Pesquisar este blog

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A política econômica da redistribuição



por Alan Nasser, no Counterpounch

Traduzido por H. C. Paes

A sabedoria econômica convencional ensina que não é do interesse dos empregadores deprimir os salários a níveis desesperadores, pois a maioria dos consumidores é assalariada e a demanda por bens de consumo responde por algo entre 66% e 72% do Produto Interno Bruto. Se os empregadores rebaixassem os vencimentos demais, eles destruíram ao mesmo tempo sua clientela, o que não é bom para o capital, e tampouco para o trabalho.

Essa linha de raciocínio baseia-se na premissa de que o capitalismo é organizado de tal forma que o mercado de trabalho de cada nação é não apenas inteiramente doméstico, mas também corresponde à única fonte de demanda pela produção de sua economia. Porém, o capitalismo é um sistema global e seus entes soberanos não são economias fechadas. A base laboral e o mercado consumidor das corporações de grande porte típicas são, hoje, globalmente dispersos. Na verdade, as últimas décadas testemunharam a criação, pela primeira vez na história, de um mercado de trabalho global.

A exportação de empregos caiu na boca e na mente do povo, e hoje a maior parte dos trabalhadores a entendem como uma causa significativa do drama de desemprego por que passam os EUA. A perda de vagas para regiões de mão-de-obra mais barata não é um fenômeno novo; vem tomando fôlego desde os anos 60. Em 1959, a manufatura representava 28% da produção doméstica. Em 2008, 11,5%. Essa tendência tem se acelerado com a desregulamentação do fluxo de capitais através de fronteiras nacionais. Desde 2000, os Estados Unidos perderam milhares de fábricas e um total de 5,5 milhões de empregos na manufatura, o que corresponde a um declínio de 32%. No fim de 2009, menos de doze milhões de estadunidenses trabalhavam em manufatura. A última vez em que esses números foram registrados foi em 1941.

A produção de engenhocas não é o único setor em que se tem visto empregos serem exportados. Temos [nos EUA] maior familiaridade com as centrais de atendimento telefônico ultramarinas, mas todo tipo de posto de trabalho qualificado também tem sido despachado para o exterior. Profissionais altamente qualificados como engenheiros e projetistas, arquitetos, programadores e outros têm sido contratados em número cada vez maior pelas companhias estadunidenses na China, na Rússia, na Índia e nas Filipinas.

Nestes tempos neoliberais, não mais nos escandalizamos ao descobrir que essa estratégia é apregoada com vigor por ninguém menos do que o chefe do Conselho de Trabalho e Competitividade do presidente Obama, Jeffrey Immelt, que coincidentemente é o principal executivo da General Electric. O ano de 2010 foi emblemático para a GE, com US$ 9,1 bilhões dos US$ 14,2 bilhões de lucro total tendo vindo de suas operações estrangeiras. Immelt não mostra recato algum com respeito à sua indiferença pelos trabalhadores estadunidenses. Num encontro de investidores em 6 de dezembro de 2002, ele declarou com entusiasmo que “Quando falo com gerentes da GE, falo em China, China, China, China, China. É preciso estar lá. É preciso mudar a maneira como as pessoas falam sobre ela, e a forma de se chegar lá. Sou um fanático pela China. A produção exportada para a China vai crescer para 5 bilhões. Estamos construindo um centro tecnológico na China. Toda discussão, hoje, tem de ser centrada na China. O custo-base é por demais atraente. É possível, no caso de um refrigerador de meio metro cúbico, fazê-lo na China e embarcá-lo para os EUA por um custo menor do que o necessário para fazê-lo nós mesmos.”

Este é o homem que Obama encarregou para liderar um comitê criado com o propósito de se debruçar sobre a crise de desemprego que passa o país. Todavia, não creio que a obsessão de Immelt com a atividade econômica no exterior se limite à mão-de-obra barata e os custos menores. Segue outra declaração: “Hoje nos posicionamos no Brasil, na China, na Índia, porque é lá que estão os clientes”.

Puxa, isso parece aquele papo leninista sobre a insuficiência dos mercados domésticos para absorver a produção econômica. O trabalhador estadunidense não está apenas se tornando cada vez menos importante como um fator de produção, mas também não é mais visto pelo grande capital como o cliente mais promissor, ou a fonte mais robusta de receita de vendas.

Tanto do lado da oferta, como do da demanda, o trabalhador/consumidor estadunidense é visto como cada vez mais descartável. O outrora Secretário do Trabalho de Clinton, e atual diarista virtual de matriz liberal, Robert Reich, é de opinião que essa estratégia é irracional, mesmo sob a óptica capitalista: “Lucros corporativos estão em alta atualmente, em grande medida, porque os salários se encontram deprimidos e as companhias não estão contratando. Contudo, isso é uma receita para o fracasso no longo prazo, mesmo para as corporações. Sem suficientes consumidores estadunidenses, elas estão com os dias lucrativos contados. Afinal, há um limite para o quanto de lucro elas podem auferir com cortes na folha de pagamento dos estadunidenses, ou mesmo com vendas no exterior. Os consumidores europeus não estão com espírito para fazer compras. E a maior parte das economias asiáticas, inclusive a China, está em desaceleração”. Reich simplesmente não sacou.

A referência a “consumidores europeus” não vem ao caso; não é a Europa que Immelt e companhia têm em mente. Exportações são, de fato, o lance do momento, mas os consumidores, na opinião da elite, devem ser encontrados nos mercados emergentes. Obama vem entoando, por anos agora, o mantra “exportar mais, consumir menos” como se fosse a chave para a revitalização econômica dos EUA. Seus patrões raciocinam por um processo de eliminação. Eles sabem que o produto total da economia é gerado por quatro, e apenas quatro, tipos de gasto: demanda de consumo, demanda por investimento, demanda governamental e demanda por exportações.

O consumo não é promissor como estímulo à produção e ao lucro porque a maioria dos consumidores é assalariada, e eles são mal pagos, vêm sofrendo cortes absolutos em seus vencimentos, estão gravemente endividados e se encontram ou desempregados, ou subempregados. O investimento não cola por dois motivos: nenhum empregador investe quando o poder aquisitivo se encontra excepcionalmente baixo e, mais importante do que isso e completamente ignorado pelos comentaristas, a presente depressão não é causada por uma escassez de capacidade instalada ou por obsolescência de equipamentos. Um conjunto bem desenvolvido de unidades produtivas se encontra instalado e pronto a operar. Não se precisa de investimento adicional. Quanto a despesas governamentais é com fins produtivos, elas são descartadas pelo consenso neoliberal. Obama tem seguidamente ressaltado que a recuperação econômica deve ser firmada nos míticos mecanismos autorrestauradores do setor privado.

Resta-nos a exportação como o equivalente econômico do “Abre-te, sésamo!”. Obama expôs sua estratégia em um discurso, a respeito de sua Iniciativa Nacional para a Exportação, proferida à conferência anual do Ex-Im Bank (agência federal estadunidense para crédito exportador) em 11 de março de 2010: “os mercados de crescimento mais rápido do mundo se encontram além de nossas fronteiras. Precisamos competir por esses clientes porque as outras nações estão competindo por eles”.

O foco na exportação é consistente com a atual geopolítica da elite, que é registrada de forma confiável pela imprensa especializada em negócios, de forma mais notável em periódicos-chave como Foreign Affairs, The Financial Times e The Economist. O pensamento atual é que há um deslocamento global da atividade manufatureira do “Ocidente” para o “Oriente”, à medida que as nações economicamente maduras – EUA, Europa e Japão – se desindustrializam enquanto os mercados emergentes, principalmente na Ásia, preenchem o vácuo global ao desenvolverem sua própria aptidão industrial. A observação de Reich de que “a maior parte das economias asiáticas, inclusive a China, está em desaceleração” é correta, mas desprovida de importância. O que importa, conforme mencionou Obama, é onde se encontram “os mercados de crescimento mais rápido do mundo”. A desaceleração atual da Ásia é compatível com o rápido crescimento, dentro da China e da Índia, por exemplo, de uma nova classe média e de um extrato de novos-ricos. Esses são vistos pelas elites ocidentais como o lugar onde a ação está, hoje e no futuro.

Um relatório do Citigroup que já se tornou notório engloba essa cosmologia econômica com sua tese de que “o mundo está se dividindo em dois blocos – a Plutonomia e o resto”. A crescente desigualdade se tornou planetária. Num mundo globalizado, assim narra o documento, os consumidores nacionais – “o consumidor estadunidense”, “o consumidor japonês” – são obsoletos. Há apenas os ricos e o resto. Os primeiros são proporcionalmente em número pequeno, mas rapidamente crescente à medida que políticas neoliberais transferem a eles os recursos do resto. Os últimos figura de forma correspondentemente marginal no conjunto dos fatores que importam para a classe de pessoas de posses.

O executivo-chefe, radicado nos EUA, de um dos maiores fundos de cobertura de riscos do mundo contou a um articulista do The Atlantic que “o esvaziamento da classe média estadunidense realmente não importava”. Ele descreveu o assunto de uma discussão executiva que teve lugar há algum tempo este ano: “… se a transformação por que passa a economia mundial tirar quatro pessoas da pobreza na China e na Índia e as trouxer para a classe média, e simultaneamente isso significar que um estadunidense despenca da classe média, não se trata de uma permuta tão ruim”.

O vice-presidente de operações financeiras de uma empresa de Internet dos EUA se manifestou no mesmo sentido: “Nós [estadunidenses] exigimos um contracheque mais polpudo que o resto do mundo. Então, se vocês pedem dez vezes o salário, vocês têm de produzir dez vezes o valor. Soa cruel, mas talvez as pessoas na classe média precisem decidir aceitar um corte nos vencimentos.”

No Festival de Idéias de Aspen, no verão de 2010, o executivo-chefe da companhia Applied Materials, do Vale do Silício, declarou que se ele estivesse começando do zero, apenas 20% de sua força de trabalho seria doméstica: “Este ano, quase 90% de nossas vendas serão fora dos EUA. A pressão para estarmos próximos a nossos clientes – a maioria na Ásia – é enorme”.

E Thomas Wilson, executivo-chefe da Allstate, é desavergonhadamente franco sobre a maneira como a globalização gera uma oposição entre os interesses da classe trabalhadora e do mundo dos negócios: “Eu consigo (trabalhadores) em qualquer lugar do mundo. Há um problema para os Estados Unidos, mas não necessariamente para as empresas estadunidenses… elas vão se adaptar.” [Vide Chrystia Freeland, “The rise of the new global elite” (A ascensão da nova elite global), em The Atlantic, janeiro/fevereiro de 2011.]

Isso tudo se resume numa política econômica de redistribuição. O crescimento global lento dos últimos 30 ou 40 anos, que não tem fim à vista, tem sido interpretado pela esquerda como uma indicação de uma “crise” que se espalha, uma falha do capitalismo em corresponder às expectativas. Do ponto de vista dos trabalhadores, essa descrição é precisa, uma vez que a ideologia legitimadora do capitalismo nos assegura que todos prosperarão enquanto o capitalismo estiver fazendo seu trabalho.

Contudo, do ponto de vista dos capitalistas, cujo objetivo é acumular riqueza, crescimento lento não é necessariamente um sinal de crise, uma vez que a riqueza pode ser acumulada por redistribuição, pelo aumento da desigualdade, na ausência de taxas de crescimento robustas. Isto é que está acontecendo intra- e internacionalmente. A exportação de empregos e clientes é parte do jogo. Lucros são receita menos despesa. O aumento da receita, assim pensam as elites, deve ser buscado no estrangeiro. A redução dos custos deve ser atingida em toda parte.

Podemos chamar isso de Terceiro-mundialização do resto, ou, se mantivermos o foco nos assalariados dos países desenvolvidos, de a progressiva obsolescência da classe trabalhadora. Jamais será possível, é claro, tornar os trabalhadores completamente obsoletos. O que está acontecendo é que nos aproximamos desse estado assintoticamente. Pode-se fazer a objeção de que há limites claros para o quanto a classe trabalhadora pode ser empobrecida – afinal, os trabalhadores têm de ser mantidos aptos para o trabalho. Há um limite para o quanto se pode redistribuir a riqueza em favor das classes mais altas. Porém, a desigualdade sempre crescente é percebida pelas elites como alcançável por obra e graça das possibilidades infinitas de maior endividamento. Os trabalhadores podem fechar as contas no fim do mês ao hipotecarem seus rendimentos futuros indefinidamente.

Não é disparatado enxergar nisso uma parecença cada vez maior dos trabalhadores estadunidenses àqueles dos países pobres. Sabe-se que formuladores de prognósticos econômicos de grande reputação se referem aos EUA como “o México da Europa”. No futuro próximo, prevêem, alguns estados dos EUA, principalmente no sul, mas também incluindo a Califórnia e o Cinturão da Ferrugem, não apenas serão a regiões de mão-de-obra mais barata do mundo desenvolvido, mas também serão competitivas com relação à Índia e a China. Os salários estão subindo nos países pobres dedicados aos setores fabril e de serviços, e caindo nos ricos. E os trabalhadores estadunidenses tendem a aquiescer, enquanto a periferia efervesce com descontentamento.

Os custos de produção convergem gradualmente entre a China e os EUA: os trabalhadores estadunidenses de baixo salário são mais produtivos, e os custos de combustível devem continuar a crescer, tornando cada vez mais caro despachar bens mundo afora. Trabalhadores não-sindicalizados contratados pela Ford para realizar inspeções em sua planta de caminhões em Dearborn recebem dez dólares por hora sem benefícios, um valor que, de acordo com projeções, é menor do que a média chinesa por volta de 2015.

Empresas como a Ford, a Caterpillar, a Wham-O (fabricante do Frisbee), a Master Lock, a Suarez Manufacturing e a própria General Electric recentemente transferiram unidades de produção da China e do México para a Geórgia, Ohio, Indiana, Wisconsin, Califórnia e Michigan. Essa tendência pode ser ou não crescente, mas o mero fato de que algumas regiões do país se tornaram novamente competitivas com México e China é um atestado do infortúnio do trabalhador estadunidense.

O selvagem neoliberal favorito do New York Times, Thomas Friedman, resume esse projeto de implantação de miséria da maneira que lhe é peculiar: cabe a nosso país “cortar os vencimentos do setor público, congelar benefícios, cortar vagas, abolir uma gama de direitos do bem-estar social e mandar programas de construção de escolas e manutenção de estradas para a guilhotina”.

Friedman vai em frente e critica os trabalhadores estadunidenses e da Europa ocidental por acreditar na “fada do dente” e esperar serviços governamentais sem pagar por eles. Nos EUA, diz Friedman, a geração do pós-guerra, que herdou a riqueza daqueles anos, “devorara toda a abundância como gafanhotos famintos… depois de 65 anos em que a política do Ocidente se tratou, principalmente, de dar coisas a eleitores de mão beijada, ela passará a ser, principalmente, de tomar essas coisas deles. Digam adeus à política da fada do dente e saúdem a política do tratamento de canal”. (9 de maio de 2010)

A oligarquia expôs, em termos simples e claros, sua estratégia de jogo. Qual será nossa resposta?

Alan Nasser é professor emérito de Economia Política da faculdade estadual Evergreen em Olympia, estado de Washington. Este artigo foi adaptado do livro que está escrevendo, The “New Normal”: Chronic Austerity and the Decline of Democracy (A “nova normalidade”: austeridade crônica e o declínio da democracia). Ele pode ser contactado pelo endereço eletrônico nassera@evergreen.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.