do dia 15, o jovem Miguel Ángel Correa, de 20 anos, técnico do ministério de Agricultura, foi preso ao chegar ao hospital municipal, onde buscava saber sobre o parente de um amigo seu, ferido durante o conflito. Segundo denúncia da Anistia Internacional, Miguel Ángel não foi só preso, mas torturado pela polícia: na Cadeia Coronel Oviedo, apanhou e foi ameaçado de morte.

Embora não tenha colocado os pés no local onde ocorreu o crime, seu nome consta no duvidoso relato policial como tendo sido detido por ter relação com a ocupação (clique aqui, aqui e aqui para ver). Por conta disso, os primeiros pedidos do seu advogado para que fosse solto – por não ter absolutamente nada a ver com o fato – foram negados pelo juiz (clique aqui para baixar o recurso da defesa). Ele só foi solto um mês depois.

Outros camponeses presos pela polícia tiveram sorte pior, como Felipe Neri Urbina, detido quando tentou acudir um sem-terra que havia sido baleado no tórax e que tentava escapar pela estrada Rota 10. Ou Lúcia Aguero Romero, empregada doméstica que passava alguns dias com seu irmão em um casebre de madeira no terreno ocupado, cuidando do trabalho doméstico. Os dois permanecem presos. “Às 8 horas aproximadamente, vi que vinham muitos policiais ao longe e saí de casa para curiosar; encontrei um senhor com seu filhinho cujo nome não lembro que perguntou se eu podia cuidar da criança para ele ir escutar o que os policiais diziam, deixando comigo o menino”, contou ela em depoimento que consta da investigação da Fiscalía. “Logo de meia hora mais ou menos escutei vários disparos, jogando o menino no matagal (…) quando quis me aproximar me feriram na coxa esquerda e quando me atirei em cima do menino para protegê-lo a polícia chegou e me agarrou” (clique aqui, aqui e aqui para ler) .

Lúcia, junto com outros camponeses, permaneceu em greve de fome por quase 60 dias, em protesto contra a prisão preventiva sem provas nem julgamento, que se prolonga por 5 meses. O estado de saúde dos grevistas é débil – alguns perderam mais de 20 quilos – e, na última semana, eles foram transferidos para um hospital para receber tratamento forçado. Pouco depois, foram autorizados a cumprir sua prisão em domicílio. A situação dos presos gerou protestos na capital Assunção em que dezenas de manifestantes acamparam diante da Fiscalía Geral. Mas, às quatro da madrugada do dia 22 de novembro, os manifestantes foram acordados com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, e expulsos do local. Em nota, a polícia afirmou que a ação se realizou porque “uma via pública não pode ser bloqueada”.
OS FUROS DA INVESTIGAÇÃO. E UMA CÁPSULA DE BALA 5,56

Uma cápsula de projétil dourada, feita de latão militar, com 9,50 mm de diâmetro, pode ser a evidência definitiva de que a investigação do fiscal Jalil Rachid está desconsiderando muitos elementos cruciais.

No dia 2 de outubro, em uma conferência de imprensa Rachid divulgou a conclusão da Fiscalia, de que os agentes policiais caíram em uma emboscada “previamente preparada e planejada” por sem terra armados com rifles, escopetas, foices e machados. Rachid afirmou também que Rubén Villalba é o principal responsável pela tragédia.

Em pouco mais de dois meses de investigação, porém, a Pública teve acesso à cápsula de uma bala 5,56, utilizada em fuzis M16 e carabinas M4 – armas usadas tanto por grupos de elite das forças de segurança do Paraguai como por traficantes que agem na fronteira com o Brasil, onde se trasporta de maconha e eletrônicos até agrotóxicos.

A cápsula foi, segundo testemunhas, encontrada no terreno de Marina Cué pouco depois do conflito. Trata-se de uma cápsula de bala fabricada em 2007 em Lake City Army Ammunition Plant (LCAAP), um complexo militar pertencente ao governo americano em Salt Lake City, no estado de Utah, administrado pela empresa militar privada Alliant Techsystems (ATK). A ATK exporta armas e munições para o Paraguai através da empresa SAKE SACI, segundo registros do governo americano compilados pela consultoria Import Genius. A ATK enviou pelo menos 18 carregamentos até 2012, segundo a Import Genius – que, no entanto, não precisou que tipo de materiais foram exportados. Contatada pela Pública, a ATK se negou a dizer se exporta apenas para forças militares no Paraguai ou também para grupos privados. “A ATK não revela essas informações sobre cada um de seus programas”, afirmou a assessoria de imprensa.

A cápsula de bala 5,56, que permanece em um local seguro no Paraguai, pode ser o único indício de que se utilizaram, no dia do conflito, armas militares – sejam elas pelas forças especiais da polícia ou por francoatiradores contratados. Dezenas de outras cápsulas semelhantes, recolhidas no local, simplesmente desapareceram.

No informe da polícia, ao qual à Pública teve acesso – veja aqui – aparecem apenas dois invólucros de balas 5,56, que não foram periciados porque não foram encontradas as armas correspondentes. No entanto, diante de uma multidão de fotógrafos, o político Julio Colman, detentor de um poderoso vozeirão que todos os dias preenche as ruas de Curuguaty no seu programa de rádio matinal, coletou, e entregou à Fiscalia, diversas cápsulas semelhantes no dia do massacre.

Mesmo assim, o fiscal Rachid continua negando a existência de cápsulas de balas de fuzis automáticos no local, afirmando que “neste caso o número de falecidos teria sido maior”, ao jornal ABC Color. Segundo Rachid, nenhuma arma militar foi utilizada naquela manhã. “Tomei declarações testemunhais dos agentes que intervieram e elas estão anexadas ao relatório fiscal. Todos coincidem em dizer que não utilizaram armas com projéteis reais, nem gás pimenta”, afirmou.

Desde que apresentou suas conclusões em outubro, o fiscal tem sido cada vez mais criticado. Além dos protestos pedindo a libertação dos camponeses, a verdade é que a sua hipótese– de que 70 camponeses teriam emboscado 324 policiais com escopetas de caça – não convenceu ninguém.



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