O atual “impasse da dívida pública” americana não passa de um detalhe, dentro de uma luta longa e sem quartel que deverá definir os novos objetivos e caminhos estratégicos dos EUA. Como no mundo físico, estas conjunturas são momentos de grande incerteza e indeterminação, dentro de um sistema mundial que se expande e se transforma.
José Luís Fiori*
José Luís Fiori*
“Ao longo das últimas décadas, um conceito novo tem conhecido êxito cada vez maior: a noção de instabilidade dinâmica associada ao 'caos'. Este último sugere desordem, imprevisibilidade, mas veremos que não é assim. É possível (...) incluir o caos nas leis da natureza, mas contanto que generalizemos essa noção para nela incluirmos as noções de probabilidade e de irreversibilidade ”.
Ilya Prigogine, “As leis do caos”, Unesp, SP, 2002, p:8
Fica muito difícil de entender a intensidade do conflito e o impasse nas negociações sobre o “aumento do limite da dívida pública americana”, quando se lê apenas a análise dos economistas, sejam eles democratas ou republicanos, ortodoxos ou keynesianos. Uma vez que todos estão de acordo com o aumento do teto da dívida, e com a necessidade de cortar gastos e aumentar impostos. Ainda que discordem sobre as dimensões e sobre o ritmo de implementação destas medidas e, mais ainda, sobre a distribuição dos seus custos, dentro da sociedade americana, que apesar disto, segundo as pesquisas, permanece indiferente com relação ao debate. Talvez, porque a população intua que o conflito não tem a ver com a questão da “dívida pública” e dos “desequilíbrios fiscais”, e envolva desacordos muito mais sérios, que transcendem o campo da economia e das disputas partidárias convencionais.
Divergências profundas, dentro do próprio establishment americano, que só reaparecem periodicamente, em momentos de grandes mudanças mundiais, e, como consequência, na hora de redefinição da estratégia política e econômica, nacional e internacional, do estado norte-americano. Ou, pelo menos, foi o que aconteceu em três momentos cruciais da histórias americana do século XX. Começando pela divisão da sociedade e da elite política norte-americana - antes e depois da Primeira Guerra Mundial - que acabou afastando os EUA da Liga das Nações, e de todas as negociações internacionais que poderiam ter impedido a Grande Crise Econômica, da década de 30, que acabou atingindo em cheio a própria economia americana.
O mesmo voltou a acontecer, antes e depois da Segunda Guerra Mundial, quando o establishment e a sociedade americana dividiram-se de cima abaixo, com relação à própria Guerra, e depois da II Guerra, com relação à estratégia de cerco e isolamento da URSS, e com relação à ordem econômica desenhada em Bretton Woods. Depois da década de 50, a estratégia geopolítica americana pacificou a Europa, e os acordos de Bretton Woods, permitiram a reconstrução do Velho Continente e do Japão, promovendo um crescimento econômico assimétrico mas contínuo, da economia mundial.
Na década de 70, entretanto, os Estados Unidos foram derrotados no Vietnã e sofreram sucessivos revezes políticos e diplomáticos. E no campo econômico, tiveram que abandonar o sistema monetário que tinham criado, em Bretton Woods. Foi uma crise dura e profunda, mas foi também o momento e a oportunidade, em que os Estados Unidos mudaram a sua política econômica internacional. A nova estratégia levou à superação da crise e à uma reviravolta dentro do sistema mundial, mas sua definição tomou uma década – pelo menos – de divisão e de lutas intestinas, em torno da Guerra do Vietnã, da crise do Dólar, do Petróleo, do Oriente Médio, etc. Passando pela retirada da Indochina, pelo fim da convertibilidade ouro-dólar, pela renúncia do presidente Nixon, e pela imensa fragilidade e desorientação dos governos de Gerald Ford e Jimmy Carter, que abriram as portas para a restauração conservadora de Ronald Reagan.
Agora de novo, na primeira década do século XXI, os revezes da política externa americana, somados aos efeitos nacionais e internacionais de sua crise econômica implodiram a coalizão de poder e o consenso dominante, desde a década de 1980, incluindo republicanos e democratas. O mais provável é que esta implosão dê lugar a um longo período de fragmentação de forças e posições, com um nível crescente de conflito e radicalidade, até que seja possível a formação de um novo consenso, como ocorreu no passado. Desta vez, entretanto, o processo será mais complexo, porque apesar das semelhanças, agora o poder americano é muito maior, e sua inserção internacional envolve disjuntivas diferentes, e incompatíveis, nos vários tabuleiros geopolíticos e econômicos do mundo.
Pode parecer paradoxal, mas o aumento do poder global dos EUA, internacionalizou sua política e sua economia, mais do que em qualquer outro país, aumentando a complexidade e confundindo seus conflitos externos, com suas lutas internas. Por isto, não existe a possibilidade, de uma simples repetição do passado, e o único absolutamente seguro, é que o atual “impasse da dívida pública” americana não passa de um incidente e de um detalhe, dentro de uma luta longa e sem quartel que deverá definir os novos objetivos e caminhos estratégicos dos EUA. Como no mundo físico, estas conjunturas são momentos de grande incerteza e indeterminação, dentro de um sistema mundial que se expande e transforma, apesar de suas recorrências.
José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ilya Prigogine, “As leis do caos”, Unesp, SP, 2002, p:8
Fica muito difícil de entender a intensidade do conflito e o impasse nas negociações sobre o “aumento do limite da dívida pública americana”, quando se lê apenas a análise dos economistas, sejam eles democratas ou republicanos, ortodoxos ou keynesianos. Uma vez que todos estão de acordo com o aumento do teto da dívida, e com a necessidade de cortar gastos e aumentar impostos. Ainda que discordem sobre as dimensões e sobre o ritmo de implementação destas medidas e, mais ainda, sobre a distribuição dos seus custos, dentro da sociedade americana, que apesar disto, segundo as pesquisas, permanece indiferente com relação ao debate. Talvez, porque a população intua que o conflito não tem a ver com a questão da “dívida pública” e dos “desequilíbrios fiscais”, e envolva desacordos muito mais sérios, que transcendem o campo da economia e das disputas partidárias convencionais.
Divergências profundas, dentro do próprio establishment americano, que só reaparecem periodicamente, em momentos de grandes mudanças mundiais, e, como consequência, na hora de redefinição da estratégia política e econômica, nacional e internacional, do estado norte-americano. Ou, pelo menos, foi o que aconteceu em três momentos cruciais da histórias americana do século XX. Começando pela divisão da sociedade e da elite política norte-americana - antes e depois da Primeira Guerra Mundial - que acabou afastando os EUA da Liga das Nações, e de todas as negociações internacionais que poderiam ter impedido a Grande Crise Econômica, da década de 30, que acabou atingindo em cheio a própria economia americana.
O mesmo voltou a acontecer, antes e depois da Segunda Guerra Mundial, quando o establishment e a sociedade americana dividiram-se de cima abaixo, com relação à própria Guerra, e depois da II Guerra, com relação à estratégia de cerco e isolamento da URSS, e com relação à ordem econômica desenhada em Bretton Woods. Depois da década de 50, a estratégia geopolítica americana pacificou a Europa, e os acordos de Bretton Woods, permitiram a reconstrução do Velho Continente e do Japão, promovendo um crescimento econômico assimétrico mas contínuo, da economia mundial.
Na década de 70, entretanto, os Estados Unidos foram derrotados no Vietnã e sofreram sucessivos revezes políticos e diplomáticos. E no campo econômico, tiveram que abandonar o sistema monetário que tinham criado, em Bretton Woods. Foi uma crise dura e profunda, mas foi também o momento e a oportunidade, em que os Estados Unidos mudaram a sua política econômica internacional. A nova estratégia levou à superação da crise e à uma reviravolta dentro do sistema mundial, mas sua definição tomou uma década – pelo menos – de divisão e de lutas intestinas, em torno da Guerra do Vietnã, da crise do Dólar, do Petróleo, do Oriente Médio, etc. Passando pela retirada da Indochina, pelo fim da convertibilidade ouro-dólar, pela renúncia do presidente Nixon, e pela imensa fragilidade e desorientação dos governos de Gerald Ford e Jimmy Carter, que abriram as portas para a restauração conservadora de Ronald Reagan.
Agora de novo, na primeira década do século XXI, os revezes da política externa americana, somados aos efeitos nacionais e internacionais de sua crise econômica implodiram a coalizão de poder e o consenso dominante, desde a década de 1980, incluindo republicanos e democratas. O mais provável é que esta implosão dê lugar a um longo período de fragmentação de forças e posições, com um nível crescente de conflito e radicalidade, até que seja possível a formação de um novo consenso, como ocorreu no passado. Desta vez, entretanto, o processo será mais complexo, porque apesar das semelhanças, agora o poder americano é muito maior, e sua inserção internacional envolve disjuntivas diferentes, e incompatíveis, nos vários tabuleiros geopolíticos e econômicos do mundo.
Pode parecer paradoxal, mas o aumento do poder global dos EUA, internacionalizou sua política e sua economia, mais do que em qualquer outro país, aumentando a complexidade e confundindo seus conflitos externos, com suas lutas internas. Por isto, não existe a possibilidade, de uma simples repetição do passado, e o único absolutamente seguro, é que o atual “impasse da dívida pública” americana não passa de um incidente e de um detalhe, dentro de uma luta longa e sem quartel que deverá definir os novos objetivos e caminhos estratégicos dos EUA. Como no mundo físico, estas conjunturas são momentos de grande incerteza e indeterminação, dentro de um sistema mundial que se expande e transforma, apesar de suas recorrências.
José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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