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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Câncer, medalha e conservadorismo


A doença de Lula e a homenagem a Ronaldinho na Academia Brasileira de Letras despertaram a miséria intelectual da sociedade

Por Felipe Amin Filomeno

Nos últimos dias, duas ondas de manifestações na internet revelaram preconceitos arraigados que ainda envilecem a sociedade brasileira. A primeira decorreu da notícia de que o ex-presidente Lula sofre de câncer na laringe e está sendo tratado no Hospital Sírio-Libanês. A segunda foi causada pela homenagem feita a Ronaldinho Gaúcho pela Academia Brasileira de Letras (ABL).

Ambos acontecimentos foram duramente criticados em comentários que questionavam a moralidade de Lula e o mérito de Ronaldinho. Na essência de tais manifestações está um preconceito de classe, expressado até mesmo por pessoas de classe média ou baixa, incapazes de perceberem o quanto são vítimas da ideologia conservadora que reproduzem em suas opiniões cotidianas.

No Facebook, uma “campanha” foi iniciada defendendo que Lula seja tratado no Sistema Único de Saúde (SUS). A campanha assume que Lula seria culpado pela debilidade do sistema de saúde pública brasileiro e, portanto, não seria moralmente correto seu tratamento na rede privada. Tal mobilização é, no mínimo, de mau gosto e demonstra falta de civismo em relação a um ex-chefe de Estado. Um, aliás, que deixou o governo com índices altíssimos de popularidade e um país que, de acordo com vários indicadores econômicos e sociais, era melhor do que aquele que herdou de seu antecessor.

Por falar em indicadores, a tal “campanha” não mostrava nenhuma estatística sobre saúde pública que pudesse justificar jogar em Lula, pessoalmente, a culpa pelos problemas da saúde pública brasileira. O que deveria ser avaliado não é se o SUS é, hoje, perfeito ou não, mas sim se, durante o governo Lula, o SUS melhorou ou não. Segundo dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), o gasto do governo federal com saúde como proporção dos gastos federais totais caiu, durante o governo FHC, de 5.2% em 1995 para 3.1% em 2003 (apesar da CPMF). No governo Lula, o gasto em saúde subiu de 3.1% em 2003 para 4% em 2008. Pode estar longe do ideal, mas é um avanço que torna injustificável a tal campanha.

Obviamente, os participantes da mobilização não se preocuparam em verificar dados quando repassaram mensagens através de blogs, Facebook ou Twitter. Isso porque, na raíz da campanha não está uma análise racional de fatos e dados, há apenas preconceito e ideologia. Aliás, chega a ser engraçado que vários abriram a boca para falar mal do Lula por ser tratado no Sírio-Libanês, mas quase ninguém elogiou Hugo Chávez por ir se tratar num hospital público em Cuba. Mas é essa a “lógica” do preconceito, “um peso, duas medidas”.

Em relação ao Ronaldinho, o preconceito foi ainda mais evidente. Em primeiro lugar, a homenagem ao jogador foi indiretamente uma homenagem ao escritor José Lins do Rego, que agora completaria 110 anos se estivesse vivo. Lins do Rego era torcedor fanático do Flamengo. Em segundo lugar, as centenas de manifestações criticando a ABL pela homenagem revelam uma concepção bastante estreita do que seja cultura. Como era de se esperar, os imortais da ABL sabem que cultura vai além da literatura, ao contrário dos críticos de Ronaldinho, que provavelmente mal sabem quem foi José Lins do Rego. Como diz o brasileiro, “futebol é arte”. A paixão pelo futebol e a excelência em sua prática são elementos dos mais característicos da cultura, sim CULTURA, brasileira.

Portanto, a onda de críticas a Lula e Ronaldinho é, em essência, fruto de preconceito de classe, do rico contra o pobre. Afinal, que pessoas podem ser mais representativas do povo brasileiro do que Lula e Ronaldinho Gaúcho? Do ponto de vista conservador, instituições de elite como o Hospital Sírio-Libanês (em termos de excelência em serviços de saúde) e a Academia Brasileira de Letras (em relação à excelência literária) não são espaço para um operário presidente ou um jogador de futebol. Eis a miséria intelectual do conservadorismo cotidiano.

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