Adeus aos consensos, ou evitando mudanças profundas em nome do 'bem comum'. |
Sair da armadilha das políticas públicas supostamente consensuais – discurso tão caro ao discurso dos grupos sociais representantes das classes médias e superiores – deve ser tarefa perene dos governos progressistas, uma vez que seus interesses cristalizados, e vocalizados pela grande mídia, têm grande capacidade de vetar mudanças sociais profundas, sempre em nome do “bem comum”!
O artigo é de Francisco Fonseca(*), em Carta Maior
“Políticas públicas” tornou-se uma expressão de domínio comum nos últimos anos, sendo frequente nos discursos eleitorais e governamentais, no debate público, na academia e nas organizações politicamente organizadas da sociedade. Definida de forma minimalista como “o governo em ação”, entre diversas outras definições possíveis, só o são em razão da existência de um projeto definido e da mobilização de recursos orçamentários, humanos, informacionais, legais e logísticos.
Tal profusão de espaços em que é invocada, sempre de forma distinta, faz dessa expressão algo com aparência “neutra” e “consensual”, pois supostamente voltada ao “bem público” e ao “bem-estar social”.
Aparentemente ninguém discordaria de programas – das mais variadas ordens – cujos objetivos seriam minorar e/ou resolver problemas que afetam grande número de pessoas e, consequentemente, o país.
Pois bem, essa imagem “generosa” das políticas públicas, em que todos ganham e ninguém discorda, é não apenas falsa como representa verdadeira armadilha aos reformadores sociais.
O pensamento conservador, representante de majoritários estratos médios e superiores da sociedade brasileira, e paulistana em particular, largamente expresso pela grande mídia, tende a se aproveitar desses supostos consensos como forma de imprimir – aberta ou sorrateiramente – suas demandas. Deve-se enfatizar que a mídia funciona, em certas conjunturas, como nos ensinou Antonio Grasmci, isto é, como “partidos políticos” informais, assertiva confirmada recentemente pela presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Judith Brito.
Mais ainda, no chamado “ciclo das políticas públicas” – constituído por agenda, formulação, implementação, monitoramento e avaliação – cada etapa deste ciclo permite intervenções distintas dos grupos que se sentem, real ou imaginariamente, atingidos. Isso implica a adoção de “vetos”, que se dão de formas distintas dependendo da correlação de forças e dos recursos de poder dos atores em disputa.
Em outras palavras, no mundo real da política “políticas públicas” expressam uma infindável teia de variáveis e interesses, que congregam desde a capacidade técnica de elaborar e implementar um dado programa, as contendas orçamentárias, e as combinações e recombinações de interesses em cada etapa do ciclo. A imagem e a percepção do cidadão comum sobre um determinado projeto e mesmo sobre um determinado governo é, dessa forma, resultado desse complexo processo, mas que tem na mídia – fortemente conservadora e oligopolizada –, reitere-se, um ator fundamental em razão de sua capacidade de intermediar relações sociais aproveitando-se da zona cinzenta que orbita entre interesses privados, que representam, e a “esfera pública”, que intenta representar, à sua maneira.
Tudo somado, há de se ter muita cautela, sobretudo quando grupos progressistas ganham eleições, como é o caso do prefeito eleito de São Paulo, Fernando Haddad, na medida em que o enfrentamento de problemas de grande magnitude como, entre outros, “mobilidade urbana” e “habitação”, implicam necessariamente conflitos. Conflitos que se expressam na dotação orçamentária conferida a uma dada “política pública”, no número e qualificação de servidores envolvidos em sua consecução, no aparato legal e institucional mobilizado, entre outros aspectos.
Nos exemplos citados, a poderosa indústria automobilística – e sua cadeia produtiva – e os grandiosos interesses imobiliários procuram vetar toda e qualquer medida e sobretudo programas governamentais consistentes que inibam seus negócios. São, portanto, pontos de veto que, mesmo no nível subnacional, é fundamental enfrentá-los. Afinal, os avanços nos códigos legais (caso, por exemplo, do Estatuto das Cidades), nas instituições de planejamento e controle (sobretudo a Corregedoria Geral da União e o Ministério Público), particularmente em nível federal e vivenciados no país como um todo, não impediram o crescimento vertiginoso do automóvel como opção prioritária dos governos, assim como da apropriação do território pela “indústria da especulação imobiliária”.
Como se fossem dois vetores em sentido contrário, os avanços legais/institucionais, de um lado, e o privatismo do automóvel e da especulação imobiliária, de outro, têm, até agora, demonstrado clara vitória desses últimos. Muitos dos males de nossas cidades provêm dessa estrutura de poder pouco confrontada política e institucionalmente.
O Governo Haddad, de quem particularmente os pobres muito esperam, como o demonstram os mapas eleitorais, somente será reformador progressista, ideia força pela qual se elegeu, se, mesmo no âmbito municipal houver protagonismo capaz de enfrentar os interesses estabelecidos, notadamente na ocupação do espaço: pelo automóvel particular e pelas habitações de classe média e de luxo, no contexto de toda sorte de apropriação desigual do território.
O fato de o âmbito municipal não ter competência legal para o enfrentamento de diversos problemas urbanos e metropolitanos, um cidade como São Paulo – na verdade, uma espécie de “Cidade-Estado” – tem poder político, econômico e social capaz de enfrentar grandes interesses corporativos empresariais, assim como servir de “ponta de lança” ao próprio governo federal.
Sair da armadilha das políticas públicas supostamente consensuais e generosas – discurso tão caro ao discurso dos grupos sociais representantes das classes médias e superiores – deve ser tarefa perene dos governos progressistas, uma vez que seus interesses cristalizados, e vocalizados pela grande mídia, têm grande capacidade de vetar mudanças sociais profundas, sempre em nome do “bem comum”! O perigo de, em torno da ideia de “bem comum”, os grandes interesses vetarem os dispositivos mais progressistas, é grande.
No caso da mobilidade urbana, corredores de ônibus e a ampliação da frota destes tendem a ser aceitos por esses atores, mas desde que a estrutura de incentivos à indústria automobilística e o livre trânsito do automóvel não sejam tocados. No caso do setor imobiliário, em que o poder público municipal tem maior autonomia, historicamente parte dos vereadores é financiada por ele assim como as leis de zoneamento tendem a ser lenientes a esses grandes interesses: basta observar a transformação dos bairros operários em condomínios de alto luxo em São Paulo, assim como a intensa e progressiva expulsão dos pobres das zonas centrais para as extremas periferias, fenômeno que continua vigente nos dias de hoje.
Nesse sentido, estratégias diversas podem ser adotadas, sem desconsiderar a dinâmica eleitoral advinda doo multipartidarismo flexível que temos, desde que cumpram os compromissos de mudança: priorização do transporte coletivo com desestímulo/punição progressivos ao transporte individual; utilização do Estatuto das Cidades como referência para a reforma urbana; apoio à participação popular; descentralização, por meio das subprefeituras, o que implica orçamento, recursos humanos, capacitação técnica e participação das populações locais nas tomadas de decisão; transparência nas ações governamentais; e capacidade tecno/política para enfrentar os grandes interessantes dominantes.
Esses dois exemplos analisados sintetizam a complexidade de se governar uma cidade como São Paulo, mas, mais que isso, demonstram como “políticas públicas” necessitam ser qualificadas e sobretudo os interesses constituídos – capazes de interferir em todas as etapas do ciclo das políticas públicas –enfrentados!
(*) Cientista político e historiador, professor de ciência política no curso de Administração Pública e Governo na FGV/SP. Autor do livro “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Editora Hucitec, 2005) e organizador, em coautoria, do livro “Controle Social da Administração Pública – cenário, avanços e dilemas no Brasil” (São Paulo, Editora Unesp, 2010), entre outros livros e artigos.
“Políticas públicas” tornou-se uma expressão de domínio comum nos últimos anos, sendo frequente nos discursos eleitorais e governamentais, no debate público, na academia e nas organizações politicamente organizadas da sociedade. Definida de forma minimalista como “o governo em ação”, entre diversas outras definições possíveis, só o são em razão da existência de um projeto definido e da mobilização de recursos orçamentários, humanos, informacionais, legais e logísticos.
Tal profusão de espaços em que é invocada, sempre de forma distinta, faz dessa expressão algo com aparência “neutra” e “consensual”, pois supostamente voltada ao “bem público” e ao “bem-estar social”.
Aparentemente ninguém discordaria de programas – das mais variadas ordens – cujos objetivos seriam minorar e/ou resolver problemas que afetam grande número de pessoas e, consequentemente, o país.
Pois bem, essa imagem “generosa” das políticas públicas, em que todos ganham e ninguém discorda, é não apenas falsa como representa verdadeira armadilha aos reformadores sociais.
O pensamento conservador, representante de majoritários estratos médios e superiores da sociedade brasileira, e paulistana em particular, largamente expresso pela grande mídia, tende a se aproveitar desses supostos consensos como forma de imprimir – aberta ou sorrateiramente – suas demandas. Deve-se enfatizar que a mídia funciona, em certas conjunturas, como nos ensinou Antonio Grasmci, isto é, como “partidos políticos” informais, assertiva confirmada recentemente pela presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Judith Brito.
Mais ainda, no chamado “ciclo das políticas públicas” – constituído por agenda, formulação, implementação, monitoramento e avaliação – cada etapa deste ciclo permite intervenções distintas dos grupos que se sentem, real ou imaginariamente, atingidos. Isso implica a adoção de “vetos”, que se dão de formas distintas dependendo da correlação de forças e dos recursos de poder dos atores em disputa.
Em outras palavras, no mundo real da política “políticas públicas” expressam uma infindável teia de variáveis e interesses, que congregam desde a capacidade técnica de elaborar e implementar um dado programa, as contendas orçamentárias, e as combinações e recombinações de interesses em cada etapa do ciclo. A imagem e a percepção do cidadão comum sobre um determinado projeto e mesmo sobre um determinado governo é, dessa forma, resultado desse complexo processo, mas que tem na mídia – fortemente conservadora e oligopolizada –, reitere-se, um ator fundamental em razão de sua capacidade de intermediar relações sociais aproveitando-se da zona cinzenta que orbita entre interesses privados, que representam, e a “esfera pública”, que intenta representar, à sua maneira.
Tudo somado, há de se ter muita cautela, sobretudo quando grupos progressistas ganham eleições, como é o caso do prefeito eleito de São Paulo, Fernando Haddad, na medida em que o enfrentamento de problemas de grande magnitude como, entre outros, “mobilidade urbana” e “habitação”, implicam necessariamente conflitos. Conflitos que se expressam na dotação orçamentária conferida a uma dada “política pública”, no número e qualificação de servidores envolvidos em sua consecução, no aparato legal e institucional mobilizado, entre outros aspectos.
Nos exemplos citados, a poderosa indústria automobilística – e sua cadeia produtiva – e os grandiosos interesses imobiliários procuram vetar toda e qualquer medida e sobretudo programas governamentais consistentes que inibam seus negócios. São, portanto, pontos de veto que, mesmo no nível subnacional, é fundamental enfrentá-los. Afinal, os avanços nos códigos legais (caso, por exemplo, do Estatuto das Cidades), nas instituições de planejamento e controle (sobretudo a Corregedoria Geral da União e o Ministério Público), particularmente em nível federal e vivenciados no país como um todo, não impediram o crescimento vertiginoso do automóvel como opção prioritária dos governos, assim como da apropriação do território pela “indústria da especulação imobiliária”.
Como se fossem dois vetores em sentido contrário, os avanços legais/institucionais, de um lado, e o privatismo do automóvel e da especulação imobiliária, de outro, têm, até agora, demonstrado clara vitória desses últimos. Muitos dos males de nossas cidades provêm dessa estrutura de poder pouco confrontada política e institucionalmente.
O Governo Haddad, de quem particularmente os pobres muito esperam, como o demonstram os mapas eleitorais, somente será reformador progressista, ideia força pela qual se elegeu, se, mesmo no âmbito municipal houver protagonismo capaz de enfrentar os interesses estabelecidos, notadamente na ocupação do espaço: pelo automóvel particular e pelas habitações de classe média e de luxo, no contexto de toda sorte de apropriação desigual do território.
O fato de o âmbito municipal não ter competência legal para o enfrentamento de diversos problemas urbanos e metropolitanos, um cidade como São Paulo – na verdade, uma espécie de “Cidade-Estado” – tem poder político, econômico e social capaz de enfrentar grandes interesses corporativos empresariais, assim como servir de “ponta de lança” ao próprio governo federal.
Sair da armadilha das políticas públicas supostamente consensuais e generosas – discurso tão caro ao discurso dos grupos sociais representantes das classes médias e superiores – deve ser tarefa perene dos governos progressistas, uma vez que seus interesses cristalizados, e vocalizados pela grande mídia, têm grande capacidade de vetar mudanças sociais profundas, sempre em nome do “bem comum”! O perigo de, em torno da ideia de “bem comum”, os grandes interesses vetarem os dispositivos mais progressistas, é grande.
No caso da mobilidade urbana, corredores de ônibus e a ampliação da frota destes tendem a ser aceitos por esses atores, mas desde que a estrutura de incentivos à indústria automobilística e o livre trânsito do automóvel não sejam tocados. No caso do setor imobiliário, em que o poder público municipal tem maior autonomia, historicamente parte dos vereadores é financiada por ele assim como as leis de zoneamento tendem a ser lenientes a esses grandes interesses: basta observar a transformação dos bairros operários em condomínios de alto luxo em São Paulo, assim como a intensa e progressiva expulsão dos pobres das zonas centrais para as extremas periferias, fenômeno que continua vigente nos dias de hoje.
Nesse sentido, estratégias diversas podem ser adotadas, sem desconsiderar a dinâmica eleitoral advinda doo multipartidarismo flexível que temos, desde que cumpram os compromissos de mudança: priorização do transporte coletivo com desestímulo/punição progressivos ao transporte individual; utilização do Estatuto das Cidades como referência para a reforma urbana; apoio à participação popular; descentralização, por meio das subprefeituras, o que implica orçamento, recursos humanos, capacitação técnica e participação das populações locais nas tomadas de decisão; transparência nas ações governamentais; e capacidade tecno/política para enfrentar os grandes interessantes dominantes.
Esses dois exemplos analisados sintetizam a complexidade de se governar uma cidade como São Paulo, mas, mais que isso, demonstram como “políticas públicas” necessitam ser qualificadas e sobretudo os interesses constituídos – capazes de interferir em todas as etapas do ciclo das políticas públicas –enfrentados!
(*) Cientista político e historiador, professor de ciência política no curso de Administração Pública e Governo na FGV/SP. Autor do livro “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Editora Hucitec, 2005) e organizador, em coautoria, do livro “Controle Social da Administração Pública – cenário, avanços e dilemas no Brasil” (São Paulo, Editora Unesp, 2010), entre outros livros e artigos.
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