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segunda-feira, 30 de abril de 2012

A caminho da verdadeira abolição

Algumas vezes me manifestei aqui a respeito do Supremo Tribunal Federal, para mencionar procedimentos no mínimo discutíveis, nem sempre ajustados com os interesses da sociedade, no seu clamor por justiça. 

Em alguns momentos, coloquei mesmo em dúvida – como ainda coloco – não só a forma de escolha de seus membros como a natureza vitalícia dos cargos. Muito recentemente, um dos seus ministros, referindo-se ao presidente do STF que acabara de deixar o cargo máximo da Corte, acusou-o de tentativas de manipulação das decisões lá prolatadas, algo tão inadmissível como o bate-boca que então se instaurou a respeito do assunto...

Felizmente, porém, nem tudo são espinhos nessa área. Trago agora novamente o STF aqui para o meu texto, mas com outro objetivo, que é de enaltecimento de uma das suas mais dignas e justas decisões. Refiro-me àquela que considerou válido o sistema de reserva de vagas (conhecidas como “cotas”) para o ingresso dos afrodescendentes em nossas universidades, em julgamento provocado por ação impetrada pelo DEM – e não por acaso... – que arguia a ilegalidade da medida, por uma série de “inconstitucionalidades” invocadas, com argumentos vários, como a desvalorização da meritocracia, o risco da/ afirmação de uma visão racista, o desrespeito à autonomia universitária, e diversos outros que, no fundo, escondem a hipocrisia ancestral de confundir letras mortas da lei com a realidade, “presumindo” igualdades cuja negação a prática do nosso cotidiano denuncia a cada instante.

A causa em questão não é apenas a causa de um grupo étnico historicamente penalizado e discriminado em nosso país. É uma luta de profundo sentido ideológico, um embate de cidadania, que envolve princípios de afirmação da diversidade e de respeito humano à alteridade. É mais um capítulo dessa saga que, partindo da ignomínia da escravidão, ainda espalha cicatrizes odiosas nos direitos mais fundamentais devidos aos componentes da sociedade humana.

Foi em nosso país que, nas Américas, a escravatura experimentou o maior período de duração. Fomos o último dos países americanos que a extinguiu. E como as razões utilitárias de sua extinção não passaram por preocupações que buscassem então, paralelamente, as indispensáveis possibilidades de integração dos alforriados à sociedade, o que se vê, de lá para cá, é a disfarçada perpetuação de um desnível social degradante, que – alguém já o disse – transformou os “escravos do senhor” em “escravos do sistema”.

Argumentar com algo que nos remete à discutível tese do “homem cordial brasileiro” para afirmar que inexiste o preconceito racial no país, ou que as oportunidades são iguais para todos, ou que a etnia branca não deve responder pelo problema dos negros, que já teriam vindo da África como escravos (tese defendida, por exemplo, pelo Senador Demóstenes Torres), parece ser discurso de quem ou não quer ver a realidade circundante com os olhos da verdade (os ingênuos, os alienados, os desinformados), ou, pior, de quem gostaria de que ela permanecesse como é (visão etnocêntrica, elitista, opressora, racista – pode-se escolher o adjetivo).

O sistema de cotas faz parte do que se deve reconhecer como ações afirmativas, políticas de Estado eficazes que se destinam a corrigir ou remediar desvantagens sociais provocadas por estigmas preconceituosos. Tem como belíssimo fundamento a constatação de que, para corrigir - sem verborragias paliativas, mas com atitudes concretas - distorções que só podem envergonhar a nossa sociedade – e que saltam aos olhos- é preciso dar tratamento desigual para os desiguais. E de forma até radical (para quem quiser entender assim), porque essa é uma situação que nos lembra, analogicamente, a frase de Betinho,cunhada nos anos 90: “Quem tem fome tem pressa”.

As cotas não são as melhores opções, não são soluções mágicas e são conjunturais . Bem melhor seria que já dispuséssemos de todos os mecanismo de igualdade e de inclusão que as tornassem desnecessárias . Elas são, porém, um auspicioso episódio no longo percurso ainda a trilhar, em que não se devem esquecer, além dos afrodescendentes, todos os outros segmentos desvalidos na sociedade, que estão a exigir outras medidas de implantação da democracia plena. Não se pode deixar de considerar, porém, para que se perceba o que está em jogo em ações como essa, que, no segmento dos 10% dos brasileiros mais pobres, 75% deles são negros ou pardos.

Para terminar, um argumento trazido ao pleito pelos estudantes do Diretório Acadêmico da UERJ (primeira universidade que instituiu as cotas entre nós), e confirmado por autoridades educacionais que se debruçam sobre a matéria: já decorridos 10 anos da aplicação do critério, a percepção é de que, além de possibilitar um ambiente universitário mais democrático (a Universidade pública é do povo), a presença dos cotistas revela, objetivamente, que esses estudantes têm sabido aproveitar as oportunidades que lhe foram concedidas, com desempenhos de superação que os colocam no mesmo nível dos não cotistas, quando não em patamar superior a estes.

A decisão do STF é para ficar nos anais da história desse país, que, mesmo às vezes a passos vagarosos, vai buscando caminhos para a superação de suas gritantes injustiças sociais. 


Rodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.Direto da Redação.



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