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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

O craque dos pés no chão e cabeça nas nuvens



Os apalusos cairiam melhor para homenagear Sócrates, e não o silêncio, e não um minuto, mas uma hora, várias horas para o homem que parecia ter inumeráveis olhos ao jogar
Por Paulo Nogueira, Diário do Centro do Mundo

Sócrates foi uma improbabilidade.

Ele só começou a se dedicar mesmo ao futebol profissional aos 24 anos, o que para os jogadores significa a meia idade. Antes, quis se formar médico em Ribeirão Preto, numa das melhores faculdades do Brasil. Pelo começo tardio, e também por fumar e beber, jamais teve o preparo físico de um atleta. Por fim, nunca pareceu apaixonado por futebol. Você não conseguia imaginar Sócrates, aposentado, jogado entusiasmadamente bola com os amigos como tantos ex-jogadores fazem. Ou mesmo falando de futebol. Sócrates parecia compartilhar a tese, comum entre os esquerdistas de sua geração, de que o futebol é o ócio do povo.

Tudo isso foi compensado por uma dose extraordinária de talento, algo que os que têm fé definiriam justificadamente como um presente divino enviado por Deus para o garoto comprido, feioso e magro nascido em Belém e depois radicado em Ribeirão Preto.

Sócrates, na definição precisa do obituário feito pela BBC, em que foi tratado como um um dos maiores jogadores da história, parecia ter “visão telepática”. Você, ao vê-lo, tinha a sensação de que ele enxergava o jogo da arquibancada, e não no tumulto do campo. A visão prodigiosa lhe permitiu trazer uma inovação aos gramados: os passes de calcanhar. Esses passes, dados com a habitual classe com que Sócrates se movimentava, estão entre as coisas mais bonitas da história do futebol, comparáveis às bicicletas imortalizadas por Leônidas nos anos 1930. Raríssimos jogadores foram tão elegantes quanto Sócrates: ele pertencia a uma categoria na qual estão legendas como Didi, Ademir da Guia, Beckenbauer e Zidane, jogadores para os quais o gramado mais esburacado era percorrido como se fosse uma passarela. Nem o calção quase que ridiculamente erguido tirava a graça de Sócrates ao jogar.



Era um homem de time. Participou de duas duplas notáveis do futebol brasileiro. Primeiro, com Geraldão, no Botafogo de Ribeirão Preto, time que o revelou. Depois, com Casagrande, no Corinthians, onde Sócrates virou Sócrates.

Sócrates sempre pareceu mais interessado em política do que em futebol. Participou no Corinthians, nos anos 1980, de um movimento de renovação no futebol, a chamada Democracia Corintiana. Com ela, os jogadores se libertaram das gaiolas das concentrações intermináveis, por exemplo. Os jogadores de hoje não sabem, mas devem em boa parte a Sócrates uma vida menos opressiva fora do campo. Politizado, comemorou muitos gols com a mão direita erguida e o punho fechado, como os atletas negros americanos que assim celebravam o Black Power nas Olimpíadas de 1968.

Na seleção, fez parte de um dos maiores times da história, o que disputou a Copa de 1982 na Espanha sob Telê. Foi seu maior momento como jogador – e é um absurdo que não tenha se sagrado campeão do mundo, ao lado de outros craques como Zico e Falcão. Numa das mais abomináveis injustiças do futebol, o Brasil acabou perdendo para a medíocre e encardida Itália um jogo em que poderia empatar para seguir rumo às semifinais. Como a Hungria de 1958 e a Holanda de 1974, que acabaram não vencendo, o time de 1982 que entrou para o panteão do futebol é o do Brasil. Ninguém se lembra da Itália, assim como pouca gente tem na memória o Brasil de 1994, campeão com brilho zero. Mas não são poucos os que, dentro e fora do Brasil, incluem a seleção brasileira de 1982 como um dos times dos sonhos em todos os tempos.

O espírito de Sócrates — seu humor, suas crenças políticas, sua visão de mundo — está expresso num episódio que ele contava dando risada. Sócrates deu a um de seus seis filhos o nome de Fidel. A avó do bebê – a mãe de Sócrates – disse que era um nome difícil de carregar. “E o que você me deu, mãe?”, respondeu Sócrates.

E então me ocorre o seguinte.

Os ingleses trocaram o minuto de silêncio por um minuto de aplausos nas homenagens aos mortos nos estádios. Neste final de semana, sob forte emoção, o ídolo Gary Speedo foi aplaudido em todos campos britânicos, depois de ter se matado aos 42 anos.  Penso aqui comigo, a 10 000 quilômetros, que cairiam melhor para Sócrates, o Magro, o Magrão, o Doutor, o gênio dos passos de calcanhar, o homem que parecia ter inumeráveis olhos ao jogar, os aplausos, e não o silêncio, e não um minuto, mas uma hora, várias horas — horas intermináveis de aplausos para o craque que tinha os pés no chão e parecia ter a cabeça, semore erguida, no céu.



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