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terça-feira, 19 de julho de 2011

Exercícios de crítica de cinema



O retrato de Dorian Gray, de Oliver Parker (direção). Reino Unido, 2009, cor. 122 min.


Fac-símile do único romance de Oscar Wilde, o filme tenta resgatar o tema do pacto faustiano no ambiente lúgubre da Londres vitoriana. O herói do título, como sabem os que leram o livro, vende a alma ao diabo, em troca das únicas coisas que valeriam a pena ter: beleza e juventude. E para sempre! Por força deste pacto, é o retrato que vai envelhecer no lugar do retratado, absorvendo as marcas e agruras sucessivamente sustentadas por Dorian, o personagem do título.

A obra de Oscar Wilde - ele mesmo um personagem emblemático da atitude da juventude londrina à moral vitoriana, com sua homossexualidade assumida e seu ares de pouco caso a moral vigente, tem resistido à passagem do tempo, como se ela própria representasse o retrato da trama.

A sociedade vitoriana envelheceu, Londres se tornou um lugar cosmopolita e de enorme diversidade sexual, o autor já se foi, mas seu romance se pereniza como um relato das relações entre os homens e suas épocas, entre o indivíduo e o produto maior que é a sua trajetória de vida.

Rica de sentidos e interpretações na literatura, a história de Dorian, no entanto, vai sofrer nas mãos do diretor Oliver Parker, sua transformação num pastiche de horror de segunda mão e em algo mais próximo do que chamaríamos de pornôsoft. Ainda que alguns cortes secos na elaboração do ritmo e planos em primeira pessoa esboçam pretensão autoral, o filme rapidamente submerge no oceano de macetes e clichês, que faz um suceder de imagens assumir tons bastante artificiais, óbvios e, até, ridículos:: orgias com cobras e danças africanas, ruas cinzentas com mendigos e assassinos, mansão com sótão mal-assombrado, pesadelos misteriosos em flash-back. A reconstituição de Londres com CGI reforça o chavão geral: o fog, as chaminés, o lúgubre Tâmisa, uma atmosfera sinistra onde Jack Estripador poderia surgir de qualquer esquina.

Os personagens do livro se retraem a pálidos reflexos de si mesmos. A alma torturada do Dorian original reaparece em "ceninhas" básicas de choro, mais afeitas a figuras descentradas, dândis sem rumo, ou o que o pastiche geral faz chamar a expressão 'gays' no jargão "bibas". O pintor Basil não tem melhor sorte: é enquadrado numa espécie de "homonormatividade", em si bastante dissonante da obra de Wilde. O filme também revisita Lord Henry Wotton, agora um aristocrata amargurado e hipócrita, que manipula o protagonista. Até poderia funcionar, não fosse o roteiro, que chega a colocá-lo fazendo apostas sobre o desempenho sexual do pupilo (uma das piores seqüências).

Se o Lord Henry interpretado por George Sanders, na versão em preto-e-branco de 1945, lia Flores do Mal, este parece viciado em canais "B" de filmes pornôs igualmente classificáveis com tal letra. De fato, sem rascunho de lascívia, as cenas (pretensamente) eróticas perdem até para séries televisivas da BBC e novelas "globais".

A impressão que fica é de que Parker adaptou O retrato de alguma sinopse para vestibulandos preguiçosos. Se o romance de 1890 abordava desde o estatuto da arte representativa até as relações de classe e sua imagem, no coração do capitalismo industrial, o filme de 2009 é tão oco quanto o personagem epônimo, e ainda por cima sem charme. Como diria o escritor, não é questão de ser moralista: é ruim mesmo!

Incrível como basta invocar títulos da boa literatura que qualquer charlatão com uma câmera consegue levar-nos ao cinema. Em suma: não saia de casa por ele, nem mesmo para ir a locadora da esquina num domingo chuvoso e carregado de tédio.



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