Estão dizendo por aí que os alunos que ocupam a Reitoria da USP perderam a razão quando não aceitaram a deliberação da Assembléia. Querem dizer, então, por preceito lógico, que concordariam com a ocupação se a Assembléia a tivesse aprovado? Ora, se não concordariam nem assim, então, a deliberação da Assembléia é irrelevante e o ataque feito à ação dos estudantes e servidores por esse viés é totalmente despropositado.
As lutas sociais, ademais, não dependem de uma legitimação fixada em lei, do contrário não seriam lutas e, de fato, não teriam condições materiais de existir. Quaisquer pessoas podem se organizar, formar suas associações de direito ou de fato, para a defesa de seus interesses. Os movimentos sociais, normalmente, não possuem constituição jurídica formal. Assim, os estudantes mobilizados, que criaram uma forma de organização própria, não têm obstáculo jurídico para a defesa dos ideais que consideram importante defender.
Pode-se discutir, a bem da verdade, a legitimidade que possuem para responder por todos os alunos da USP, mas ao que se sabe os alunos ali mobilizados nunca reivindicaram esse título, ainda que a sociedade crie sobre eles uma generalização.
Quanto ao meio de luta eleito, a ocupação, há uma gama enorme de questões que o envolve. Fiquemos, no entanto, com o verso do senso comum de que se trata de uma ilegalidade porque representa tomar posse de um patrimônio público. Mas, cumpre, inversamente, reparar: o ato em questão não se trata de tomar posse para si e sim, em caráter provisório e precário, para o propósito de instituir um diálogo político, o qual visa à reconstrução da ordem estabelecida.
Ainda assim fiquemos com a noção de ilegalidade. Diante da situação posta o que resta à Reitoria? Restituir a legalidade? Diz a Administração da Universidade que está obrigada a resgatar a ordem e, desse modo, para devida defesa do patrimônio público, ingressou com ação de reintegração de posse. E obteve a liminar. Mas, novamente, faz-se importante ponderar. Qual o valor que a Reitoria está buscando preservar? Está preservando o patrimônio, ou seja, os bens materiais. Com isso, mais uma vez, está se furtando ao diálogo pelo uso da força, ainda que ancorada por decisão judicial e pretende utilizar essa força para repelir aqueles que chama de “invasores”, só que os tais “invasores” não são números, são pessoas, e mais, são alunos e servidores, que estão ali, mesmo que em ato de pretensa ilegalidade, para o exercício de uma ação política contra atos que acusam terem sido ilegalmente cometidos pela Direção da Universidade, sobretudo no que se refere à abertura, por represália, de inúmeros inquéritos administrativos contra alunos e servidores, trazendo consigo, também, a reivindicação do que chamam “Fora PM!”
Na onda “moral e cívica” que histericamente se formou, essas pessoas estão sofrendo um verdadeiro massacre público, sendo agredidas por todos os lados. Mas, são só pessoas querendo expressar o seu sentimento e elegendo um meio de luta para tanto. São jovens que podiam não se importar com que se passa com os servidores ameaçados de dispensa por justa causa. Podiam não se importar com o futuro da Universidade, pois estão de passagem pelo Campus e com o Diploma universitário podem estar prestes a se inserir, exitosamente, no mercado de trabalho. Podiam, simplesmente, estar por aí sem muitos propósitos na vida. Mas, não. Estão lá, lutando, exercendo cidadania, aprendendo a se organizar, produzindo saberes, adquirindo experiência de vida, aprofundando idéias e debates… Só isso já seria motivo relevante para que as admirássemos, mesmo sem concordar com suas bandeiras ou métodos, apontando-os como açodados, inoportunos, radicais etc. Mas, não se há de esquecer que foram atitudes tomadas mediante forte emoção, ditada por um sentimento de injustiça e no calor de efervescência política em um ambiente universitário. O fato é que somente a partir de pessoas questionadoras, conscientizadas, inteligentes e lutadoras, como as que ora se mobilizam, o Brasil poderá, enfim, solver os seus eternos problemas.
Mas o que a Administração da Universidade planeja fazer com essas pessoas? Submetê-las à força policial, assumindo todos os riscos daí conseqüentes, pois para a opinião pública, que fora forjada sobre o tema, vale mais a defesa do patrimônio que a preservação da integridade física ou mesmo da vida desses meninos contestadores de 17 anos ou um pouco mais e alguns servidores com vários anos de relevantes serviços prestados à Universidade.
Por que escrevo este texto? Porque me importo com a vida dessas pessoas. Porque me preocupa o cerco da força do poder contra uma mobilização reivindicatória. Porque não consigo dormir sossegado sabendo que a intransigência da Administração em estabelecer com estudantes e servidores um diálogo, ainda que difícil, longo e complexo, do qual, ademais, poderiam – e deveriam– participar as diversas inteligências da Universidade, que até agora, pesarosamente, ecoam um silêncio retumbante, pode produzir um verdadeiro massacre.
Não estou defendendo (nem condenando, por certo) a ação dos estudantes e servidores. Estou, meramente, rogando a todos, à sociedade, à mídia, à Administração da Universidade, ao Comando da Polícia Militar, e, sobretudo, à juíza que deferiu a liminar, para que repensem sua postura neste evento e permitam, enfim, o avanço do necessário diálogo a respeito das intrigadas questões que afligem, concretamente, a nossa Universidade.
Caso estes interlocutores não estejam dispostos a me escutar, volto-me, então, aos estudantes, aos quais chamo de alunos, se é que me concedem essa legitimidade, para pedir-lhes, então, que reflitam sobre as diversas outras possibilidades de manterem a mobilização, desocupando a Reitoria, até porque o anverso da escrita desse aparente verso triste pode ser a retomada do império da legalidade na Universidade em todos os níveis. Afinal, é possível difundir a todos os demais espaços essas e tantas outras reivindicações, não se restringindo apenas ao prédio velho e desconfortável da Reitoria!
Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
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