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domingo, 11 de dezembro de 2011

Como Pablo Neruda morreu, se continua tão vivo?




Neruda morreu de indignação e tristeza. Quem quer que tenha injetado veneno em seu corpo não fez mais que reforçar o veneno que Augusto Pinochet Ugarte já havia injetado em sua alma. As investigações do juiz poderão dar com os culpados e mandá-los para a cadeia. Pouco importa. Eles já vivem no inferno que criaram, e sua maior pena é estar submersos no desprezo eterno de todos os que sabem a maior das verdades: Neruda continua vivo, continua renascendo em cada vida que sua poesia apadrinha. O artigo é de Eric Nepomuceno.

Eric Nepomuceno

O taxista chileno Manuel del Carmen Araya Osório tem 65 anos, vida modesta, e trabalha na cidadezinha de San Antonio, a uns cem quilômetros de Santiago do Chile. Mora com a mãe de 80 anos. Era pouco mais que adolescente quando entrou para o Partido Comunista. E, em novembro de 1972, aos 26 anos de idade, foi designado pelos companheiros para servir de secretário pessoal de uma das maiores figuras do partido, Pablo Neruda. Morou na casa do poeta na Isla Negra, era quem comprava os jornais, servia o café-da-manhã, vagabundeava com ele pelos mercados, dirigia o Citroën lustroso em passeios que nasciam sem rumo e sem destino.

Menos de duas semanas depois do golpe de 11 de setembro de 1973, quando Neruda estava no hospital em Santiago, Araya foi preso. Aconteceu no dia 23. Apanhou bastante, levou um tiro atrás do joelho que quase o deixou inválido, foi levado para o Estádio Nacional, que havia sido transformado em campo de concentração, tortura e execuções. E na prisão, dias depois, ficou sabendo que naquele mesmo 23 de setembro Neruda havia morrido em seu quarto de hospital. A última imagem que guardou do poeta foi o corpo grandalhão e desengonçado numa cama de doente. Estava com febre, estava avermelhado, estava inchado. Estava morrendo.

O laudo médico assegura que a causa da morte foi o câncer de próstata que acossava Neruda. Sua viúva, Matilde Urrutia, disse, um ano depois, que “a verdade única é que o duro impacto da notícia fez com que dias mais tarde seu coração parasse. O câncer estava muito controlado, não prevíamos aquele desenlace tão repentino. Não chegou nem a deixar um testamento, pois achava que a morte estava longe”. A tal notícia foi o golpe de Estado que assassinou a democracia chilena e no qual morreu seu velho amigo e companheiro, Salvador Allende. Entre o golpe e a morte de Neruda se passaram exatos 12 dias. Circularam rumores dizendo que ele estava a ponto de ser levado para o México, que ia embora levando o Chile na alma e a palavra de denúncia na boca, pronta para ser proferida. Ninguém confirmou nada. O Chile estava mergulhado em pavor.

Tudo isso é história sabida. Ao longo dos últimos meses, também tornou-se conhecida a versão de Manuel Araya, que afirma e reafirma que com Neruda aconteceu a mesma coisa que com Eduardo Frei Montalva, que governou o Chile entre 1964 e 1970: foi assassinado. Frei foi morto em 1982, no mesmo hospital Santa Marta, vítima de uma injeção letal dada por alguém. O assassinato de Frei está confirmado. A morte de Neruda está sendo investigada pela Justiça.

Estranho país, o Chile. Por esses dias houve quem louvasse e homenageasse verdugos que exerceram seu sadismo ao amparo de Pinochet. Por esses dias há estudantes protestando nas ruas. Por esses dias se reforça a determinação da Justiça em saber a verdade: saber como foi a morte de seu poeta maior.

O Partido Comunista chileno admite, hoje, que na época do golpe fez circular notícias exagerando a gravidade do estado de saúde de Neruda: “Era para protegê-lo”. Achavam que assim conseguiriam aplacar um pouco o ódio bestial dos militares contra o poeta. Gonzalo Martínez Corbalá, embaixador do México no Chile naquela época, e que foi encarregado de tirar Neruda do país, confirma esse exagero. Diz que esteve com ele na véspera da sua morte, cuidando justamente dos detalhes de sua viagem. E que ele estava falando de modo absolutamente normal, embora debilitado pela doença e pela mais profunda das tristezas com o que havia acontecido no Chile.

Há alguns dias o juiz que encabeça as investigações sobre a morte de Neruda – o mesmo que concluiu, amparado por peritos, que Salvador Allende realmente se matou – conversou com uma jornalista chamada Rocio Montes Rojas, do jornal ‘El País’, de Madri. O nome do juiz é Mario Carroza, responsável pelas investigações mais relevantes sobre os tempos de horror de Pinochet.

– Existe a possibilidade de que jamais se saiba como foi que Neruda morreu? – perguntou a jornalista.

– Existe – respondeu o juiz.

Qual o quê. Todo mundo sabe: Neruda morreu de indignação e tristeza. Da mesma forma que todo mundo sabe que Neruda continua vivo entre os chilenos que recitam seus versos de vida e amor à vida, entre gerações que se sucedem com o suave marejar de suas palavras contundentes e perenes.

Quem quer que tenha injetado veneno em seu corpo não fez mais que reforçar o veneno que Augusto Pinochet Ugarte já havia injetado em sua alma, em sua incansável capacidade de vida e alegria.

As investigações do juiz poderão dar com os culpados e mandá-los para a cadeia. Pouco importa. Eles já vivem no inferno que criaram, e sua maior pena é estar submersos no desprezo eterno de todos os que sabem a maior das verdades: Neruda continua vivo, continua renascendo em cada vida que sua poesia apadrinha.

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