No submundo controlado pelo bicheiro, interesse inconfessáveis e a volúpia pelo poder.
CartaCapital
Por Leandro Fortes
Solitário e deprimido em uma cela de 12 metros quadrados no presídio federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, o bicheiro Carlinhos Cachoeira mal consegue acreditar no estrago que causou ao ser preso em 29 de fevereiro, alvo principal da Operação Monte Carlo, da Polícia Federal. A temperatura do xadrez onde vive oscila entre 35 e 40 graus centígrados, a depender dos humores do sol potiguar, mas nem de longe se assemelha ao calor do inferno político causado pelos vazamentos das escutas telefônicas da PF e pela consequente CPI Mista que se avizinha no Congresso Nacional.
Transformada em praça de guerra antes mesmo de ser instalada, a CPI do Cachoeira promete dar um nó nas relações entre governo e oposição, em pleno ano eleitoral, e lançar luzes sobre vários episódios passados durante o governo Lula. A começar pela explosão e os desdobramentos do escândalo vulgarmente chamado de “mensalão”. A ameaça de que a comissão revolva as entranhas das relações entre o jornalismo autointitulado investigativo e o submundo da arapongagem e da contravenção, a ponto de expor os reais interesses de ambos, jornalismo e contravenção, talvez explique a esquizofrenia da cobertura midiática do atual escândalo da República.
Nos últimos dias, “mancheteiros”, editores e colunistas variados que até há pouco tempo pareciam sonolentos se lançaram em uma clara campanha de intimidação, a apontar os riscos ou os supostos motivos ocultos da instalação da CPI. Seria, dizem em coro, uma tentativa do PT de encobrir o julgamento do mensalão. Como se os fatos por si e sua extensão não justificassem uma CPI. Por bem menos, comissões de inquéritos são instaladas em Brasília.
Não por acaso, o principal personagem dessa tragicomédia nacional, o senador Demóstenes Torres, ex-DEM, cuja cassação em plenário é uma morte anunciada, tem sido relegada pelo noticiário a segundo plano. O mesmo se dá com o governador tucano de Goiás, Marconi Perillo, brindado com generosos espaços para sua defesa, ao contrário dos demais acusados.
A nota à imprensa distribuída pelo presidente do PSDB, Sérgio Guerra, na quinta-feira dia 12 dá o tom da reedição da velha aliança entre a mídia e a oposição. No texto, Guerra garante que os tucanos apoiam a CPI do Cachoeira, defende uma “apuração ampla que alcance todos os agentes públicos e privados”, mas foca na necessidade de ir para cima de representantes do PT, como o governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, e o deputado Rubens Otoni (PT-GO). Nenhuma linha sobre Perillo ou a respeito de outro influente tucano goiano, o deputado federal Carlos Alberto Lereia, metido com a quadrilha de Cachoeira.
Mais adiante, Guerra acusa a mobilização em torno da CPI como um movimento para evitar o julgamento do mensalão – tese preferida da mídia. “O mensalão foi desvendado há sete anos e até hoje ninguém foi punido”, reclama, com razão a respeito da demora do julgamento. E emplaca uma tese tortuosa: o esforço do PT em reabilitar vários dos 37 acusados no processo do STF “certamente contribuiu para que outros contraventores como Cachoeira continuassem agindo, confiando na impunidade de crimes contra o patrimônio público”. Ou seja, segundo Guerra, a inclinação criminosa de Cachoeira, embora desenvolvida em todo o seu esplendor em parceria com um velho aliado do PSDB, o senador Torres, está diretamente ligada à impunidade dos mensaleiros petistas.
A melhor resposta do PT e da base aliada, caso queiram mesmo esclarecer os fatos, seria levar a CPI às últimas consequências, sem poupar ninguém. À semelhança de Perillo, o governador Agnelo Queiroz (PT-DF) deve muitas explicações a respeito de suas relações com o bicheiro. Uma interceptação telefônica da Polícia Federal sugere uma tentativa do petista de se aproximar de Cachoeira. Em um grampo de 16 de junho de 2011, o araponga Idalberto Matias, o Dadá, refere-se a um certo “01” e “Magrão”. Estes seriam, segundo a PF, apelidos de Queiroz no meio da quadrilha. No telefonema, Dadá afirma ter conversado com o ex-subsecretário de Esporte do DF João Carlos Feitoza, conhecido como Zunga. Marcavam um encontro entre Cachoeira e o “01”. “O Zunga me ligou aqui. Tá querendo falar com você que o chefe dele, o 01, o Magrão, quer falar com você”, afirma o araponga.
Queiroz nega ter conversado com Cachoeira, desdenha das acusações e acusa a oposição de fazer uma “tentativa desesperada”de incluir o PT nas denúncias, mas há elementos comprometedores nessa história. Além de ter trabalhado no governo do Distrito Federal, Zunga teve participação na campanha de Cláudio Monteiro, ex-chefe de gabinete de Queiroz, deputado distrital pelo PRP em 2010. Monteiro foi obrigado a se demitir do cargo na terça-feira 10 depois de o Jornal Nacional divulgar uma escuta telefônica em que Dadá conversa com o diretor da Delta Construções, Cláudio Abreu. Na conversa, o araponga trata da nomeação de cargos da estatal de coleta de lixo do Distrito Federal, a Serviço de Limpeza Urbana (SLU). Caso emplacasse um nome da turma de Cachoeira, Dadá receberia 20 mil pelo serviço.
Revelada pelo site do Jornal do Brasil, a participação da Delta Construções no esquema de Cachoeira serviu ainda para tirar do foco as ligações do PSDB e do DEM com o bicheiro e, outra vez, jogar o noticiário nas costas do governo Dilma Rousseff. A empreiteira foi a que mais recebeu recursos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) até agora. Do total de 11,8 bilhões de reais gastos pelo governo federal neste ano, a Delta Construções recebeu a maior fatia, um montante de 254,6 milhões de reais. Segundo grampos da Operação Monte Carlo, Cachoeira tentava saber antecipadamente sobre investigações e ações judiciais contra a Delta, dona de contratos com inúmeros governos estaduais e municipais do PT, PMDB e PSDB. Cláudio Abreu, diretor da empreiteira no Centro-Oeste, aparece em diversas escutas telefônicas em conversas com integrantes da quadrilha.
Protógenes Queiroz, deputado federal pelo PCdoB de São Paulo, foi outro que entrou na mira. Primeiro parlamentar a requerer formalmente a instalação de uma comissão de inquérito para apurar as estripulias de Cachoeira, Protógenes teve o nome ligado ao caso a partir de escutas telefônicas reveladas pelo jornal O Estado de São Paulo. Nas gravações, o deputado aparece em conversa, no ano passado, com Dadá, com quem trabalhou na Operação Satiagraha, de 2008, que prendeu o banqueiro Daniel Dantas. As conversas nada tinham a ver com os negócios da quadrilha. Sua divulgação parece uma tentativa de constranger o deputado e, mais uma vez, sustentar a tese de que a Satiagraha foi conduzida de forma ilegal. É uma das tantas balas perdidas, das vendetas comuns durante CPIs.
Alvo de 32 processos administrativos da Polícia Federal durante a gestão do ex-diretor geral Luiz Fernando Corrêa, Protógenes Queiroz, nos grampos, orienta Dadá a como se comportar nos depoimentos a serem dados na corregedoria da PF. Ainda funcionário da Agência Brasileira de Inteligência à época da Satiagraha, Dadá foi um dos arapongas oficiais recrutados pelo delegado para dar suporte à operação. Mas o vazamento das gravações deverá servir para afastar o deputado do PcdoB da composição da CPI do Cachoeira, o que agrada tanto à oposição quanto ao Palácio do Planalto. O delegado foi afastado da Satiagraha, logo depois da prisão de Dantas, por ser considerado “incontrolável” pelo PT. “Desafio qualquer um a mostrar alguma ligação minha com Cachoeira ou qualquer outro bandido”, rebateu o parlamentar.
A cortina de fumaça em torno da CPI do Cachoeira tem como questão central o esvaziamento da futura cobertura do julgamento do mensalão, se ele vier mesmo a acontecer neste ano, antecipadamente prejudicado pela proximidade de uma comissão que deverá tomar conta do noticiário, gostem ou não os meios de comunicação. Desde o início do ano, as redações dos maiores jornais, revistas e tevês do País têm se planejado para a cobertura, a partir de pesquisas antecipadas, definição de equipes e formulação de pautas especiais. O show previsto para o noticiário começou a fazer água a partir do vazamento da informação de que o jornalista Policarpo Júnior, diretor da sucursal da Veja em Brasília, manteve cerca de 200 ligações telefônicas com o bicheiro, segundo a PF.
A relação, se exposta em toda a sua extensão, poderá trazer à tona não somente os métodos pouco jornalísticos usados pela semanal da Abril para fazer reportagens a partir de um esquema clandestino de arapongagem, mas a participação da revista na construção do escândalo do mensalão. O pontapé inicial do caso foi o vídeo, gravado por arapongas de Cachoeira em 2005, do pagamento de suborno ao ex-diretor dos Correios Maurício Marinho, indicado pelo PTB, presidido pelo deputado cassado Roberto Jefferson.
A fita foi parar na Veja, mais precisamente nas mãos de Policarpo Junior. Certo de que o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu, também deputado cassado no rastro do escândalo, estava por trás da trama, Jefferson resolveu denunciar a existência do tal pagamento mensal do governo Lula para deputados da base aliada.
Em setembro do ano passado, ao apresentar sua defesa no STF, Jefferson negou a existência do mensalão e afirmou que a expressão era apenas “retórica”. Um dos grampos da PF demonstra com precisão a ligação da quadrilha de Goiás com a Veja. Em uma conversa com o araponga Jairo Martins, cinegrafista do pagamento ao ex-diretor dos Correios, Cachoeira revela o seguinte: “Porque os grandes furos do Policarpo fomos nós que demos, rapaz. Todos eles fomos nós que demos”.
O mais recente deles pode ter sido, segundo informações da PF, a capa da Veja na qual aparecem imagens de uma romaria de ministros e parlamentares roubadas do circuito interno de um hotel de Brasília onde José Dirceu mantém um escritório de trabalho. Para fazer a “reportagem”, o repórter Gustavo Ribeiro, da sucursal de Brasília, usou dos mesmos métodos da quadrilha: tentou invadir o quarto do ex-ministro, mas foi surpreendido por uma camareira. A Polícia Civil do Distrito Federal chegou a investigar a ação do jornalista, mas o caso acabou arquivado. Por essas e outras, o deputado Fernando Ferro (PT-PE) anunciou o intuito de apresentar um requerimento à CPI do Cachoeira para ouvir o empresário Roberto Civita, dono da Editora Abril.
Enquanto isso, as denúncias não param de pipocar. A mais recente atribui a Cachoeira a nomeação de vários coronéis da Polícia Civil de Goiás. Chamado de “a farra dos coronéis”, o esquema tinha por objetivo criar um sistema de proteção às bancas de jogos ilegais no estado. Descobriu-se ainda que um dos sócios do bicheiro, Rossine Aires Guimarães, doou 4,3 milhões de reais a campanhas do PSDB, DEM e PMDB em 2010. Na esteira das denúncias, Perillo demitiu sua chefe de gabinete, Eliane Pinheiros, por ligações com a quadrilha. Ainda assim o governador declara mal conhecer Cachoeira e de ter estado com ele apenas em três oportunidades, sempre em eventos sociais.
Na quarta-feira 11, o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT-RS), e o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), acertaram os ponteiros para a instalação da CPI. Objetivamente, a Comissão investigará as relações de parlamentares e funcionários de outros poderes com o bicheiro, além de incluir agentes do setor privado (a Delta Construções) e da mídia (a revista Veja). Maia prometeu uma atuação “ampla” e negou haver algum temor dentro do governo em relação ao rumo das investigações. Segundo ele, o caso é grave demais para ser tratado dessa forma. “Estamos diante de uma articulação de poder à revelia do Estado brasileiro, e que montou uma teia, uma rede de contatos, de relações, tentando influenciar na decisão de órgãos públicos ligados ao poder público, ao Legislativo, ao Judiciário e também à imprensa”, disparou o presidente da Câmara.
Imagina-se que a CPI terá ainda o interesse em entender o motivo de o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, manter dentro de uma gaveta por longo tempo – e sem maiores razões – as denúncias contra o senador Demóstenes Torres. E talvez, em um ato de ousadia, tateie as relações do parlamentar com o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. Para quem não se lembra, Torres e Mendes protagonizaram o episódio do suposto grampo (até hoje sem áudio) que levou ao afastamento do delgado Paulo Lacerda da direção da Abin e que serviu de pretexto para derrubar a Satiagraha.
Em um movimento claramente articulado, pouco antes da reunião de Maia com Sarney, o ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, afirmou desconhecer os bastidores da criação da CPI. Carvalho apressou-se, porém, em dizer que os trabalhos da futura comissão não vão intimidar o governo Dilma. Segundo ele, a presença de petistas no escândalo não vai mudar a atitude do Palácio do Planalto em relação ao caso. O vice-presidente Michel Temer bateu na mesma tecla. Segundo ele, o governo não “moveu uma palha” pela comissão.
Pelo acordo firmado entre Maia e Sarney, a CPI deverá ter 22 titulares e 22 suplentes. Os partidos começaram a se articular para indicar nomes à comissão, sobretudo no bloco de oposição. No DEM, ou no que sobrou do partido, o líder na Câmara, ACM Neto, anunciou a participação do deputado gaúcho Onyx Lorenzoni, trompetista da banda udenista que fez a festa na CPI dos Correios em 2005. No Senado, o líder do PT, Walter Pinheiro, articula as indicações de Wellington Dias, ex-governador do Piauí, e José Pimentel, ex-ministro da Previdência Social. O PSDB deverá indicar seu quadro mais atuante, o senador Aloysio Nunes Ferreira. Na Câmara, é certa a participação do deputado Fernando Francischini (PSDB-PR), delegado da Polícia Federal com grande experiência no combate ao crime organizado.
Enquanto isso, o cadafalso de Demóstenes Torres começa a ser erguido. Na terça-feira 10, na falta de uma definição do PMDB, que deveria indicar um nome para a presidência do Conselho de Ética do Senado, os líderes dos partidos decidiram seguir o regimento interno e designaram para a vaga o integrante mais velho do conselho, o senador Antonio Carlos Valadares (PSB-ES). Em menos de 24 horas, Valadares ordenou a instalação de processo contra o colega sem partido.
O relator do caso será o senador Humberto Costa (PT-PE). Valadares será o responsável por conduzir o pedido do PSOL de abertura de processo de quebra de decoro contra Torres. Em uma rápida e calculada aparição, o senador goiano prometeu se defender e provar sua inocência, apesar do caminhão de evidências de sua ligação com Cachoeira, de quem era uma espécie de empregado de luxo com mandato parlamentar.
Por Leandro Fortes
Solitário e deprimido em uma cela de 12 metros quadrados no presídio federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, o bicheiro Carlinhos Cachoeira mal consegue acreditar no estrago que causou ao ser preso em 29 de fevereiro, alvo principal da Operação Monte Carlo, da Polícia Federal. A temperatura do xadrez onde vive oscila entre 35 e 40 graus centígrados, a depender dos humores do sol potiguar, mas nem de longe se assemelha ao calor do inferno político causado pelos vazamentos das escutas telefônicas da PF e pela consequente CPI Mista que se avizinha no Congresso Nacional.
Transformada em praça de guerra antes mesmo de ser instalada, a CPI do Cachoeira promete dar um nó nas relações entre governo e oposição, em pleno ano eleitoral, e lançar luzes sobre vários episódios passados durante o governo Lula. A começar pela explosão e os desdobramentos do escândalo vulgarmente chamado de “mensalão”. A ameaça de que a comissão revolva as entranhas das relações entre o jornalismo autointitulado investigativo e o submundo da arapongagem e da contravenção, a ponto de expor os reais interesses de ambos, jornalismo e contravenção, talvez explique a esquizofrenia da cobertura midiática do atual escândalo da República.
Nos últimos dias, “mancheteiros”, editores e colunistas variados que até há pouco tempo pareciam sonolentos se lançaram em uma clara campanha de intimidação, a apontar os riscos ou os supostos motivos ocultos da instalação da CPI. Seria, dizem em coro, uma tentativa do PT de encobrir o julgamento do mensalão. Como se os fatos por si e sua extensão não justificassem uma CPI. Por bem menos, comissões de inquéritos são instaladas em Brasília.
Não por acaso, o principal personagem dessa tragicomédia nacional, o senador Demóstenes Torres, ex-DEM, cuja cassação em plenário é uma morte anunciada, tem sido relegada pelo noticiário a segundo plano. O mesmo se dá com o governador tucano de Goiás, Marconi Perillo, brindado com generosos espaços para sua defesa, ao contrário dos demais acusados.
A nota à imprensa distribuída pelo presidente do PSDB, Sérgio Guerra, na quinta-feira dia 12 dá o tom da reedição da velha aliança entre a mídia e a oposição. No texto, Guerra garante que os tucanos apoiam a CPI do Cachoeira, defende uma “apuração ampla que alcance todos os agentes públicos e privados”, mas foca na necessidade de ir para cima de representantes do PT, como o governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, e o deputado Rubens Otoni (PT-GO). Nenhuma linha sobre Perillo ou a respeito de outro influente tucano goiano, o deputado federal Carlos Alberto Lereia, metido com a quadrilha de Cachoeira.
Mais adiante, Guerra acusa a mobilização em torno da CPI como um movimento para evitar o julgamento do mensalão – tese preferida da mídia. “O mensalão foi desvendado há sete anos e até hoje ninguém foi punido”, reclama, com razão a respeito da demora do julgamento. E emplaca uma tese tortuosa: o esforço do PT em reabilitar vários dos 37 acusados no processo do STF “certamente contribuiu para que outros contraventores como Cachoeira continuassem agindo, confiando na impunidade de crimes contra o patrimônio público”. Ou seja, segundo Guerra, a inclinação criminosa de Cachoeira, embora desenvolvida em todo o seu esplendor em parceria com um velho aliado do PSDB, o senador Torres, está diretamente ligada à impunidade dos mensaleiros petistas.
A melhor resposta do PT e da base aliada, caso queiram mesmo esclarecer os fatos, seria levar a CPI às últimas consequências, sem poupar ninguém. À semelhança de Perillo, o governador Agnelo Queiroz (PT-DF) deve muitas explicações a respeito de suas relações com o bicheiro. Uma interceptação telefônica da Polícia Federal sugere uma tentativa do petista de se aproximar de Cachoeira. Em um grampo de 16 de junho de 2011, o araponga Idalberto Matias, o Dadá, refere-se a um certo “01” e “Magrão”. Estes seriam, segundo a PF, apelidos de Queiroz no meio da quadrilha. No telefonema, Dadá afirma ter conversado com o ex-subsecretário de Esporte do DF João Carlos Feitoza, conhecido como Zunga. Marcavam um encontro entre Cachoeira e o “01”. “O Zunga me ligou aqui. Tá querendo falar com você que o chefe dele, o 01, o Magrão, quer falar com você”, afirma o araponga.
Queiroz nega ter conversado com Cachoeira, desdenha das acusações e acusa a oposição de fazer uma “tentativa desesperada”de incluir o PT nas denúncias, mas há elementos comprometedores nessa história. Além de ter trabalhado no governo do Distrito Federal, Zunga teve participação na campanha de Cláudio Monteiro, ex-chefe de gabinete de Queiroz, deputado distrital pelo PRP em 2010. Monteiro foi obrigado a se demitir do cargo na terça-feira 10 depois de o Jornal Nacional divulgar uma escuta telefônica em que Dadá conversa com o diretor da Delta Construções, Cláudio Abreu. Na conversa, o araponga trata da nomeação de cargos da estatal de coleta de lixo do Distrito Federal, a Serviço de Limpeza Urbana (SLU). Caso emplacasse um nome da turma de Cachoeira, Dadá receberia 20 mil pelo serviço.
Revelada pelo site do Jornal do Brasil, a participação da Delta Construções no esquema de Cachoeira serviu ainda para tirar do foco as ligações do PSDB e do DEM com o bicheiro e, outra vez, jogar o noticiário nas costas do governo Dilma Rousseff. A empreiteira foi a que mais recebeu recursos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) até agora. Do total de 11,8 bilhões de reais gastos pelo governo federal neste ano, a Delta Construções recebeu a maior fatia, um montante de 254,6 milhões de reais. Segundo grampos da Operação Monte Carlo, Cachoeira tentava saber antecipadamente sobre investigações e ações judiciais contra a Delta, dona de contratos com inúmeros governos estaduais e municipais do PT, PMDB e PSDB. Cláudio Abreu, diretor da empreiteira no Centro-Oeste, aparece em diversas escutas telefônicas em conversas com integrantes da quadrilha.
Protógenes Queiroz, deputado federal pelo PCdoB de São Paulo, foi outro que entrou na mira. Primeiro parlamentar a requerer formalmente a instalação de uma comissão de inquérito para apurar as estripulias de Cachoeira, Protógenes teve o nome ligado ao caso a partir de escutas telefônicas reveladas pelo jornal O Estado de São Paulo. Nas gravações, o deputado aparece em conversa, no ano passado, com Dadá, com quem trabalhou na Operação Satiagraha, de 2008, que prendeu o banqueiro Daniel Dantas. As conversas nada tinham a ver com os negócios da quadrilha. Sua divulgação parece uma tentativa de constranger o deputado e, mais uma vez, sustentar a tese de que a Satiagraha foi conduzida de forma ilegal. É uma das tantas balas perdidas, das vendetas comuns durante CPIs.
Alvo de 32 processos administrativos da Polícia Federal durante a gestão do ex-diretor geral Luiz Fernando Corrêa, Protógenes Queiroz, nos grampos, orienta Dadá a como se comportar nos depoimentos a serem dados na corregedoria da PF. Ainda funcionário da Agência Brasileira de Inteligência à época da Satiagraha, Dadá foi um dos arapongas oficiais recrutados pelo delegado para dar suporte à operação. Mas o vazamento das gravações deverá servir para afastar o deputado do PcdoB da composição da CPI do Cachoeira, o que agrada tanto à oposição quanto ao Palácio do Planalto. O delegado foi afastado da Satiagraha, logo depois da prisão de Dantas, por ser considerado “incontrolável” pelo PT. “Desafio qualquer um a mostrar alguma ligação minha com Cachoeira ou qualquer outro bandido”, rebateu o parlamentar.
A cortina de fumaça em torno da CPI do Cachoeira tem como questão central o esvaziamento da futura cobertura do julgamento do mensalão, se ele vier mesmo a acontecer neste ano, antecipadamente prejudicado pela proximidade de uma comissão que deverá tomar conta do noticiário, gostem ou não os meios de comunicação. Desde o início do ano, as redações dos maiores jornais, revistas e tevês do País têm se planejado para a cobertura, a partir de pesquisas antecipadas, definição de equipes e formulação de pautas especiais. O show previsto para o noticiário começou a fazer água a partir do vazamento da informação de que o jornalista Policarpo Júnior, diretor da sucursal da Veja em Brasília, manteve cerca de 200 ligações telefônicas com o bicheiro, segundo a PF.
A relação, se exposta em toda a sua extensão, poderá trazer à tona não somente os métodos pouco jornalísticos usados pela semanal da Abril para fazer reportagens a partir de um esquema clandestino de arapongagem, mas a participação da revista na construção do escândalo do mensalão. O pontapé inicial do caso foi o vídeo, gravado por arapongas de Cachoeira em 2005, do pagamento de suborno ao ex-diretor dos Correios Maurício Marinho, indicado pelo PTB, presidido pelo deputado cassado Roberto Jefferson.
A fita foi parar na Veja, mais precisamente nas mãos de Policarpo Junior. Certo de que o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu, também deputado cassado no rastro do escândalo, estava por trás da trama, Jefferson resolveu denunciar a existência do tal pagamento mensal do governo Lula para deputados da base aliada.
Em setembro do ano passado, ao apresentar sua defesa no STF, Jefferson negou a existência do mensalão e afirmou que a expressão era apenas “retórica”. Um dos grampos da PF demonstra com precisão a ligação da quadrilha de Goiás com a Veja. Em uma conversa com o araponga Jairo Martins, cinegrafista do pagamento ao ex-diretor dos Correios, Cachoeira revela o seguinte: “Porque os grandes furos do Policarpo fomos nós que demos, rapaz. Todos eles fomos nós que demos”.
O mais recente deles pode ter sido, segundo informações da PF, a capa da Veja na qual aparecem imagens de uma romaria de ministros e parlamentares roubadas do circuito interno de um hotel de Brasília onde José Dirceu mantém um escritório de trabalho. Para fazer a “reportagem”, o repórter Gustavo Ribeiro, da sucursal de Brasília, usou dos mesmos métodos da quadrilha: tentou invadir o quarto do ex-ministro, mas foi surpreendido por uma camareira. A Polícia Civil do Distrito Federal chegou a investigar a ação do jornalista, mas o caso acabou arquivado. Por essas e outras, o deputado Fernando Ferro (PT-PE) anunciou o intuito de apresentar um requerimento à CPI do Cachoeira para ouvir o empresário Roberto Civita, dono da Editora Abril.
Enquanto isso, as denúncias não param de pipocar. A mais recente atribui a Cachoeira a nomeação de vários coronéis da Polícia Civil de Goiás. Chamado de “a farra dos coronéis”, o esquema tinha por objetivo criar um sistema de proteção às bancas de jogos ilegais no estado. Descobriu-se ainda que um dos sócios do bicheiro, Rossine Aires Guimarães, doou 4,3 milhões de reais a campanhas do PSDB, DEM e PMDB em 2010. Na esteira das denúncias, Perillo demitiu sua chefe de gabinete, Eliane Pinheiros, por ligações com a quadrilha. Ainda assim o governador declara mal conhecer Cachoeira e de ter estado com ele apenas em três oportunidades, sempre em eventos sociais.
Na quarta-feira 11, o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT-RS), e o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), acertaram os ponteiros para a instalação da CPI. Objetivamente, a Comissão investigará as relações de parlamentares e funcionários de outros poderes com o bicheiro, além de incluir agentes do setor privado (a Delta Construções) e da mídia (a revista Veja). Maia prometeu uma atuação “ampla” e negou haver algum temor dentro do governo em relação ao rumo das investigações. Segundo ele, o caso é grave demais para ser tratado dessa forma. “Estamos diante de uma articulação de poder à revelia do Estado brasileiro, e que montou uma teia, uma rede de contatos, de relações, tentando influenciar na decisão de órgãos públicos ligados ao poder público, ao Legislativo, ao Judiciário e também à imprensa”, disparou o presidente da Câmara.
Imagina-se que a CPI terá ainda o interesse em entender o motivo de o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, manter dentro de uma gaveta por longo tempo – e sem maiores razões – as denúncias contra o senador Demóstenes Torres. E talvez, em um ato de ousadia, tateie as relações do parlamentar com o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. Para quem não se lembra, Torres e Mendes protagonizaram o episódio do suposto grampo (até hoje sem áudio) que levou ao afastamento do delgado Paulo Lacerda da direção da Abin e que serviu de pretexto para derrubar a Satiagraha.
Em um movimento claramente articulado, pouco antes da reunião de Maia com Sarney, o ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, afirmou desconhecer os bastidores da criação da CPI. Carvalho apressou-se, porém, em dizer que os trabalhos da futura comissão não vão intimidar o governo Dilma. Segundo ele, a presença de petistas no escândalo não vai mudar a atitude do Palácio do Planalto em relação ao caso. O vice-presidente Michel Temer bateu na mesma tecla. Segundo ele, o governo não “moveu uma palha” pela comissão.
Pelo acordo firmado entre Maia e Sarney, a CPI deverá ter 22 titulares e 22 suplentes. Os partidos começaram a se articular para indicar nomes à comissão, sobretudo no bloco de oposição. No DEM, ou no que sobrou do partido, o líder na Câmara, ACM Neto, anunciou a participação do deputado gaúcho Onyx Lorenzoni, trompetista da banda udenista que fez a festa na CPI dos Correios em 2005. No Senado, o líder do PT, Walter Pinheiro, articula as indicações de Wellington Dias, ex-governador do Piauí, e José Pimentel, ex-ministro da Previdência Social. O PSDB deverá indicar seu quadro mais atuante, o senador Aloysio Nunes Ferreira. Na Câmara, é certa a participação do deputado Fernando Francischini (PSDB-PR), delegado da Polícia Federal com grande experiência no combate ao crime organizado.
Enquanto isso, o cadafalso de Demóstenes Torres começa a ser erguido. Na terça-feira 10, na falta de uma definição do PMDB, que deveria indicar um nome para a presidência do Conselho de Ética do Senado, os líderes dos partidos decidiram seguir o regimento interno e designaram para a vaga o integrante mais velho do conselho, o senador Antonio Carlos Valadares (PSB-ES). Em menos de 24 horas, Valadares ordenou a instalação de processo contra o colega sem partido.
O relator do caso será o senador Humberto Costa (PT-PE). Valadares será o responsável por conduzir o pedido do PSOL de abertura de processo de quebra de decoro contra Torres. Em uma rápida e calculada aparição, o senador goiano prometeu se defender e provar sua inocência, apesar do caminhão de evidências de sua ligação com Cachoeira, de quem era uma espécie de empregado de luxo com mandato parlamentar.
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