retirado de http://www.saudecomdilma.com.br/
por Paulo Capel Narvai, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e membro da Comissão Geral de Relatoria da 14ª Conferência Nacional de Saúde.
No final da tarde de domingo, 4/12/2011, após cinco dias de trabalhos em ritmo intenso, encerrou-se mais uma Conferência Nacional de Saúde (CNS), desta vez a de número 14. Ao contrário de pelo menos as cinco últimas que a precederam, esta Conferência encerrou suas atividades dentro do tempo previsto e decidiu sobre as 15 diretrizes e as 346 propostas analisadas em 17 grupos de trabalho e na plenária final. Um avanço organizativo que deve ser creditado ao Conselho Nacional de Saúde, uma vitória da democracia participativa, uma conquista dos que lutam pelo direito à saúde no Brasil.
Contudo, no apagar das luzes da 14ª CNS, os delegados ainda presentes na plenária final aprovaram um documento, não previsto no regimento nem no regulamento do evento, intitulado “Carta da 14ª Conferência Nacional de Saúde à sociedade brasileira”. Tendo em vista o ineditismo de aprovar um documento desse tipo, cujo conteúdo era desconhecido dos delegados até aquele momento, a mesa coordenadora dos trabalhos consultou a plenária sobre se aceitava ou não apreciar e decidir sobre o documento.
Estabeleceu-se, de imediato, um impasse. Porém, mesmo diante de efusivas manifestações contrárias por muitos delegados, a mesa argumentou sobre a necessidade “democrática” de se conhecer o teor do documento. Foi um inusitado desrespeito à democracia, em nome da… democracia. Não valiam mais as regras definidas no regimento aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde nem as fixadas pelo regulamento, aprovado na longa plenária de abertura. Naquele momento, curiosamente, reivindicavam-se como democratas os que desconsideravam as regras e eram convertidos em antidemocratas os que pediam respeito às regras. Dada a insistência e contundência da manifestação negativa à discussão da Carta, o próprio Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, assumiu a palavra e encaminhou a votação, argumentando: “Pessoal, ninguém vai ganhar nada no grito aqui (…). Essa mesa não fará nada que esse plenário não defenda. Vamos ter calma. Ninguém vai ganhar nada no grito (…). Nós vamos colocar em votação”.
A proposta dividiu o plenário e, segundo avaliação da mesa, venceu a proposta de ler e decidir sobre a Carta. O ministro fez valer sua autoridade e venceu a proposta por ele defendida. Ganhou, segundo Padilha, a “democracia do voto”. Porém, o Ministro não precisava ter se desgastado politicamente com isso. Tinha em mãos uma realização de grande significado: o absoluto sucesso da conferência realizada sob sua presidência no Conselho Nacional de Saúde. Era declarar encerrada a 14ª CNS e comemorar o feito. Mas, inadvertidamente creio, se enredou na aventura de uma Carta despropositada e desnecessária.
Não se sabe quantos dos 2.937 delegados ainda estavam presentes e participaram da votação. Numa clara demonstração da confiança dos delegados na comissão organizadora, a Carta da 14ª CNS foi, enfim, aprovada, para satisfação dos que a defendem. Pessoalmente, tenho grande identificação com o conteúdo do documento, que em boa parte expressa o conjunto de diretrizes e propostas aprovadas para o Relatório Final da 14ª CNS. Mas, da maneira como foi obtida, trata-se, sem dúvida, de uma vitória de Pirro.
Estou entre os que temem o custo político dessa vitória, pois a forma como o processo foi conduzido, desconsiderando o regimento e o regulamento da conferência, e impondo aos delegados que decidissem sobre sua aprovação ou rejeição, produzirá efeitos muito negativos sobre a credibilidade desta e de outras conferências. A leitura e votação da Carta da 14ª CNS levou 19 minutos e 3 segundos. Não se sabe, também, nem a origem nem quem assina a Carta, pois há duas versões circulando, a primeira assinada pela “Comissão Organizadora”; a segunda pela “Plenária”. No caso da primeira versão, isso deveria ter sido informado ao plenário, o que não aconteceu. Alguns delegados atribuíram a autoria à Comissão de Relatoria o que, posso assegurar, não corresponde aos fatos. Quanto à segunda versão, trata-se de um absurdo lógico, pois “Plenária” é instrumento organizativo, “plenária” não é sujeito, portanto, “plenária” não pode ser signatária de coisa alguma.
Não obstante a grande sintonia do conteúdo da Carta com o Relatório Final da 14ª CNS, alguns delegados indicaram o “desaparecimento” na Carta, de alguns termos e expressões muito freqüentes no presente, nos debates sobre os rumos do SUS e da política de saúde no Brasil, como, por exemplo, “organizações sociais” e “fundações de saúde”. Afirmam, também, que há um trecho em que a Carta é ambígua, não expressando exatamente o que foi decidido na 14ª CNS, mas que está presente com clareza em seu Relatório Final. Esses delegados se referem ao seguinte trecho: “Defendemos a gestão [grifos no original] 100% SUS: sistema único e comando único, sem ‘dupla‐porta’, contra a terceirização da gestão e com controle social amplo. A gestão deve ser pública e a regulação de suas ações e serviços deve ser 100% estatal, para qualquer prestador de serviços ou parceiros. Precisamos contribuir para a construção do marco legal para as relações do Estado com o terceiro setor”.
Argumenta-se que “gestão pública e regulação 100% estatal” deixa aberta a porta para que “ações e serviços” sejam terceirizados, como está acontecendo em várias localidades brasileiras, apesar da oposição frontal dos que defendem que as ações e serviços de saúde sejam públicas, executadas por instituições públicas. E isto é o relevante no contexto, pois é irrelevante o debate sobre a gestão e a regulação serem estatais, já que há consenso sobre isto entre os defensores do SUS. Além disso, o Relatório Final não menciona o “terceiro setor” que, para surpresa de muitos, aparece na Carta, saído não se sabe bem de onde, nem por quê.
Cabe registrar, sobre isto, que o Relatório Final da 14ª CNS aprovou um conjunto de propostas que esclarecem, suficientemente, o que os delegados pensam sobre a gestão e a execução das ações e serviços de saúde. Vale a pena reproduzir algumas dessas propostas:
Garantir que a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) em todas as esferas de gestão e em todos os serviços, seja 100% pública e estatal, e submetida ao Controle Social (Diretriz 5 – Proposta 1).
Rejeitar a cessão da gestão de serviços públicos de saúde para as Organizações Sociais (OS), e solicitar ao Supremo Tribunal Federal que julgue procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 1923/98, de forma a considerar inconstitucional a Lei Federal nº 9.637/98, que estabelece esta forma de terceirização da gestão (Diretriz 5 – Proposta 2).
Rejeitar a cessão da gestão de serviços públicos de saúde para as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Publico (OSCIP) (Diretriz 5 – Proposta 3).
Rejeitar a proposição das Fundações Estatais de Direito Privado (FEDP), contida no Projeto de Lei nº 92/2007, e as experiências estaduais/municipais que já utilizam esse modelo de gestão, entendido como uma forma velada de privatização/terceirização do SUS (Diretriz 5 – Proposta 4).
Garantir que os convênios e contratos do SUS sejam apreciados e aprovados previamente pelos conselhos de saúde, nas três esferas de governo, antes de sua assinatura, e aumentar os recursos destinados ao fortalecimento dos órgãos de fiscalização, controle e auditoria do SUS (Diretriz 2 – Proposta 6).
Respeitar a constituição e as leis orgânicas do SUS, de forma a restringir a participação da iniciativa privada no SUS ao seu caráter complementar; que as três esferas de gestão garantam o investimento necessário para a redução progressiva e continuada da contratação de serviços na rede privada até que o SUS seja provido integralmente por sua rede própria (Diretriz 5 – Proposta 7).
Submeter aos Conselhos de Saúde, inclusive durante o processo de elaboração do orçamento da área da saúde, os Projetos de Lei elaborados pelo Poder Executivo que tenham relação com as políticas públicas de saúde, para apreciação, debate e deliberação antes de enviar ao Legislativo (Diretriz 2 – Proposta 37).
Como se vê, a ambiguidade da Carta não decorre de alguma suposta ambiguidade do que foi aprovado na 14ª CNS, independente de se concordar ou não com o que foi aprovado.
O ruim do episódio é que o modo como tudo se deu, com decisões dessa importância e significado acontecendo em menos de 20 minutos, numa plenária já bastante esvaziada e dividida quanto a analisar ou não o documento proposto, cuja origem ninguém sabia ao certo, contribuiu para a propagação do sentimento de que o papel dos delegados em conferências é apenas o de legitimar decisões que interessam ao Estado. Isto não contribuiu, e certamente não fortalece, a consolidação e o aprofundamento da democracia no País.
O bom é que a Carta assume, no último parágrafo, um compromisso com a “implantação de todas as deliberações da 14ª CNS”. Sobre até onde irá esse compromisso, em toda a sua radicalidade, o tempo dirá.
por Paulo Capel Narvai, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e membro da Comissão Geral de Relatoria da 14ª Conferência Nacional de Saúde.
No final da tarde de domingo, 4/12/2011, após cinco dias de trabalhos em ritmo intenso, encerrou-se mais uma Conferência Nacional de Saúde (CNS), desta vez a de número 14. Ao contrário de pelo menos as cinco últimas que a precederam, esta Conferência encerrou suas atividades dentro do tempo previsto e decidiu sobre as 15 diretrizes e as 346 propostas analisadas em 17 grupos de trabalho e na plenária final. Um avanço organizativo que deve ser creditado ao Conselho Nacional de Saúde, uma vitória da democracia participativa, uma conquista dos que lutam pelo direito à saúde no Brasil.
Contudo, no apagar das luzes da 14ª CNS, os delegados ainda presentes na plenária final aprovaram um documento, não previsto no regimento nem no regulamento do evento, intitulado “Carta da 14ª Conferência Nacional de Saúde à sociedade brasileira”. Tendo em vista o ineditismo de aprovar um documento desse tipo, cujo conteúdo era desconhecido dos delegados até aquele momento, a mesa coordenadora dos trabalhos consultou a plenária sobre se aceitava ou não apreciar e decidir sobre o documento.
Estabeleceu-se, de imediato, um impasse. Porém, mesmo diante de efusivas manifestações contrárias por muitos delegados, a mesa argumentou sobre a necessidade “democrática” de se conhecer o teor do documento. Foi um inusitado desrespeito à democracia, em nome da… democracia. Não valiam mais as regras definidas no regimento aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde nem as fixadas pelo regulamento, aprovado na longa plenária de abertura. Naquele momento, curiosamente, reivindicavam-se como democratas os que desconsideravam as regras e eram convertidos em antidemocratas os que pediam respeito às regras. Dada a insistência e contundência da manifestação negativa à discussão da Carta, o próprio Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, assumiu a palavra e encaminhou a votação, argumentando: “Pessoal, ninguém vai ganhar nada no grito aqui (…). Essa mesa não fará nada que esse plenário não defenda. Vamos ter calma. Ninguém vai ganhar nada no grito (…). Nós vamos colocar em votação”.
A proposta dividiu o plenário e, segundo avaliação da mesa, venceu a proposta de ler e decidir sobre a Carta. O ministro fez valer sua autoridade e venceu a proposta por ele defendida. Ganhou, segundo Padilha, a “democracia do voto”. Porém, o Ministro não precisava ter se desgastado politicamente com isso. Tinha em mãos uma realização de grande significado: o absoluto sucesso da conferência realizada sob sua presidência no Conselho Nacional de Saúde. Era declarar encerrada a 14ª CNS e comemorar o feito. Mas, inadvertidamente creio, se enredou na aventura de uma Carta despropositada e desnecessária.
Não se sabe quantos dos 2.937 delegados ainda estavam presentes e participaram da votação. Numa clara demonstração da confiança dos delegados na comissão organizadora, a Carta da 14ª CNS foi, enfim, aprovada, para satisfação dos que a defendem. Pessoalmente, tenho grande identificação com o conteúdo do documento, que em boa parte expressa o conjunto de diretrizes e propostas aprovadas para o Relatório Final da 14ª CNS. Mas, da maneira como foi obtida, trata-se, sem dúvida, de uma vitória de Pirro.
Estou entre os que temem o custo político dessa vitória, pois a forma como o processo foi conduzido, desconsiderando o regimento e o regulamento da conferência, e impondo aos delegados que decidissem sobre sua aprovação ou rejeição, produzirá efeitos muito negativos sobre a credibilidade desta e de outras conferências. A leitura e votação da Carta da 14ª CNS levou 19 minutos e 3 segundos. Não se sabe, também, nem a origem nem quem assina a Carta, pois há duas versões circulando, a primeira assinada pela “Comissão Organizadora”; a segunda pela “Plenária”. No caso da primeira versão, isso deveria ter sido informado ao plenário, o que não aconteceu. Alguns delegados atribuíram a autoria à Comissão de Relatoria o que, posso assegurar, não corresponde aos fatos. Quanto à segunda versão, trata-se de um absurdo lógico, pois “Plenária” é instrumento organizativo, “plenária” não é sujeito, portanto, “plenária” não pode ser signatária de coisa alguma.
Não obstante a grande sintonia do conteúdo da Carta com o Relatório Final da 14ª CNS, alguns delegados indicaram o “desaparecimento” na Carta, de alguns termos e expressões muito freqüentes no presente, nos debates sobre os rumos do SUS e da política de saúde no Brasil, como, por exemplo, “organizações sociais” e “fundações de saúde”. Afirmam, também, que há um trecho em que a Carta é ambígua, não expressando exatamente o que foi decidido na 14ª CNS, mas que está presente com clareza em seu Relatório Final. Esses delegados se referem ao seguinte trecho: “Defendemos a gestão [grifos no original] 100% SUS: sistema único e comando único, sem ‘dupla‐porta’, contra a terceirização da gestão e com controle social amplo. A gestão deve ser pública e a regulação de suas ações e serviços deve ser 100% estatal, para qualquer prestador de serviços ou parceiros. Precisamos contribuir para a construção do marco legal para as relações do Estado com o terceiro setor”.
Argumenta-se que “gestão pública e regulação 100% estatal” deixa aberta a porta para que “ações e serviços” sejam terceirizados, como está acontecendo em várias localidades brasileiras, apesar da oposição frontal dos que defendem que as ações e serviços de saúde sejam públicas, executadas por instituições públicas. E isto é o relevante no contexto, pois é irrelevante o debate sobre a gestão e a regulação serem estatais, já que há consenso sobre isto entre os defensores do SUS. Além disso, o Relatório Final não menciona o “terceiro setor” que, para surpresa de muitos, aparece na Carta, saído não se sabe bem de onde, nem por quê.
Cabe registrar, sobre isto, que o Relatório Final da 14ª CNS aprovou um conjunto de propostas que esclarecem, suficientemente, o que os delegados pensam sobre a gestão e a execução das ações e serviços de saúde. Vale a pena reproduzir algumas dessas propostas:
Garantir que a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) em todas as esferas de gestão e em todos os serviços, seja 100% pública e estatal, e submetida ao Controle Social (Diretriz 5 – Proposta 1).
Rejeitar a cessão da gestão de serviços públicos de saúde para as Organizações Sociais (OS), e solicitar ao Supremo Tribunal Federal que julgue procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 1923/98, de forma a considerar inconstitucional a Lei Federal nº 9.637/98, que estabelece esta forma de terceirização da gestão (Diretriz 5 – Proposta 2).
Rejeitar a cessão da gestão de serviços públicos de saúde para as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Publico (OSCIP) (Diretriz 5 – Proposta 3).
Rejeitar a proposição das Fundações Estatais de Direito Privado (FEDP), contida no Projeto de Lei nº 92/2007, e as experiências estaduais/municipais que já utilizam esse modelo de gestão, entendido como uma forma velada de privatização/terceirização do SUS (Diretriz 5 – Proposta 4).
Garantir que os convênios e contratos do SUS sejam apreciados e aprovados previamente pelos conselhos de saúde, nas três esferas de governo, antes de sua assinatura, e aumentar os recursos destinados ao fortalecimento dos órgãos de fiscalização, controle e auditoria do SUS (Diretriz 2 – Proposta 6).
Respeitar a constituição e as leis orgânicas do SUS, de forma a restringir a participação da iniciativa privada no SUS ao seu caráter complementar; que as três esferas de gestão garantam o investimento necessário para a redução progressiva e continuada da contratação de serviços na rede privada até que o SUS seja provido integralmente por sua rede própria (Diretriz 5 – Proposta 7).
Submeter aos Conselhos de Saúde, inclusive durante o processo de elaboração do orçamento da área da saúde, os Projetos de Lei elaborados pelo Poder Executivo que tenham relação com as políticas públicas de saúde, para apreciação, debate e deliberação antes de enviar ao Legislativo (Diretriz 2 – Proposta 37).
Como se vê, a ambiguidade da Carta não decorre de alguma suposta ambiguidade do que foi aprovado na 14ª CNS, independente de se concordar ou não com o que foi aprovado.
O ruim do episódio é que o modo como tudo se deu, com decisões dessa importância e significado acontecendo em menos de 20 minutos, numa plenária já bastante esvaziada e dividida quanto a analisar ou não o documento proposto, cuja origem ninguém sabia ao certo, contribuiu para a propagação do sentimento de que o papel dos delegados em conferências é apenas o de legitimar decisões que interessam ao Estado. Isto não contribuiu, e certamente não fortalece, a consolidação e o aprofundamento da democracia no País.
O bom é que a Carta assume, no último parágrafo, um compromisso com a “implantação de todas as deliberações da 14ª CNS”. Sobre até onde irá esse compromisso, em toda a sua radicalidade, o tempo dirá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.