Muitos outros argumentos se sucederam, linguistas de inflamaram, e políticos fizeram as cenas de sempre - devidamente exibidas nos telejornais de sempre - brandindo gestos espalhafatosos e erguendo a voz em manifestações com farta dose de histrionismo e imbecilidade. Tudo em nome da defesa de uma imaculada virgem - a língua vernacular, a língua culta, a norma gramatical. Enquanto isso, o povo deu de ombros e fez ouvidos moucos a esta gritaria.
Agora, vem-me à tona este argumento definitivo, que mostra a que vazios o espetáculo midiático da crítica vazia, do jogo espetaculoso de posições opacas e a serviço de interesses não declarados nos leva. Pensemos em Adoniran Barbosa, cuja menção é tributária do blog "Crõnicas do Motta" de que transcrevo o trecho a seguir:
"Não existe argumento mais definitivo para calar a boca dos que pretendem a existência de uma única língua portuguesa do que a própria realidade. O povo fala como quer, constrói a sua própria gramática, junta sílabas, encurta os caminhos, acrescenta ao seu bel-prazer palavras e expressões, faz da língua um ser vivo, que a cada dia renasce com mais energia.
Na sua imensa sabedoria, para afirmar seu valor, chegou a cunhar uma frase que é repetida desde tempos imemoriais, até mesmo por eruditos insuspeitos: a voz do povo é a voz de deus.
Os do contra podem, todavia, argumentar que a língua falada é uma, a escrita é outra, distinta, que não perdoa a colocação incorreta dos pronomes nem a conjugação manca dos verbos ou a falta de uma simples concordância nominal.
Bobagem. Para refutar essa turma, abro uma página qualquer de "Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa, a obra que fez muito crítico perder o cabelo, tal a sua carga imaginativa, sob todos os aspectos. Abro e encontro:
"Aquilo lufou! De rempe, tudo foi um ão e um cão, mas, o que havia de haver, eu já sabia...Oap!: o assoprado de um refugão, e Diadorim entrava de encontro no Fancho-Bode, arrumou mão nele, meteu um sopapo: - um safano nas queixadas e uma sobarbada - e calçou com o pé, se fez em fúria."
Mais adiante:
"Os quantos homens, de estranhoso aspecto, que agotavam manejos para voltarmos de donde estávamos. Por certo não sabiam quem a gente era; e pensavam que três cavaleiros menos valessem."
Acho que já é o suficiente para deixar claro que a língua, qualquer uma, nada mais é que o exercício incessante de comunicação entre os homens, seja de modo oral ou escrito ou visual ou qualquer outro que se invente. Não existe certo ou errado. Existe, isso sim, o efeito demolidor que a palavra, a frase, o discurso oral, a poesia ou a prosa podem exercer na mente do homem.
"Escrever errado é a coisa mais difícil que existe. Se não for feito do jeito certo, vira piada, vira deboche."..."As minhas letras tenho impressão que pegaram porque nelas está o sentimento do povo. Escrevo errado como o povo fala. Prefiro dizer 'nóis deve' do que 'nós devíamos'. É mais autêntico. Eu ouço, presto atenção. Depois faço as letras."
As frases, lapidares em sua sabedoria, são de Adoniran Barbosa, o poeta maior da São Paulo autêntica - outros, muitos outros, podem disputar o título de porta-vozes da outra São Paulo, a oficial, mas da real ninguém sabia mais que Adoniran.
Certa vez, ele viu o casarão abandonado em que dormiam uns amigos seus. Viu o prédio cair e nunca mais encontrou os amigos. Da experiência chocante nasceu "Saudosa Maloca", exemplo perfeito de como o mais trivial acontecimento pode virar uma obra de arte:
Se o sinhô não tá lembrado
Dá licença de contar
Que aqui onde agora está
Este ardifício arto
Era uma casa velha
Um palacete assobradado
Foi aí, seu moço, que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímo nossa maloca
Mas um dia, nóis nem pode se alembrá
Veio os home co'as ferramenta
O dono mandou derrubá
Peguemo todas nossa coisa
E fumo pro meio da rua
Apreciá a demolição
Que tristeza que nóis sentia
Cada taubua que caia
Doía o coração
Mato Grosso quis gritá
Mas em cima eu falei
Os home tá com a razão
Nóis arranja outro lugar
Só se conformemo
Quando o Joca falou
"Deus dá o frio conforme o cobertô"
E hoje nóis pega as palha
Na grama do jardim
E pra isquece nóis cantemo assim
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim dom de nóis passemos dias feliz de nossa vida
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim dom de nóis passemos dias feliz de nossa vida
"Saudosa Maloca", com seus "erros" de português é um clássico da música popular brasileira. Do mesmo modo, "Grande Sertão: Veredas", é um clássico da literatura mundial.
E, coisa mais que estranha, as duas obras que aparentemente têm tantas diferenças entre si, nos comovem justamente porque revelam que a língua portuguesa, sob qualquer forma, é um organismo que tem vida própria, que se fortalece a cada dia sem precisar da ajuda ou dos conselhos de ninguém, seja o "imortal" da Academia Brasileira de Letras ou o articulista do jornalão - ambos cheios de regras e vazios de espírito."
É como diria, obsequioso, o Senhor C.
- Todos ladram, a caravana passará!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.