A Pública teve acesso ao relatório feito por organizações populares das 12 cidades-sedes da Copa – e traz o documento para seus leitores. Ele diz que o povo e os seus direitos estão ficando de fora.
Por Andrea Dip, Publica
O clipe que propagandeia a Copa do Mundo de 2014, que será no Brasil, mostra uma mesa de reuniões de um escritório em Nova York. Um grito de gol ecoa de um lugar longinquo e um americano engravatado diz (em inglês): “Você ouviu isso?”.
O vídeo segue mostrando as nossas belezas naturais como as lindas praias do Rio de Janeiro e as cataratas de Foz de Iguaçu. O locutor termina: “O Brasil está te chamando. Celebre a vida aqui”.
Aqui no Brasil, porém, o clamor das ruas parece mais protesto do que comemoração. Apaixonados por futebol, os torcedores dizem ter sua cidadania ameaçada por acordos de gabinete e seus direitos roubados pelas exigências da FIFA e pelas obras faraônicas que rasgam as cidades.
É o que se lê no dossiê “Mega-eventos e violações de Direitos Humanos no Brasil”, preparado pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas, e lançado nesta segunda-feira (12) de forma simultânea pela Pública e em atos de Comitês Populares por todo o país.
No Rio de Janeiro, haverá uma concentração em frente à Prefeitura às 10h30; em Belo Horizonte haverá uma marcha que se concentrará na Praça 7 às 14h; em Curitiba, uma marcha sairá às 10h rumo à Prefeitura de São José dos Pinhais. Em Natal haverá uma audiência pública; em São Paulo e em Porto Alegre, o documento será entregue às devidas prefeituras, enquanto em Brasília o comitê regional irá buscar o governo federal.
Acompanhamento das obras
O lançamento do documento acontece pouco depois da Articulação lançar um site próprio (http://www.portalpopulardacopa.org) que deve acompanhar a situação dos torcedores na contagem dos dias para a Copa do Mundo.
Tanto o site quanto o relatório foram produzidos conjuntamente por comitês populares, que são agremiações de organizações sociais e pessoas que serão atingidas pelas obras em Belo Horizonte, Brasilia, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
Além de denúncias de violações de direitos, o documento traz um quadro completo de acompanhamento das obras para a Copa do Mundo, incluindo custos previstos, valores licitados e como está o andamento até o momento.
A reforma do Maracanã, por exemplo, tinha um valor previsto em 600 milhões mas acabou sendo licitada a um valor de 859 milhões, metade pago pelo BNDES segundo o dossiê. Da mesma forma, os píeres do porto do Rio de Janeiro, cujo custo estimado era de 314 milhões, foram licitados a 610 milhões. O mesmo ocorre com dezenas de projetos apontados no levantamento.
2092 despejados. E é só o começo
Os movimentos populares, apoiados por acadêmicos e pesquisadores, estimam que pelo menos 170 mil pessoas têm seu direito à moradia violado ou ameaçado pelos mega-eventos que estão por vir, em especial a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
O dossiê aponta que a realização da Copa do Mundo 2014 em doze cidades e das Olimpíadas 2016 no Rio de Janeiro agrega novos elementos críticos à já grave questão habitacional nessas capitais: grandes projetos urbanos com impactos econômicos, fundiários, urbanísticos, ambientais e sociais. Por exemplo, devem se proliferar os condomínios de luxo e centros empresariais que não “comportam” pobreza em seus arredores, ou que podem atropelar comunidades para se expandir.Não há dados oficiais sobre os despejos; o documento faz uma estimativa a partir de relatos de quem mora nas cidades.
Até o início de dezembro, havia 21 casos de vilas e favelas nas cidades de Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo que foram desocupadas, segundo o relato de seus moradores, “com estratégias de guerra”. Até o momento 2092 pessoas teriam sido despejadas.
“(São) estratégias de guerra e perseguição, como a marcação de casas a tinta sem esclarecimentos, a invasão de domicílios sem mandados judiciais, a apropriação indevida e destruição de bens móveis, a terceirização da violência verbal contra os moradores, as ameaças à integridade física e aos direitos fundamentais das famílias, o corte dos serviços públicos ou a demolição e o abandono dos escombros de uma em cada três casas subseqüentes, para que toda e qualquer família tenha como vizinho o cenário de terror”, diz o documento.
Um dos casos mais emblemáticos é o do Parque Linear Várzeas do Tietê, na cidade de São Paulo. “Dividida em três etapas, a obra prevê a construção de uma avenida, ‘Via Parque’, para ‘valorizar a região’ [...] que fica às margens da rodovia Ayrton Senna, entre o Aeroporto Internacional de Guarulhos e o futuro estádio do Corinthians, provável sede paulista na Copa do Mundo, em Itaquera. Mais de 4.000 famílias já foram removidas do local sem serem consultadas sobre a implantação do parque e sem saber para onde iriam. Outras 6.000 famílias aguardam, ignorando seu destino. ‘Pegaram nós de surpresa. Com um projeto de tamanha proporção, a comunidade no mínimo tinha que ser consultada. [...] As famílias foram morar ali há mais de 40 anos, quando ainda não era Área de Proteção Ambiental’, diz o líder comunitário Oswaldo Ribeiro”.
Um dos locais mais ameaçados é Fortaleza, que segundo o documento terá mais de 15.000 famílias atingidas por empreendimentos relacionados à Copa do Mundo.
Exploração dos trabalhadores gerou 10 greves pelo país
A Fifa determinou que as obras dos estádios deveriam estar prontas antes de 31 de dezembro de 2012, a tempo de sediar a Copa das Confederações em 2013.
Diversas vezes Jérôme Valcke, secretário-geral da entidade, fez pronunciamentos em que alertava para o atraso das obras e cobrava do país um ritmo mais acelerado. Diante de tanta pressão, alguém tinha que pagar a conta.
Segundo o dossiê, foram os trabalhadores das obras: “Essa pressão parece favorecer também às próprias empreiteiras, uma vez que contribuiu para os atropelos legais, aportes adicionais de recursos públicos, irregularidades nos processos de licenciamento de obras e inconsistência e incompletude de alguns projetos licitados sem qualquer segurança econômica, ambiental e juridical”, afirma o documento.
“Mais do que isso: serviu como pretexto para as violações de direitos dos trabalhadores nas obras dos estádios e dos projetos de infraestrutura. A conjugação entre a magnitude das obras e os cronogramas supostamente apertados para realizar os empreendimentos já tem resultado em más condições de trabalho e na superexploração dos operários, a despeito das cifras milionárias destinadas às obras”.
Em pouco tempo, mobilizações, paralisações e greves começaram a pipocar pelo país.
O dossiê contabiliza que até novembro de 2011, foram registradas pelo menos dez paralisações em seis dos 12 estádios que serão usados para a Copa: no Mineirão em Belo Horizonte, no Mané Garrincha em Brasília, no Arena Verdão em Cuiabá, Arena Castelão em Fortaleza, no Arena Pernambuco em Recife e até no Maracanã, no Rio de Janeiro.
Entre as principais reivindicações das greves estavam desde aumento salarial e concessão de benefícios como plano de saúde, auxílio alimentação e garantia de transporte até melhoria nas condições de trabalho (em especial, os trabalhadores reclamam das condições de segurança, salubridade e alimentação), aumento do pagamento para horas extras e o fim do acúmulo de tarefas e jornadas de trabalho “desumanamente prolongadas”.
A Fifa determinou que as obras dos estádios deveriam estar prontas antes de 31 de dezembro de 2012, a tempo de sediar a Copa das Confederações em 2013.
Diversas vezes Jérôme Valcke, secretário-geral da entidade, fez pronunciamentos em que alertava para o atraso das obras e cobrava do país um ritmo mais acelerado. Diante de tanta pressão, alguém tinha que pagar a conta.
Segundo o dossiê, foram os trabalhadores das obras: “Essa pressão parece favorecer também às próprias empreiteiras, uma vez que contribuiu para os atropelos legais, aportes adicionais de recursos públicos, irregularidades nos processos de licenciamento de obras e inconsistência e incompletude de alguns projetos licitados sem qualquer segurança econômica, ambiental e juridical”, afirma o documento.
“Mais do que isso: serviu como pretexto para as violações de direitos dos trabalhadores nas obras dos estádios e dos projetos de infraestrutura. A conjugação entre a magnitude das obras e os cronogramas supostamente apertados para realizar os empreendimentos já tem resultado em más condições de trabalho e na superexploração dos operários, a despeito das cifras milionárias destinadas às obras”.
Em pouco tempo, mobilizações, paralisações e greves começaram a pipocar pelo país.
O dossiê contabiliza que até novembro de 2011, foram registradas pelo menos dez paralisações em seis dos 12 estádios que serão usados para a Copa: no Mineirão em Belo Horizonte, no Mané Garrincha em Brasília, no Arena Verdão em Cuiabá, Arena Castelão em Fortaleza, no Arena Pernambuco em Recife e até no Maracanã, no Rio de Janeiro.
Entre as principais reivindicações das greves estavam desde aumento salarial e concessão de benefícios como plano de saúde, auxílio alimentação e garantia de transporte até melhoria nas condições de trabalho (em especial, os trabalhadores reclamam das condições de segurança, salubridade e alimentação), aumento do pagamento para horas extras e o fim do acúmulo de tarefas e jornadas de trabalho “desumanamente prolongadas”.
O povo, excluído da festa
Enquanto os movimento sociais estão promovendo cada vez mais o debate sobre as obras da Copa, a população em geral não participa dos órgãos e da estrutura de organização de sua preparação. As portas estão fechadas à participação popular, segundo o dossiê.
“Informações sobre os processos de preparação para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 não são apenas negadas à população em geral, mas mantidas secretas até mesmo para os órgãos de controle do próprio Estado, como o Ministério Público” diz o dossiê, e ainda: “Nesse contexto, vemos as populações atingidas fora das instâncias decisórias e mesmo sem ter acesso à informações básicas para a defesa de seus direitos. Enquanto isso, uma diversidade de organismos são instituídos em nível federal, estadual e municipal, tais como grupos gestores, comitês, câmaras temáticas e secretarias especiais da copa”.
Passada a Copa, fica o legado
Em uma carta anexa ao documento, os comitês populares se mostram preocupados com o legado dos mega-eventos.
Dizem que até agora não é evidente que as obras contribuam minimamente para a inclusão social e a ampliação de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais: “Ao contrário, a falta de diálogo e transparência dos investimentos aponta para a repetição do que ocorreu no período dos Jogos Panamericanos de 2007, quando assistimos ao desperdício de recursos públicos (de acordo com o TCU, mais de R$ 3,4 bilhões foram gastos de forma indevida, mas ninguém foi punido) em obras superfaturadas que se transformaram em elefantes brancos”.
Rompendo a lei
Os movimentos sociais também alertam para medidas e normas que atravessam as leis do Brasil e procedimentos de exceção usados para simular a existência de estudos ambientais e processos de licenciamento ambiental, em regime “de urgência”. Confira o box abaixo:
Box 1.1 – Cidade de Exceção
“O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político” (Giorgio Agambem; Estado de exceção. São Paulo, Boitempo, 2004, p. 13)
Conhecida como “Ato Olímpico”, a Lei n. 12.035, de 1/10/2009 é a primeira de uma longa lista de medidas legais e dispositivos normativos que instauram as bases de um ordenamento e institucionalidade que não podem ser compreendidos senão como uma infração ao estado de direito vigente.
Nesta lei, entre outras coisas, são asseguradas condições excepcionais e privilégios para a obtenção de vistos, exercício profissional de pessoal credenciado pelo COI e empresas que o patrocinam, cessão de patrimônio público imobiliário, proteção de marcas e símbolos relacionados aos Jogos Rio 2016, concessão de exclusividade para o uso (e venda) de espaços publicitários e prestação de serviços vários sem qualquer custo para o Comitê Organizador. Ademais, num capitalismo do qual o risco teria sido totalmente banido, a lei genericamente “destinação de recursos para cobrir eventuais défices operacionais do Comitê Organizador dos Jogos Rio 2016”.
Segue-se, a partir daí, a nível federal, estadual e municipal, uma interminável lista de leis, medidas provisórias, decretos, resoluções, portarias e atos administrativos de vários tipos que instauram o que vem sendo chamado de “cidade de exceção”. Todas as isenções fiscais e tributárias são oferecidas às entidades organizadoras, mas também a uma infinidade de “cidadãos mais iguais”, que não precisam pagar impostos sobre serviços, tributos territoriais urbanos, taxas alfandegárias.
Planos diretores e outros diplomas, muitos deles resultado de longos e ricos debates na sociedade, caducam em ritmo vertiginoso diante do apetite de empreiteiras, especuladores imobiliários, capitais do setor hoteleiro e turístico e, evidentemente, os patrocinadores dos mega-eventos. Assim, por exemplo, o projeto de Lei Geral da Copa – PL n.2330/2011, em apreciação pela Câmara dos Deputados – pretende, entre outros desmandos, responsabilizar a União por danos e prejuízos da FIFA e suspender a proibição da venda de bebidas alcoólicas em estádios para atender aos reclamos de uma entidade esportiva comprometida com grande empresa internacional do ramo de cerveja.
Ao mesmo tempo, enormes extensões de bem localizadas terras públicas são entregues, quase de mão beijada, a grandes empresas, quando a Lei Federal n. 11.124, de 16/06/2005, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, determina claramente a “utilização prioritária de terrenos de propriedade do Poder Público para a implantação de projetos habitacionais de interesse social”.
Em aberta violação à legislação federal, e às próprias constituições estaduais e leis orgânicas dos municípios, são aprovadas doações, concessões e operações urbanas que têm a ver com o interesse público ou prioridades sociais. No Rio de Janeiro, por exemplo, embora a lei determine a destinação prioritária de terras públicas para a habitação social, o Decreto Municipal n. 30.379, de 1/01/2009, estabelece que o Poder Executivo “envidará todos os esforços necessários no sentido de possibilitar a utilização de bens pertencentes à administração pública municipal, ainda que ocupados por terceiros, indispensáveis à realização dos Jogos Rio 2016”.
Assim, vê-se o poder publico mobilizado para “limpar” terras públicas de habitação popular e entregar estas áreas à especulação imobiliária, em nome, claro, da viabilização dos eventos, como acontece na Vila Autódromo, no Rio de Janeiro.
Em triste evocação do que foram os tempos cinzentos da ditadura militar, o poder pública criar um aparato de segurança especial (a nova Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos, conforme o Decreto n. 7.536, de 1/08/2011). E para completar o cenário de exceção, uma nova tipificação penal e justiças especiais são previstos no projeto da chamada Lei Geral da Copa.
Também procedimentos de exceção são utilizados para simular a existência de estudos ambientais
e processos de licenciamento ambiental, em regime “de urgência”.
Estamos diante da imposição da “forma legal daquilo que não pode ter forma legal” (Giorgio Agambem;
Estado de exceção. São Paulo, Boitempo, 2004, p. 12).
Para um país que há menos de 30 anos estava submetido à ditadura, a violação sistemática de nossa legalidade e aparato institucional e a implantação da cidade de exceção constituem legados inaceitáveis.
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