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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Para além dos slogans sobre o Crack

BY SAÚDE COM DILMA




por Rafael Gil Medeiros, redutor de danos e educador social de rua. Graduado em Ciências Sociais, especializando em Educação em Saúde Mental Coletiva e mestrando em Psicologia Social e Institucional. Membro do coletivo antiproibicionista Princípio Ativo, de Porto Alegre.

Quando a cerimônia de lançamento do Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack tem início, na manhã do dia 07 de Dezembro de 2011, fico sabendo de sua transmissão online. Clicando em alguns links, pude tecer um relato do que vi e ouvi não só como cidadão preocupado com os problemas associados ao uso abusivo e problemático de drogas (incluindo-se o crack), e igualmente preocupado com os problemas associados às políticas públicas sobre drogas, mas sobretudo a partir das experiências que tive e tenho com o trabalho na Saúde e na Assistência Social, junto a pessoas que usam crack, e sua rede afetiva e familiar.

Não vi toda a programação, mas bastaram-me os pronunciamentos que seguem comentados: o do ministro da Saúde, Alexandre Padilha; do ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso; de Jacques Wagner, atual governador da Bahia; e da atual presidenta, Dilma Rousseff.

Ministro da Saúde, Alexandre Padilha

Locais seguros e atuação nas cenas de uso

No começo de sua fala, ouvimos sobre a necessidade de construímos lugares seguros para acolher as pessoas que usam crack (e, espero eu,que usam drogas ilícitas em geral). Enquanto aguardamos a apresentação das estratégias em si, fico pensando na conjuntura social em que tais serviços atuarão, principalmente preocupado em saber em que medida tais lugares seguros são possíveis de ser criados, numa sociedade na qual que a polícia ainda cumpre um papel que é o de extermínio e controle das populações pobres. Em uma pesquisa citada pelo próprio ministro, as mortes violentas,apontadas como causa principal da mortalidade dentre pessoas que usam crack, associam-se não a questões clínicas do crack no organismo,mas sim, a questões da forma como a política de guerra às drogas aborda as pessoas que as usam – como inimigas.

Após falar na disponibilização de locais seguros, o ministro fala na importância dos trabalhadores da saúde atuarem no território. Acontece que, se os trabalhadores da saúde precisam trabalhar acompanhando esta realidade (e não há outra forma de lidar com problemas da vida senão os acompanhando), seria preciso mudar a lógica das políticas públicas também. Ou entendemos que as drogas (e problemas associados) fazem parte da vida, e os acompanhamos (coisa até então pouquíssimo tentada e valorizada, como veremos a seguir), ou então seguimos com o velho posicionamento de combater esta realidade, tão confusos quanto Dom Quixote diante dos moinhos de vento.

Queremos mesmo acessar pessoas que usam crack?

Pra começo de conversa: como é que as pessoas que usam crack e outras drogas podem “se sentir à vontade para falar sobre seus usos”, como quer o Ministro Padilha (e como queremos todos nós, a princípio) numa sociedade que proíbe a existência destas pessoas, estigmatizando-as? Um sentimento de vergonha alheia me toma, diante da fala de um ministro da Saúde que não parece situar a diferenciação entre usos e abusos de drogas, principalmente sem levar em conta que não se tratam de destinos, mas estágios de vida – dos quais, vale lembrar, ninguém está livre. O cotidiano dos serviços de alta complexidade, nos quais estamos baseando nossas respostas, jamais trará dados suficientes sobre como se dão tais processos de usos abusivos. Daí a necessidade de acompanhamento e vínculo – de uma presença – em ações de promoção de saúde nos espaços de usos, combinado com a oferta de centros seguros de convivência, ter a potencialidade não só de reduzir a demanda por internações, mas principalmente, a de dar um sentido às internações eventuais, na continuidade de uma escuta. Planos de vida só podem ser operados e reinventados na própria vida. Mesmo que a passagem por espaços de isolamento ou por medidas de desintoxicação possam também compor este processo, estes perderão sua potencialidade sem o devido acompanhamento no território. Recolocamos a pergunta: queremos mesmo acessar estas pessoas e ajudá-las a enfrentar seus eventuais problemas com o crack, ou meramente encaminhá-las à internação e ao isolamento?

Se for esta a motivação do Plano, definitivamente não serão os consultórios de rua (estratégia cuja ampliação o ministroalardeia como positiva em si mesma), que resolverão o problema do acesso às pessoas que usam drogas. Devemos ter em mente tais ações operando sob uma política educativa de grande porte que ajude a desconstruir o estigma sobre quem usa drogas – do contrário, não haverá qualificação alguma na escuta destes consultórios, estejam ou não nas ruas. Em nenhum momento este aspecto foi citado como problemático para a falta de acesso destas pessoas aos serviços, ou dos serviços às pessoas.

Negando as potencialidades da atuação no território

Ao não colocar a estigmatização como algo também a ser “enfrentado”, os profissionais de saúde (e familiares) não terão elementos pra julgar o que são demandas de internação ou não – eles mais provavelmente desejarão internar a todos, já que não estão recebendo incentivos a pensar de outro modo além de um sensacionalismo antidrogas irresponsável.

Podemos entender que uma pessoa que tenha problemas com o crack encontre-se desestruturada em várias questões de vida que terão de ser trabalhadas, se é que queremos chamar nosso apoio de terapêutico, e não de mero paliativo. Podemos entender, também, que os familiares destas pessoas vejam a si mesmos desassistidos para lidar com a situação. Igualmente compreensível é o posicionamento da FEBRACT,que em recente seminário em Campinas/SP disse que “as Comunidades Terapêuticas são os únicos recursos que as famílias dispõem”. Mas que os gestores assumam este posicionamento fechado unicamente sobre consequências, sem olhar e trabalhar a partir de suas causas (causas diversas, que dirão respeito a cada pessoa que usa crack) é de uma irresponsabilidade criminosa.

Os também citados CAPS-AD cabem nesta mesma problemática: inicialmente projetados para operar a partir destas questões singulares,individuais, bem como num acompanhamento das famílias; hoje não autorizam-se a acolher a demanda de famílias que, apoiando-se nos critérios sensacionalistas dos jornais locais, e sem recursos para falar sobre o assunto de modo mais aberto, também deseja unicamente a internação e o isolamento. Não de si mesmas, claro, mas dos culpados eleitos, os ditos drogados.

Quando estes retornam à casa após a desintoxicação e os espaços de tratamento em isolamento, paira o fantasma da recaída – para o qual também não olhamos causas, ao invés disso culpabilizando indivíduos por não terem conseguido seguir o caminho estreito que ofertamos. E assim indefinidamente, produzimos mais e mais pessoas distanciadas de referências em seus territórios, e por isto, mais e mais usos problemáticos.

A pretensão de nossas políticas públicas e de seus gestores é tamanha que, diante do total fracasso estatístico das estratégias ofertadas (desintoxicação e isolamento), ao invés de tecerem uma autocrítica, desejam impôr via ordem judicial que as pessoas inscrevam-se nos programas já existentes, sem referência alguma quanto à eficácia dos mesmos (para além daquilo que atestam donos de clínicas e CTs e seus simpatizantes, como a Frente Parlamentar que os representa). Esperamos que a sociedade não demore tanto a descobrir que, entre inserção e adesão a um tratamento, há uma diferença gigantesca, assim como entre o número de pessoas que efetivamente beneficiam-se de tais estratégias, quando comparado como de pessoas que não são (e provavelmente nunca sejam) contemplados por elas. A questão, aqui, não é o acesso ou o número de vagas, e sim o tipo de trabalho realizado; motivo pelo qual a escolha por internações compulsórias constituem uma tragédia anunciada.

Porque não estamos trabalhando no território vivido, se estamos diante de uma “epidemia”?

O próprio Ministro Padilha deixa claro o quanto isso é importante, numa gafe que comete ao justificar que os CAPS-AD devem operar em 24h unicamente “porque os usuários não escolhem quando precisarão de desintoxicação, ou quando terão uma crise de abstinência”. Ora, então é pra isso que os CAPS-AD servem, no entender do Plano: não é pra dialogar com a demanda do território, ou pra compreender as causas da tal “epidemia”, mas sim, para encaminhar a espaços de confinamento e alta complexidade. O alarde sensacionalista, ao usar a palavra “epidemia”, deveria ao menos lidar como se estivéssemos, de fato, diante de uma epidemia –compreendendo como que os problemas acontecem e atuando sobre suas causas.

O ministro comparou a epidemia do HIV com aquilo que hoje chamam de epidemia do crack, como se fossem problemas de igual importância para o país. Antes fosse tratado com a mesma seriedade, competência técnica e coragem política, pois em momento algum dos esforços históricos no combate às infecções de HIV técnicos ou movimentos sociais perderam seu tempo tentando fazer a apologia a um mundo sem vírus. Simplesmente fizeram o que temos que fazer: compreender a realidade em que estamos, e trabalhar a partir dela. E fazer isso, ao contrário do que pensam as pessoas cegas pelo moralismo antidrogas, é muito diferente de desejar que os problemas aconteçam – assim como movimentos religiosos condenavam as primeiras campanhas de promoção de cuidado e sexo seguro.

A estratégia de Redução de Danos, que surgiu como intervenção para redução de contágios entre pessoas que usavam cocaína injetável, tem histórico inegável de eficácia, comprovado nas ruas e na academia. Desde o surgimento do crack, com a diminuição do uso de cocaína injetável, os Programas de Redução de Danos foram abandonados ou tornaram-se inutilizados. O que se esqueceu desta experiência é que o sucesso do trabalho de redutores e redutoras de danos pelo país não se deu pela mera troca de seringas limpas, mas pelo trabalho de vínculo e acompanhamento das pessoas que usam drogas nos seus próprios espaços de convivência. Desde que comecei a trabalhar como redutor de danos, nunca ouvi falar (como afirmam grande maioria dos trabalhadores de clínicas e assemelhados) que este trabalho fosse algo de “difícil manejo”. A única dificuldade que relatamos, sem exceção, é a da disponibilidade, da vontade de trabalhar nestes contextos que são bem distantes do conteúdo ficcional (e quase infantil) das campanhas de prevenção antidrogas, bem como da formação de muitos profissionais.

Colegas redutores de danos de todo o Brasil queixam-se de uma demanda na inserção e no vínculo com esta dita população “difícil”,pois hoje a rede inteira pede para que intervenham sobre as famílias,fazendo não um trabalho compreensivo em saúde, mas sim, de encaminhamento à internações. A ideia de cura ainda persiste. Se a pessoa volta a usar drogas, é estigmatizada, culpabilizada. Entre uma coisa e outra, essa brava gente tenta trabalhar, de fato, promovendo sujeitos de cuidado, promovendo saúde, realizando matriciamento de equipes, articulação entre serviços de vários setores. Tudo isso sem perder o vínculo nas próprias cenas de uso, e atuando nos horários de uso.

Porque omitimos o histórico acúmulo técnico que já temos para lidar como crack?

Se o objetivo fosse o de tratar um problema de saúde de dimensões epidêmicas, certamente o ideal de eficácia não seria o da imposição de moralismos e ideais sobre corpo e saúde, exigindo-se pessoas abstinentes à torto e à direito – e o que é pior, sem condições mínimas para acompanhá-las em sua adesão. As políticas de prevenção ao HIV/Aids aprenderam isso há décadas, tratando toda a diversidade de práticas sexuais – e inclusive as desprotegidas – como uma realidade a ser compreendida e trabalhada no que diz respeito ao cuidado em saúde, e não a ser “combatida”e “enfrentada”. Porque é que as políticas de prevenção aos problemas com drogas (comparando os usuários de crack ora a zumbis, ora aos mosquitos da dengue) não aprende com isso? Talvez porque aí demonstre a face mais crua do paradigma da guerra às drogas – que, vale lembrar, encontra-se como superado em sua eficácia pela própria legislação atual sobre drogas, a Lei nº13.343/06.

Esta imagem contraditória entre teoria e prática permaneceu clara no discurso do ministro, que após falar o que falou sobre os CAPS-AD,afirma que “os consultórios de rua, bem como agentes redutores de danos, não tem a função de encaminhar à internação compulsória”. A gafe se encontra no fato de que, em momento algum, o ministro mencionou (ou demonstrou saber) que funções,afinal, seriam estas dos consultórios de rua e dos Programas de Redução de Danos. Seria desconhecimento ou falta de coragem política? Não se diga que é um total desconhecimento, visto que o paradigma da promoção de saúde, com ações que se dão no território onde as pessoas vivem, e não em espaços de confinamento, é uma diretriz do SUS. O eixo orientador da Atenção (ou seja, do trabalho em Saúde) é na comunidade. O discurso doministro deixou várias pistas sobre a importância deste ordenamento, ao citar por exemplo a grande diversidade de cenas de usos de crack – e portanto, de relações problemáticas distintas entre si, que requerem obviamente a proposição de planos terapêuticos singulares. Ao defender a imposição de medidas compulsórias e unicamente espaços de isolamento, o Plano situa-se como se estivéssemos descoberto uma espécie de vacina contra a dita epidemia. Que nunca será descoberta, pois estamos falando de práticas corporais diversas, não da infecção de um mesmo vírus (no caso o crack) em vários corpos. Enquanto isso, redutores e redutoras de danos de todo o país (com raríssimas excessões que eu desconheça), que tiveram grande sucesso promovendo saúde e prevenindo problemas em uma epidemia de fato – a do HIV – hoje sofrem um violento processo de precarização dos vínculos de trabalho, ausência de recursos mínimos e, novamente, falta de coragem política por parte de gestores.

Fazendo oposição à lógica do acompanhamento e compreensão do que está acontecendo nas diversas cenas de usos, o Plano mostra ações teoricamente inovadoras, mas que nada mais prometem fazer do que a reprodução do mesmo. Por isso mesmo, é preciso discordar do ministro quando este diz que estamos diante de um novo desafio.Estamos diante de um desafio já velho e que se torna cada vez mais dificultoso devido à imposição de moralidades antidrogas, esta também velha, e de uma epidemia noticiada e propagandeada pelos grandes anunciantes morais.

Perdoe-me dizê-lo, ministro, mas saiba de antemão que não será possível”vencer o crack”, pelo simples motivo de que não se trata de uma guerra. Se estas são vossas palavras de ordem, que você e seus companheiros, mais ou menos próximos, possam ter a dignidade de engolí-las a seco daqui a alguns anos. Ou neste exato momento, dá no mesmo. O plano não mudará em nada o Brasil, pois não está identificando as causas da desassistência das pessoas que usam crack ou outras drogas, e nem parece disposto à tão pouca auto-crítica necessária sobre os males advindos de nossa prepotência. Enquanto isso, querendo ou não, é fato que donos de clínicas e Comunidades Terapêuticas ganharão muito dinheiro com as recaídas. Juntamente, é claro, com a indústria farmacêutica e seus paliativos contra a”fissura”, geralmente prescritos de modo mecânico e irresponsável por “trabalhadores” da saúde que raramentechegaram a conhecer o que é uma cena de uso.

A que ponto estamos na dificuldade de falar “sobre drogas”

Outro tema levantado foi a capacitação de profissionais e graduandos em suas necessárias mudanças curriculares diante do tema das drogas -através da SENAD. Resta saber se haverá o cumprimento daquilo que preconizou a atual legislação sobre drogas: a mudança de paradigmas antidrogas para o “sobre drogas”, que implica, pasmem, em reconhecer que as drogas existem, bem como pessoas que as usam. Os materiais didáticos de cursos à distância promovidos pela SENAD desde 2006 (após a nova lei) apontam para o contrário: reproduzem mais da mesma cegueira quanto à história das drogas; e a mesma incoerência daqueles que se dizem preocupados com a sociedade e com o problema das drogas, mas que seguem silenciando sobre as práticas de extermínio legitimadas pela ideologia de “combate às drogas”. É preciso que a SENAD, caso pretenda atualizar o conteúdo de disciplinas nos espaços acadêmicos, atualize-se a si mesma, fazendo jus à mudança operada em sua sigla. Os materiais educativos da SENAD seguem silenciando sobre o papel das políticasde drogas na promoção de processos de tutela e estigmatização que fazem parte do problema, não da solução.

Por outro lado, não se pode entender como o ministério da Saúde propõe uma reforma curricular, bem como esforços de educação sobre tal temática nas escolas, sem partir dos pressupostos e diretrizes do Sistema Único de Saúde, mas sim de uma lógica do combate antidrogas (encontrada hoje na SENAD), que ao pregar o extermínio de pessoas que usam drogas, põe-se contra direitos constitucionais.

A saber:como podemos esperar que as pessoas com usos abusivos de crack sintam-se à vontade para falar sobre tais usos abertamente, se nem mesmo a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas parece disposta a fazê-lo?

Promessas e expectativas colocada sobre os espaços de isolamento

O ministro apresenta, então, as parcerias com a rede de serviços “do terceiro setor” – em suas palavras, sempre aqueles com “abordagens terapêuticas as mais variadas possíveis” e”respeitando os direitos humanos”.

Claro,as Comunidades Terapêuticas grandes e instituídas não podem (e não querem) ser confundidas com as pequenas, ou até mesmo com as clandestinas. Mas a hegemonia das grandes, bem como o silenciamento político de entidades como a FEBRACT quanto às violências (físicas e verbais) que ocorrem não em fazendas, mas no cotidiano da guerra às drogas de um modo geral, legitima a ideologia antidrogas, permitindo inegavelmente o crescimento exponencial das pequenas, e das demandas pela exclusão social dos ditos drogados. Todas as CTs unem-se nestes sentidos: primeiramente, enquanto espaços de confinamento que, do ponto de vista da terapêutica nada oferecem de diversidade, visto todas pautarem-se em programas para pessoas que desejam não usar drogas. Acontece que falar em diversidade, aqui,não é falar no número de CTs à disposição, tampouco nas diferentes religiosidades que permeiam suas propostas terapêuticas.Estamos falando na diversidade de relações possíveis através das drogas, o que apontaria para as pessoas que também beneficiam-se de abordagens de promoção de saúde no território onde vivem (e aí sim, talvez pudéssemos falar em prevenção de fato). Já de antemão, perguntar-se-ia ao ministro porque o Plano não cita ou sequer concebe dentro desta diversidade, para manter sua coerência,entidades do terceiro setor que atuem nos territórios e cenas de usos no paradigma da promoção de saúde e articulação com a rede de contatos familiar e afetiva das pessoas que usam crack, para além do mero isolamento. Territórios, vale lembrar, para os quais os”graduados” em CTs voltarão após o período de isolamento.

Outro ponto em comum com todas as CTs, regularizadas pela ANVISA ou não, é que tais espaços, grandes ou pequenos, carecem de observar Direitos Humanos como o direito ao uso do próprio corpo (que não é sequer um direito, é uma realidade que independe de nossa aceitação). Mas não se exija que as CTs concebam algo que nem o ministério parece conceber, ainda que, diferente destas, têm a obrigação de fornecer serviços à todas as pessoas que usam drogas, e não somente àquelas que desejam ou conseguem padrões de abstinência. Sendo que, mesmo para aquelas que inclinam-se à abstinência, não terão seus direitos respeitados caso sejam obrigadas judicialmente a cumpriremtratamentos, à revelia de sua vontade. O que implica em dizer que,muito provavelmente, terão uma adesão quase nula, a não ser que omitamos os dados das pessoas que cotidianamente fogem dos isolamentos, impostos ou não (pelo simples motivo de que tais tratamentos podem não fazer sentido às suas vidas – estávamos falando em diversidade, não é mesmo?).

Conclui-se que “respeitar os direitos humanos”, para o ministro Padilha, é o mesmo que não matar ou torturar pessoas. Está bem:ficamos ao menos tranquilizados em saber que as CTs não estão autorizadas a matar e torturar pessoas que usam drogas (como fazemos com as pessoas nos presídios). Talvez porque torturar e matar quem usa crack é algo que, como veremos a seguir, só pode acontecer na rua – na ausência do estado, ou melhor, na sua única presença, que são os efetivos policiais.

Não por acaso, neste momento a Saúde encerra sua fala para dar lugar à falado ministro da Justiça. Ainda incrédulo diante da ausência de soluções deixada pela exposição do ministro Padilha, fico pensando em uma frase vista num muro de Porto Alegre, demarcando que nossos remédios estão sendo mais perigosos que os venenos.

A frase:”chega de justiça!”.

Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso

O ministro da Justiça começa sua fala dizendo que a exposição do ministro da Saúde teve uma temática pautada no cuidado. À ele,agora, caberia falar de outros pilares do Plano, como o da prevenção e da autoridade – ou seja, a prevenção não se encontra mais como possibilidade na área da Saúde. Prevenção e autoridade, andando juntas, já dão o tom de uma dimensão pedagógica confusa em que verdades precisam ser impostas às pessoas que usam crack. É como se, mesmo distantes do trabalho em seus territórios de vida, ou sequer tomando conhecimento da importância deste trabalho, já soubéssemos de antemão tudo a respeito das pessoas que usam crack.

As gafes eventuais do ministro, confundindo-se no uso politicamente correto da palavra “enfrentamento”, como neologismo para “combate”(que, vale lembrar, foi apontado como equivocado pela legislação sobre drogas), antes dá mais respeitabilidade ao ministro, que ao menos demonstra, como veremos, alguma coerência entre teoria e prática.

O que o Plano está “enfrentando”?

O relato sobre “integração de informações para desenvolver atividades de repressão”, em “atuação em locais de concentração de uso do crack”, já põe em questão o discurso do ministro anterior. Certificamo-nos, então, de que é para isso mesmo que estamos fazendo políticas de enfrentamento: não para enfrentar problemas advindos de relações de abusos com crack, mas para,ingenuamente, enfrentar o fato inegável de que as drogas existem,bem como pessoas que as usam. E, o que é mais esclarecedor: Saúde e Assistencia social, segundo o ministro da Justiça, terão unicamente a função de “orientar as pessoas para irem a serviços de saúde”.

Ou seja,o fato de os trabalhadores estarem lá, nas cenas de uso, não significa a presença de um trabalho em Saúde. É como se ignorássemos as diretrizes da própria Saúde, com todo seu enfoque sobre a promoção e a verdadeira prevenção (aquela construída emato). Ignoramos também toda a potencialidade, igualmente comprovada, de promoção de saúde realizada não só por agentes comunitários de saúde, acompanhantes terapêuticos e redutores de danos, mas por quaisquer trabalhadores. A presença da Saúde só se constituiria então, de acordo com o Plano, quando a pessoa “entra num serviço de Saúde”.

A ideia de que só é possível trabalhar em saúde nos espaços que as pessoas vivem parece totalmente ignorada, desvelando a lógica claramente manicomial desta parceria intersetorial, que de respeitosa aos direitos humanos – e agora incluímos o direito de ir e vir – não há nada. Também ignora-se que o trabalho em saúde realizado no âmbito da comunidade (e que a experiência da Redução de Danos,por exemplo, mostrou que inclui também as cenas de usos de drogas,lícitas ou ilícitas, como espaços potentes para a elaboração de vínculos), não teve seu sucesso por acaso.

Se a pretensão do Plano é gerar cada vez mais uma presença da Saúde ou da Assistência Social nestas cenas com o intuito de encaminhar pessoas que usam drogas para outros lugares, ao invés de tentar compreender a situação de cada uma delas, trabalhando a partir disso não só nas fáceis questões clínicas, mas nas composições de planos terapêuticos singulares, junto à sua rede de amigos efamiliares, infelizmente todos os consultórios de rua, ou qualquer nome que queira se dar a isto, terão de se defrontar com um fracasso monumental.

Critérios de análise para a eficácia do “enfrentamento”

Através de uma fala identificada na Justiça, podemos perceber mais claramente que parâmetros estão sendo utilizados para balizar a eficácia do Plano. O espectro da internação compulsória, como já vimos, bem como a alegada necessidade desta, é mais consequência do que causa de uma moralidade que não concebe como real a existência de drogas na sociedade, e que deseja ingenuamente extirpá-las. Há uma grande diferença, porém, entre a ingenuidade sensacionalista dos jornais, ou os diversos dogmas religiosos, e a elaboração de políticas públicas. Com isso, estamos pretendendo situar ações de enfrentamento ao crack com as mesmas cegueiras apaixonadas que acometem aos familiares e às próprias pessoas que tem usos problemáticos de crack.

Repetindo erros seculares

A presença do Estado nas comunidades, para o ministro, deve se dar no policiamento ostensivo em proximidade, com policiais treinadospreviamente para desenvolver a polícia ostensiva. Fala-se em bases móveis e de monitoramento, com câmeras de vigilância, e imagino desde já que espaços os gestores municipais escolherão instalar as câmeras, por desejarem que fiquem mais “limpos”, fazendo nada além de varrer as pessoas que usam drogas para debaixo de seus tapetes, para os espaços da periferia. Não por acaso é que os traficantes, para o ministro, serão pessoas identificadas dentre as cenas abertas de uso (nas periferias), o que implica em dizer que vergonhosamente vamos seguir prendendo os mesmos jovens adultos pobres (em sua maioria negros) à guisa de “combate ao tráfico”.

Não estaremos, obviamente, procurando as linhas de entrada do dinheiro ilícito na conta de deputados, senadores, secretários ou comandantes de batalhão. Pelo contrário: ao falar sobre a necessidade de situarem-se novas formas de investigação, o ministro traz a imagem do que desejaria fazer diante do caminhão carregado de drogas na fronteira: acompanhá-lo em seu destino, não em sua origem(por acaso temeriam os agentes da PF que tais investigações os conduzissem a Brasília?)

O combate da realidade das drogas no mundo através da entrada de fronteiras (outro ponto de ação anunciado), se colocado mesmo em prática, promete ser bastante lucrativo, a exemplo do grande muro construído entre EUA e México, cuja única função, além de um paliativo para as massas que leem os jornais e votam, é tornar ainda mais alta a taxa usada para negociar a entrada das drogas no país.Em resumo, com maior controle de fronteiras, negocia-se com mais segurança a entrada do ilícito. Não se trata de um problema de corrupção.

Da dificuldade em falar abertamente sobre drogas (ainda)

Mais especificamente sobre o que chamaram de ações em prevenção: é vergonhoso que um ministro da Justiça tenha espaço para falar que a SENAD terá alguma eficácia com a execução de programas educativos antidrogas nas escolas – se é que podemos assim chamar programas que fazem a apologia da violência e da estigmatização das pessoas que usam drogas. Além de, em sua pedagogia do terror, tirar quaisquer possibilidades de criarem-se ambientes livres para o diálogo sobre as experiências que temos com as drogas, seja em âmbito escolar ou em âmbito intrafamiliar.

O ministro usa a expressão “dimensão pedagógica” para falar de seu serviço telefônico para informações sobre drogas (em verdade, informações contra as drogas), bem como de campanhas publicitárias para a “prevenção ao uso”, expressão estaque é um neologismo para o combate, visto que não é possível conceber prevenção ao uso sem adotar a noção de que as pessoas que usam drogas deveriam, em uma sociedade ideal, deixar de existir.

Por fim, ficamos sabendo que este Plano, o “mais ousado na história brasileira no enfrentamento a este tipo de situações” (sic),segundo o ministro da Justiça, tem suas graças na pessoa à frente da Casa Civil, Gleisi Hoffmann.

Jacques Wagner, atual governador da Bahia

Talvez não fosse digno de nota o discurso do governador Jacques Wagner, que tentou falar sobre a banalização da vida, ou do quanto valorizamos hoje o ter sobre o ser; da tamanha exclusão gerada pelas violências, principalmente no Nordeste; e que valores de vida, e de família, estão colocados nestas ações também. Além disso, falou em humildade, e na provável dificuldade que a questão das drogas nos coloca…

Basicamente um discurso vazio, estrategicamente situado para elogiar vagamente as boas intenções do governo, mas que sequer percebe a si mesmo -visto que, se percebesse, teria comentado minimamente as pretensões e os valores daqueles que o antecederam ao microfone.

DilmaRousseff

Dito isso, Dilma, dizendo-se comovida diante da exposição de Jacques Wagner, com suas tão coerentes leituras dos significados profundos da tragédia humana dos usos de drogas (ou algo assim), assina a papelada e estende elogios à base aliada que teria ajudado a compor o natimorto plano “Crack, é possível vencer”. É citada desde a Casa Civil (que teria articulado os esforços entre-ministérios) até o ministério dos Direitos Humanos, que na pessoa de Maria do Rosário não só parece ter assistido à tudo como ajudado a construir esta verdadeira afronta aos Direitos Humanos e constitucionais básicos (como em seu recente pronunciamento no Rio de Janeiro, favorável às internações compulsórias). Elogia-se também uma Frente parlamentar das Comunidades Terapêuticas, que,mantendo-se a coerência de uma lista deste porte, não poderia ficar de fora.

Desenganos e desgovernos

Dilma, cuja figura de ex-combatente fora associada em sua campanha à imagem de uma mulher guerreira contra os totalitarismos da ditadura militar, vai ao microfone para sintetizar que o plano pode ser resumido no slogan “vida sim, drogas não”.

É um slogan com consequências perversas, pois aqui se está falando da intolerância em relação às pessoas que usam drogas, e mais grave que isso, da ignorância sobre o fato de que todos nós usamos drogas lícitas, ilícitas e prescritas, cuja diferenciação só se dá do ponto de vista jurídico, legal; pois do ponto de vista dos desejos e expectativas diversos através das drogas, falamos de algo que, na música do Chico Buarque e do Milton, “não tem governo e nunca terá”. Isso, é claro, se não tivermos a pretensão, como nos governos totalitários, de que ter governo é não ter problemas.

Se quisermos falar de um governo que realmente enfrente problemas sociais como os usos abusivos de crack, aí devemos falar na promoção de sujeitos de cuidado junto com as pessoas que usam drogas -considerando, é claro, a diversidade de serviços à disposição, e não sua unicidade como o anunciado pelo Plano, e muito menos a imposição de serviços (que, neste caso, não mais poderão ser entendidos como espaços de acolhimento). Se a partir da promoção destes sujeitos de cuidado as pessoas que usam crack desejarão a abstinência, será como resultante das reflexões sobre seu bem-estar e saúde, já numa perspectiva de adesão, de sucesso. Senão desejarem abstinência, igualmente terão acolhimento e possibilidade de construções de planos de vida.

A necessidade de releituras históricas

Dilma sabe que nunca houve qualquer sucesso nas políticas de guerra à drogas; ao mesmo tempo em que faz questão de dizer que devemos aceitar “as mais diversas iniciativas da sociedade” (coisa que no Plano, definitivamente, optou por não fazer).

A eficácia é avaliada já em termos de um cuidado paliativo: Dilma fala que permanência deste programa enquanto um programa vitorioso é o de pensarmos a cada conquista (a cada abstinência?), uma conquista que iremos manter. “Tratar de modo diferenciado os diferentes processos de acolhimento” é uma espécie de palavra de ordem que serve mais de justificativa à entrada da lógica manicomial na rede pública do que à uma imagem de coerência, porque na prática e na teoria, em momento algum este Plano está trabalhando com aquilo que, segundo a OMS e o bom senso, constitui a grande maioria das pessoas que usam drogas: pessoas cujos usos não são problemáticos,e que, mesmo quando nos demandam internações, não deixam de demandar um acompanhamento e acolhimento nos espaços onde vivem.

Dilma situa números dos programas sociais que efetivamente tiraram pessoas da miséria, “colocando-as na classe média”; e de uma suposta soberania de um país que agora governa a si mesmo, hoje em condição mais digna diante de dívidas históricas internacionais(vale lembrar, com os mesmos países que historicamente assaltaram as terras brasileiras). Esquece-se de que todo o Plano apresentado nada tem de inovador, e em termos geopolíticos, simboliza a reprodução da velha ideologia antidrogas, que sempre financiou politicamente a margem ilícita do capital financeiro, bem como todas as intervenções militares nas parcerias estadunidenses com países da América Latina, à título de “controle territorial de produções ilícitas”, para a desgraça de populações pobres em regiões rurais e urbanas.

Fim da cerimônia: os slogans e frases de efeito

Dizer “Vida sim, drogas não”, ao contrário do que pensa a presidenta Dilma, é abandonar a possibilidade de acolhimento de todos os problemas que associamos às drogas. A presidenta diz que não pretende ser dona da verdade, tampouco estar diante de um caso fácil de lidar – mas ela sequer precisa mencioná-lo.

Dirigindo-se a pais e mães de família, identificando-se com suas dores e angústias no discurso em que fecha a cerimônia, confirma-nos a impressão de que a própria família não será acompanhada em suas demandas. Ao invés disso, as políticas públicas voltadas à questão de drogas como o crack está seguindo à risca os mesmos anseios ingênuos e imediatistas (ainda que sinceros e verdadeiros) de familiares apaixonados pela cura, alegria e saúde definitiva “destes filhos e filhas”, no período mais curto de tempo,e se possível com o mínimo de exposição e autocrítica sobre o contexto de vida em nossa sociedade.

Ao fim da cerimônia, que confirmou o seu caráter de legitimação de processos de estigmatização contra pessoas que usam drogas, dando lugar ainda a práticas de extermínio, Dilma convoca a todas as pessoas que ajudem o governo (a estigmatizar e combater).

“Ter fé e esperança na recuperação de cada um” é necessário ,nesta complicada sociedade atual, segundo Dilma. E esta parece aparte mais coerente de sua fala – porque a depender deste Plano, as pessoas que usam drogas no Brasil seguirão desassistidas.



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