DEBATE ABERTO
A atualidade de Fausto
Vender a alma ao diabo é um tema recorrente e atual, e quase não mencionamos a figura de Fausto. Quem sabe, por medo de tê-lo à frente ou dentro de nós. O personagem de Fausto é um dos mais excelsos e perfeitos para a compreensão dos homens. Principalmente dos homens iludidos com o próprio saber. E o poder.
Enio Squeff
Quase todos conhecem a história do "Fausto", de Goethe (1749-1832) ou, quem sabe, de Marlowe (1564-1593). Com as devidas variações, o enredo é o mesmo e se passa em torno de um homem sábio, que ao chegar à velhice, tenta compensar de alguma forma o tempo despendido nos livros e em pesquisas, fazendo, então, um pacto com o Demônio. Em troca da mocidade perdida, ele promete a sua colaboração com as forças do mal.
É uma espécie de fábula, com origens na Idade Média européia, mas que acentua um aspecto: Fausto não é um qualquer. Seu saber, seus títulos - tudo o leva a crer que se julga um "primus inter pares". É um homem diferenciado, digamos. Goethe, em pessoa, era esse diferenciado: nele coabitavam o naturalista - nome genérico de um cientista voltado à botânica, à mineralogia etc. - com o poeta, o artista plástico, o teórico das cores e tudo mais que se possa imaginar em relação à arte. Não parece importar, enfim, essa relação: milhares de teóricos e estudiosos altamente capacitados dedicaram-se e vão se esfalfar sobre o drama do poeta alemão - principalmente. Nada a acrescentar, portanto.
Mas Ítalo Calvino explicava a sua preferência pelos clássicos, a partir da eternidade deles. Não parece haver, de fato, como fugir da persistência do Dom Quixote em cada um do nós, por exemplo; e o personagem Fausto parece existir tanto no homem que vende a consciência - o jornalista antes de esquerda, hoje de direita (o vice-versa acontece, mas é bem mais raro; e por razões óbvias), quanto no colega que ontem se solidarizava com a categoria - mas que hoje, guindado à condição de chefia, a todo o momento confirma o adagio português: "Para conheceres o vilão, dê-lhe o bordão" . É uma história pra lá de conhecida que, no entanto, se reproduz a com a mesma insistência com que, mesmo os incréus - obrigam-se a considerar "a eternidade do demônio".
Não parece uma situação irrelevante, essa a da existência de um mal a nos acicatar. Karl Marx e Sigmund Freud são, sem duvidam, ponderáveis em suas teorias: o "inferno dos outros" se faria a partir do sistema (Marx), ou do instintos (Freud). Dizer que o diabo laicizou-se naturalmente, é uma questão dos tempos e dos costumes. Não vivemos na Idade Média. O demo não seria aquele ser encruado, com um rabo em forma de flecha na ponta, os pés de cabra e a cabeça, devidamente ornada com pelo menos dois cornos. Já, agora, diabo, sem dúvida, veste Praga; ou a culpa era de seus pais que o maltratavam?
As próprias variações em torno dos temas marxistas ou freudianos - e há uma infinidade delas, devidamente enfeixadas em livros que, se não confirmam a existência do "Coisa Ruim", reafirmam a pergunta: como explicar o cronista que sabe estar mentindo, mas que mesmo assim se assume para além do bem e do mal - tudo em troca da ilusão do dinheiro e da fama como forma de alcançar a juventude eterna, a ilusão de que, fora da notabilidade, da notoriedade - nada vale nada; ou antes, vale tudo? Vender a alma ao diabo, em suma, é um tema recorrente; e quase não mencionamos Fausto. Quem sabe, por medo de tê-lo à frente ou dentro de nós.
Talvez seja essa a questão mais pertinente. Na verdade, talvez seja a única questão: de todos os sete pecados capitais, não há um só que não convirja para a figura de Fausto. Mas o personagem tem uma característica inescapável, que é o seu saber. A grande contradição reside aí. Platão pregava a sabedoria como resposta às questões políticas. Desde que o governo fosse de sábios - e não há ninguém que reivindique a sabedoria suprema, fora da filosofia - a administração da coisa público pelos filósofos seria sempre a resposta adequada da sociedade. De fato, parece ser assim. Mas Fausto, homem sábio, não hesitou em fazer o acordo com o demônio. Seria demais concluir que o homem culto não é necessariamente o mais indicado para gerir a coisa pública?
Há dúvidas, porque se a alternativa a Fausto, é o boçal, o homem que despreza o saber, a coisa pode descambar também: Hitler tinha a certeza de que dominava tudo e se for levado em conta seu êxito inicial, até se explica a ilusão de muitos. O homem que melhor encarnou o espírito da Revolução Francesa foi Robespierre. Era culto; para alguns, de um brilhantismo invulgar. Foi durante sua governança que se instaurou o período chamado "do Terror", em que mais de trinta mil pessoas foram guilhotinadas. Augusto Pinochet foi quase inigualável em sua sanha assassina: matou - e comprovadamente - roubou o quanto pode. Era um homem que se deliciava com a ópera, a grande ópera. Devia se comover às lágrimas na cena da "Tosca", de Puccini, quando o personagem título verifica que o revolucionário a quem ela ama, foi fuzilado por suas idéias.
Stalin não lhe ficou atrás - mas havia quem dissesse que a sua estirpe era de outra linha - um grosseirão. Não é um exemplo de todo convincente; interessava-se pela arte e mandou matar muita gente por não concordar com as músicas, as poesias e os quadros que eles compunham. Já Stroessner - o ditador sanguinário do Paraguai que morreu no Brasil, muito bem obrigado, teria sido um perfeito casca-grossa - tanto, quem sabe, quanto Pol Pot, do Camboja- que não podia ouvir falar em cultura sem sacar o seu revólver.
Goethe acertou em tudo ao fazer de Fausto um homem culto, refinado de um saber superior. Ve-mo-lo a cada instante encarnado, tanto no professor que não dá notas a seu aluno por este não lhe prestar as loas que ele lhes acha devidas, quanto no executivo rico que se sente no direito de xingar ou de despedir uma pobre faxineira por ter desconfiado de que ela não lhe foi suficientemente submissa. Talvez a palavra "fáustica" não se preste à senhora rica que maltrata a empregada negra e pobre: fausto tem a ver com a ilusão do próprio, quando compactuou com o diabo. A coisa toda, em suma, teria que contar com a ilusão do poder e da riqueza. O jornalista venal, o policial corrupto, o empresário entorpecido pela riqueza, seriam todos fáusticos em suas comemorações. Balzac descreve bem uns e outros; eles se deliciam com o sucesso. Os acólitos não deixam de saudá-los na fila infinda do beija-mão.
A ironia é que Goethe em pessoa foi um gênio incensado. Era um gênio até onde a palavra alcança descrever um homem sábio, detentor de inúmeros talentos, mas, sobretudo, o literário. Como Cervantes, ele imortalizou um personagem símbolo - somos todos ainda que não publicamente, ora Fausto ora Dom Quixote. Goethe percebeu com a sua quase onisciência a importância do livro de Cervantes. Dizem que aprendeu o espanhol só para usufruí-lo em sua grandiosidade. Mas nunca desceu ao quixotismo - pelo menos não de modo a ser saudado por isso. Pelo contrário, enquanto pode, manteve a sua posição na Corte; e foi bom que o Duque de Weimar o cobrisse de honrarias e de privilégios. Goethe recompensou-o à altura.
Quando as autoridades máximas de Weimar lhe possibilitaram fazer um jardim - Goethe esmerou-se em construir uma obra-prima. Só não agradou Beethoven que foi seu contemporâneo e que, quase quixotescamente, não se deixava levar muito pela vaidade, como acontecia com Goethe. Quando pode, apontou em Goethe aquela parte de Fausto que persistia em sua personalidade: o gosto pelas "lantejoulas da corte" como disse o músico, textualmente, a respeito de seu colega poeta. Enfim, não há notícia de que o músico tivesse em alta conta o Dom Quixote - mas enquanto pode julgar -e todos podemos julgar - não deixou de imitar no quixotismo de sua surdez - o pior imaginável para um músico - a vaidade do outro. Que foi um gênio, mas que não superou a vanitas vanitatis - a vaidade das vaidades de seu personagem - um dos mais excelsos e perfeitos para a compreensão dos homens. Principalmente dos homens iludidos com o próprio saber. E o poder.
Enio Squeff é artista plástico e jornalista.
Enio Squeff
Quase todos conhecem a história do "Fausto", de Goethe (1749-1832) ou, quem sabe, de Marlowe (1564-1593). Com as devidas variações, o enredo é o mesmo e se passa em torno de um homem sábio, que ao chegar à velhice, tenta compensar de alguma forma o tempo despendido nos livros e em pesquisas, fazendo, então, um pacto com o Demônio. Em troca da mocidade perdida, ele promete a sua colaboração com as forças do mal.
É uma espécie de fábula, com origens na Idade Média européia, mas que acentua um aspecto: Fausto não é um qualquer. Seu saber, seus títulos - tudo o leva a crer que se julga um "primus inter pares". É um homem diferenciado, digamos. Goethe, em pessoa, era esse diferenciado: nele coabitavam o naturalista - nome genérico de um cientista voltado à botânica, à mineralogia etc. - com o poeta, o artista plástico, o teórico das cores e tudo mais que se possa imaginar em relação à arte. Não parece importar, enfim, essa relação: milhares de teóricos e estudiosos altamente capacitados dedicaram-se e vão se esfalfar sobre o drama do poeta alemão - principalmente. Nada a acrescentar, portanto.
Mas Ítalo Calvino explicava a sua preferência pelos clássicos, a partir da eternidade deles. Não parece haver, de fato, como fugir da persistência do Dom Quixote em cada um do nós, por exemplo; e o personagem Fausto parece existir tanto no homem que vende a consciência - o jornalista antes de esquerda, hoje de direita (o vice-versa acontece, mas é bem mais raro; e por razões óbvias), quanto no colega que ontem se solidarizava com a categoria - mas que hoje, guindado à condição de chefia, a todo o momento confirma o adagio português: "Para conheceres o vilão, dê-lhe o bordão" . É uma história pra lá de conhecida que, no entanto, se reproduz a com a mesma insistência com que, mesmo os incréus - obrigam-se a considerar "a eternidade do demônio".
Não parece uma situação irrelevante, essa a da existência de um mal a nos acicatar. Karl Marx e Sigmund Freud são, sem duvidam, ponderáveis em suas teorias: o "inferno dos outros" se faria a partir do sistema (Marx), ou do instintos (Freud). Dizer que o diabo laicizou-se naturalmente, é uma questão dos tempos e dos costumes. Não vivemos na Idade Média. O demo não seria aquele ser encruado, com um rabo em forma de flecha na ponta, os pés de cabra e a cabeça, devidamente ornada com pelo menos dois cornos. Já, agora, diabo, sem dúvida, veste Praga; ou a culpa era de seus pais que o maltratavam?
As próprias variações em torno dos temas marxistas ou freudianos - e há uma infinidade delas, devidamente enfeixadas em livros que, se não confirmam a existência do "Coisa Ruim", reafirmam a pergunta: como explicar o cronista que sabe estar mentindo, mas que mesmo assim se assume para além do bem e do mal - tudo em troca da ilusão do dinheiro e da fama como forma de alcançar a juventude eterna, a ilusão de que, fora da notabilidade, da notoriedade - nada vale nada; ou antes, vale tudo? Vender a alma ao diabo, em suma, é um tema recorrente; e quase não mencionamos Fausto. Quem sabe, por medo de tê-lo à frente ou dentro de nós.
Talvez seja essa a questão mais pertinente. Na verdade, talvez seja a única questão: de todos os sete pecados capitais, não há um só que não convirja para a figura de Fausto. Mas o personagem tem uma característica inescapável, que é o seu saber. A grande contradição reside aí. Platão pregava a sabedoria como resposta às questões políticas. Desde que o governo fosse de sábios - e não há ninguém que reivindique a sabedoria suprema, fora da filosofia - a administração da coisa público pelos filósofos seria sempre a resposta adequada da sociedade. De fato, parece ser assim. Mas Fausto, homem sábio, não hesitou em fazer o acordo com o demônio. Seria demais concluir que o homem culto não é necessariamente o mais indicado para gerir a coisa pública?
Há dúvidas, porque se a alternativa a Fausto, é o boçal, o homem que despreza o saber, a coisa pode descambar também: Hitler tinha a certeza de que dominava tudo e se for levado em conta seu êxito inicial, até se explica a ilusão de muitos. O homem que melhor encarnou o espírito da Revolução Francesa foi Robespierre. Era culto; para alguns, de um brilhantismo invulgar. Foi durante sua governança que se instaurou o período chamado "do Terror", em que mais de trinta mil pessoas foram guilhotinadas. Augusto Pinochet foi quase inigualável em sua sanha assassina: matou - e comprovadamente - roubou o quanto pode. Era um homem que se deliciava com a ópera, a grande ópera. Devia se comover às lágrimas na cena da "Tosca", de Puccini, quando o personagem título verifica que o revolucionário a quem ela ama, foi fuzilado por suas idéias.
Stalin não lhe ficou atrás - mas havia quem dissesse que a sua estirpe era de outra linha - um grosseirão. Não é um exemplo de todo convincente; interessava-se pela arte e mandou matar muita gente por não concordar com as músicas, as poesias e os quadros que eles compunham. Já Stroessner - o ditador sanguinário do Paraguai que morreu no Brasil, muito bem obrigado, teria sido um perfeito casca-grossa - tanto, quem sabe, quanto Pol Pot, do Camboja- que não podia ouvir falar em cultura sem sacar o seu revólver.
Goethe acertou em tudo ao fazer de Fausto um homem culto, refinado de um saber superior. Ve-mo-lo a cada instante encarnado, tanto no professor que não dá notas a seu aluno por este não lhe prestar as loas que ele lhes acha devidas, quanto no executivo rico que se sente no direito de xingar ou de despedir uma pobre faxineira por ter desconfiado de que ela não lhe foi suficientemente submissa. Talvez a palavra "fáustica" não se preste à senhora rica que maltrata a empregada negra e pobre: fausto tem a ver com a ilusão do próprio, quando compactuou com o diabo. A coisa toda, em suma, teria que contar com a ilusão do poder e da riqueza. O jornalista venal, o policial corrupto, o empresário entorpecido pela riqueza, seriam todos fáusticos em suas comemorações. Balzac descreve bem uns e outros; eles se deliciam com o sucesso. Os acólitos não deixam de saudá-los na fila infinda do beija-mão.
A ironia é que Goethe em pessoa foi um gênio incensado. Era um gênio até onde a palavra alcança descrever um homem sábio, detentor de inúmeros talentos, mas, sobretudo, o literário. Como Cervantes, ele imortalizou um personagem símbolo - somos todos ainda que não publicamente, ora Fausto ora Dom Quixote. Goethe percebeu com a sua quase onisciência a importância do livro de Cervantes. Dizem que aprendeu o espanhol só para usufruí-lo em sua grandiosidade. Mas nunca desceu ao quixotismo - pelo menos não de modo a ser saudado por isso. Pelo contrário, enquanto pode, manteve a sua posição na Corte; e foi bom que o Duque de Weimar o cobrisse de honrarias e de privilégios. Goethe recompensou-o à altura.
Quando as autoridades máximas de Weimar lhe possibilitaram fazer um jardim - Goethe esmerou-se em construir uma obra-prima. Só não agradou Beethoven que foi seu contemporâneo e que, quase quixotescamente, não se deixava levar muito pela vaidade, como acontecia com Goethe. Quando pode, apontou em Goethe aquela parte de Fausto que persistia em sua personalidade: o gosto pelas "lantejoulas da corte" como disse o músico, textualmente, a respeito de seu colega poeta. Enfim, não há notícia de que o músico tivesse em alta conta o Dom Quixote - mas enquanto pode julgar -e todos podemos julgar - não deixou de imitar no quixotismo de sua surdez - o pior imaginável para um músico - a vaidade do outro. Que foi um gênio, mas que não superou a vanitas vanitatis - a vaidade das vaidades de seu personagem - um dos mais excelsos e perfeitos para a compreensão dos homens. Principalmente dos homens iludidos com o próprio saber. E o poder.
Enio Squeff é artista plástico e jornalista.
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